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2 CORPO, ESPETÁCULO E CONTOS DE FADAS

2.4 O ESPETÁCULO E OS CONTOS DE FADAS

A companhia Walt Disney foi fundada no ano de 1923, por Walter Elias “Walt” Disney. Era reconhecida com o nome de Disney Brothers Cartoon Studio, com a produção As Comédias de Alice. A empresa passou por certas complicações financeiras em seus primeiros anos, logo após o término da série. Mudou seu nome para Walt Disney Studio em 1926, e ficou reconhecida por seu símbolo de desenho original, Mickey Mouse. Segundo o site oficial Walt Disney Studios (2016), o ratinho é sucesso em todas as partes do mundo: “Mickey
Mouse
was
an
immediate
sensation
around
the
world,
and
a series
of
Mickey 
Mouse
cartoons followed” (2016, p. 1).

No ano de 1937, o estúdio de animação lançou seu primeiro longa de sucesso “A Branca de Neve e os Sete Anões”. Depois de passar três anos com grandes lucros da animação, a empresa mudou sua sede para a Califórnia e lá ganhou a renomada fama da Terra dos Sonhos, um mundo onde tudo seria possível de se tornar realidade. Em 1941, os estúdios tiveram uma grande queda em lucros devido à eclosão da segunda Guerra mundial e fizeram dois filmes para os Estados Unidos:

During the war, Walt Disney made two films about South America, Saludos Amigos and The Three Caballeros, at the request at the State Department. His Studio also concentrated on producing propaganda na training films for the military. When the War enden, it was difficult for the Disney Studio to regain its pre-war footing. (WALT DISNEY STUDIOS, 2016, p. 2)3.

No ano de 1950, depois da crise do pós-guerra, o estúdio lançou longas de animação clássicos renomados mundialmente, Cinderella e a Ilha do Tesouro. A animação de Cinderella foi inspirada na releitura do conto homônimo do clássico de Charles Perrault, foi adaptada para a versão infantil, com temas de fantasia e realização de sonhos, além de conter aspectos morais e sociais típicos dos contos de fadas. Foi um mundo que o estúdio Disney conseguiu criar perpassando o tempo, cativando públicos infantis e adultos, criando clássicos atemporais (clássicos que colocam em circulação discursos sobre os aspectos humanos e suas culturas).

É pertinente destacar que, antes da animação de 1950, o conto original de Cinderella de Perrault possuía uma trama já quase adaptada ao público infantil, já que nesta versão Cinderela era genuinamente pura e conformada. O conto foi transformado em escrita pelo escritor francês Charles Perrault no ano de 1697, pois antes, a história existia por intermédio da linguagem oral (cujos valores de que o bem triunfa sobre o mal continuaram os

3 Durante a Guerra, o estúdio Walt Disney fez dois filmes sobre a América do Sul “Saúde Amigos” e “Os três

Cavalheiros”, a pedido do Departamento de Estado. Seu estúdio também se concentrou em produzir filmes de propaganda para os militares. Quando a guerra terminou, era difícil para o estúdio Disney recuperar seu fundamento da pré-guerra.

mesmos). No desfecho desta versão, no momento de provar o sapato de cristal, as irmãs de Cinderella fazem de tudo para o sapato caber dentro dos pés. Mas mesmo com os esforços e dores, não conseguem ficar com o sapato de cristal nos pés, apenas para a “Gata Borralheira”, que ficava sempre nas cinzas, o sapato serve com perfeição. Deste modo, ao lançar a animação, o estúdio Disney precisava de uma mudança no término da história, fazendo assim, a releitura de um conto para adaptar-se a uma animação de sucesso, e que põe em circulação discursos cristalizados na sociedade ocidental, tais como a necessidade do casamento para a mulher, o culto da beleza exterior, entre outros.

Na contemporaneidade, tradição e modernidade dão corpo aos jogos de verdade. A sociedade do século XXI, uma sociedade contemporânea, é perpassada pelo tradicional, em que emergem discursos e práticas discursivas na modernidade, fazendo transbordar não o novo, mas sim outros sentidos não perceptíveis outrora, que permanecem na atualidade. Segundo Foucault (2008), o discurso traz conflitos entre o antigo e o novo, exerce repressão ao que nunca antes tinha sido dito, mas, ao mesmo tempo, descreve a repercussão de novas descobertas, e os (re)aparecimentos de um já dito e de novos efeitos de sentido.

De acordo com Giddens (1991), a tradição:

é um modo de integrar a monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade. Ela é uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade ou experiência particular dentro da continuidade do passado, presente e futuro, sendo estes por sua vez estruturados por práticas sociais recorrentes. A tradição não é inteiramente estática, porque ela tem que ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua herança cultural dos precedentes. A tradição não só resiste à mudança como pertence a um contexto no qual há, separados, poucos marcadores temporais e espaciais em cujos termos a mudança pode ter alguma forma significativa. (GIDDENS, 1991, p. 38).

Assim, a tradição é parte da história e do social, e ela também está ligada aos acontecimentos presentes (mesmo de forma sútil), pois ela é reinventada historicamente e discursivamente. No entanto, há uma parte da tradição que permanece/cristaliza-se, deixando vestígios em alguns discursos do presente. A tradição integra a ação espaço/tempo de uma dada sociedade, sendo indispensável para a compreensão da sociedade por meio de seus costumes, crenças e práticas. Deste modo, a sociedade ainda sedimentada na tradição é refletida como valorização cultural do passado e, de certa forma, contida no presente.

Além disso, a modernidade (re)produz as práticas anteriores, tendo a confirmação de que mesmo na melhor sociedade moderna, o tradicional ainda ecoa nos seus recantos. Giddens (1991, p. 39) afirma: “[...] mesmo na mais modernizada das sociedades, a tradição continua a desempenhar um papel [...]”. Sendo assim, o tradicional também está vinculado ao presente, pois ainda que seja reinventada por cada geração, a tradição serve

como uma ancoragem de conservação da humanidade e seu social, seu elo com o passado e presente.

Sendo assim, os contos de fadas são exemplos concretos entre a dualidade de passado e presente, pois os temas como a busca pela felicidade, por um amor, ou até mesmo a crença no sobrenatural permanecem presentes nas sociedades e gerações, tanto em gerações anteriores quanto nas posteriores. Os finais felizes nos fazem sonhar tal qual uma criança e querer materializar o sonho, compondo parte não apenas do individual, mas também do ideológico/social. E viveram felizes para sempre, esta é a expressão que, historicamente, determina o foco das narrativas de contos de fadas, sejam eles escritos, animados ou fílmicos.

Apesar das animações mais recentes do estúdio Disney e de outros estúdios romperem com alguns estereótipos sobre o corpo (um corpo menos definido, menos esbelto, menos belo4), permanecem os discursos cristalizados sobre o corpo que permeiam a sociedade e que perpassam décadas, tal como em nosso objeto de estudo Cinderella e em outras animações pertencentes ao estúdio Disney (tal como Frozen – em que a protagonista Elsa possui um corpo belo e esbelto).

As histórias de contos de fadas parecem ser meras histórias para crianças e jovens sonharem em um mundo utópico, no entanto, elas influenciam não apenas crianças/jovens, mas principalmente, o público adulto. De acordo com Chagas (2009), os contos de fadas, apesar de serem divertidos e indicados para o público infantil, possuem uma carga de sentidos vitais para o homem e suas fases da vida, dando (re)significados também para a fase adulta nas mais variadas situações do cotidiano, como por exemplo a busca incessante pela felicidade.

Deste modo, a influência dos contos de fadas, principalmente nas telas do cinema, gera idealizações e práticas no simulacro adulto, fazendo-o, desta forma, agir de acordo com valores morais e éticos tais como são mostrados nos finais felizes, porque fazem eco a discursos que circulam socialmente, sendo amplificadas para a grande massa. Segundo Silva (2004 apud CHAGAS, 2009):

As personagens das narrativas demonstram, em histórias maravilhosas, valores éticos e morais. Nas crianças, essas histórias auxiliam nas formações desses valores que atuam na sociedade moderna e ainda entender isso usando a imaginação, o que torna mais fácil essa compreensão (CHAGAS, 2009, p. 21).

Para o público infantil, os clássicos contos de fadas ajudam na construção dos valores morais que estão sendo desenvolvidos nesta fase, para discernir, por exemplo, a

4 Tais como os filmes de animação: “Lilo e Stitch” (2002) - Estúdio Disney; “Shrek” (2001) - Estúdio

dualidade entre bem e mal, as ações do herói e do vilão, a dependência do outro, entre outros temas relacionados. É assim que levarão para a fase adulta as concepções morais e éticas de “um bom ser humano” que passa por diversas dificuldades, mas que consegue alcançar todos seus objetivos e atingir a felicidade.

Para Debord (2003, p. 32), “O espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social. Tudo isso é perfeitamente visível com relação à mercadoria, pois nada mais se vê senão ela: o mundo visível é o seu mundo”. Se, por um lado, o espetáculo gera o consumo, há logicamente, os consumidores, denominados “consumidor de ilusões” – segundo Debord (2003, p. 36): “O consumidor real torna-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é esta ilusão efetivamente, e o espetáculo a sua manifestação geral”. Assim, o modo como o espetáculo se configura impele os sujeitos a reproduzir a ideologia do “ter para ser”: é preciso ter uma boa aparência para se conquistar alguém, porque é preciso ter

alguém para ser feliz, ter um bom emprego, um bom carro etc.

Todos esses fatores estão intimamentes relacionados aos fatores sociohistóricos, atualizados pela própria sociedade, fazendo eco de um tradicional para o presente, por meio de várias práticas sociais/ideológicas, tal como é visto em contos de fadas, a partir dos quais os discursos são postos a circular constantemente, concretizando práticas sociais. Debord (2003) afirma que:

A sociedade estática organiza o tempo segundo a sua experiência imediata da natureza, sob o modelo do tempo cíclico. [...] O regresso temporal a lugares semelhantes é o puro regresso do tempo num mesmo lugar, a repetição de uma série de gestos. (DEBORD, 2003, p. 103-104).

Ainda sobre o aspecto temporal, Debord postula sobre o tempo pseudocíclico, do consumo das imagens, que faz jus ao simulacro da vida e o espetáculo o reproduz e o faz ser visto:

O tempo pseudocíclico consumível é o tempo espetacular, em sentido restrito, tempo de consumo de imagens, em sentido amplo, imagem do consumo do tempo. O tempo do consumo das imagens, médium de todas as mercadorias, é o campo onde atuam em toda sua plenitude os instrumentos do espetáculo e a finalidade que estes apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna [...]. (DEBORD, 2003, p. 124).

Quanto ao social, a percepção desse “Felizes para sempre” mostra os bons, belos e nobres alcançando o que se define como base para uma dada felicidade, mesmo que passem por males e dificuldades. Por outro lado, há aqueles que, inversamente, serão castigados, punidos por terem sido maus com os bons. Vale a pena lembrar que os maus estão

discursivamente ligados ao conceito de feios5, por terem valores e ações relacionadas ao aspecto negativo do ideal social e em seres humanos, pois tudo que é mal visto pelo social, é de certa forma “represado”, sendo caracterizado por uma imagem de “vilão”, “mau”.

Tendo o próprio espetáculo como representação da realidade e a realidade sendo representação do espetáculo, Baecque afirma que é neste espetáculo que o espectador encontra uma série de sentimentos e sensações que o encantamento do cinema pode proporcionar. Baecque (2011) afirma que:

O poder de encantamento do cinema está precisamente neste encontro: como os corpos convidam seus espectadores a entrarem no filme, tomam-nos pela mão, levam-nos a passear, como, graças a eles, a história se torna “a minha história” para cada um. O cinema clássico foi uma forma exacerbar esse encantamento: uma imensa comunidade de sentimentos, uma sensibilidade de massa, que se ia construindo através da fascinação dos glamorosos vistos na tela. (BAECQUE, 2011, p. 494).

A partir dos aspectos que foram abordados neste subitem, aprofundaremos um pouco mais a noção do belo e seu oposto, o Feio, e a alta competitividade entre eles em contos de fadas e como eles são relacionados discursivamente.

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