• Nenhum resultado encontrado

2 CORPO, ESPETÁCULO E CONTOS DE FADAS

2.2 O ESPETÁCULO

Ao assistir a um filme, ver uma peça teatral, ser espectador de uma propaganda eleitoral, notamos a arte do espetáculo, que tem por seu objetivo ser assistido e apreciado. No entanto, uma simples apreciação não serve apenas para causar emoções e sensações, mas também para notar práticas discursivas e discursos emergentes na sociedade contemporânea.

De acordo com Debord (2003), o espetáculo faz parte da sociedade, sendo considerado um “pseudo mundo à parte”, algo de contemplação. Debord afirma:

O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada. O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, midiatizada por imagens. (DEBORD, 2003, p.14).

O espetáculo faz parte das relações sociais, já que se tem uma verossimilhança com o real. E também faz parte do mundo do próprio espetáculo, onde tudo ou quase tudo é possível de se realizar; por isso também faz parte do “olhar iludido”, pois gera um efeito de ilusão aos espectadores, por mexer com o imaginário, para crerem que tudo o que é visto no interior de um espetáculo possa ser real, unindo deste modo, o real e a fantasia.

Deste modo, o espetáculo também é compreendido em sua totalidade como o próprio “projeto de modo de produção” existente. Ele representa o modelo da sociedade dominante, está associado também ao próprio ato do consumo, estando presente no real/social

e o social faz parte deste espetáculo. Segundo Debord (2003, p. 16): “[...] a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real [...].”.

Essa troca recíproca é essencial para o capitalismo, pois ao ser o modelo da sociedade dominante influi sobre o social para querer ser e agir como o espetáculo produz. Como exemplo, nosso objeto de análise é também um espetáculo, pois nele estão contidos alguns temas que podem exemplificar o que foi dito, tais como a estética de um corpo belo, as relações humanas e crenças, tudo faz parte do nosso social, já que há um imperativo para que a sociedade busque incessantemente a felicidade e os finais felizes, mesmo que tenha de gastar grandes fortunas para se chegar a um corpo ideal e aparentemente saudável.

Ao definir o espetáculo como parte da sociedade, o social também é parte do espetáculo no real, permitindo ou restringindo determinadas ações e/ou dizeres, pois nem tudo pode ser dito, feito ou mostrado, mesmo que o próprio espetáculo seja ilusão. Desta forma, ao restringir as formas de dizer e mostrar, tem-se os efeitos das relações de poderes. Debord (2003, p. 21) afirma que o espetáculo: “[...] É a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida, onde o mais moderno é também o mais arcaico”.

Dito de outro modo, o espetáculo também é a representação do social/ ideológico, que se (re)constrói histórica e culturalmente, trazendo consigo efeitos de memória. Neste aspecto, a memória também dá lugar a novas formas de enunciação, ela pode ser reguladora das imagens que circulam, que pode ser apresentada como discursos cristalizados (um discurso que permanece no social, mesmo com o passar do tempo). No entanto, esses discursos podem sofrer atualizações constituindo novos sentidos, dentro de um quadro de tempo sociohistórico que o desloca do sentido cristalizado. Foucault (2008) nomeia isso de domínio de memória:

[...] trata-se dos enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos, que não definem mais, consequentemente, nem um corpo de verdades nem um domínio de validade, mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica. (FOUCAULT, 2008, p. 64).

Em outras palavras, a produção discursiva das imagens enquanto domínio de memória são efeitos de transformação, (re)definição e descontinuidade. Deste modo, as imagens desencadeiam o processo de atualização de outras imagens e saberes. Manzano (2014) nos traz reflexões também sobre o espetáculo, domínios de memórias e a relação dos sujeitos com a imagem:

A relação dos sujeitos com a imagem concerne ao próprio surgimento de uma sociedade organizada e a imagem vem servindo de mediador nas relações sociais

desde então – o que nos leva a compreender o espetáculo enquanto sintoma contemporâneo de uma sociedade que se adequou, cada vez mais, a um ritmo veloz, sem ponto de chegada, sempre de passagem, quando tempo e espaço não mais se diferenciam, e tudo é global, universal, fragmentado. Dentro desse espaço social contemporâneo, consolida-se uma existência histórica das imagens que se inserem nas práticas discursivas e funcionam segundo a noção de enunciado de Foucault ([1986] 2000), como origem (e com vestígios) de outras imagens que se (re)atualizam, se perpetuam e/ou se transformam, fortalecendo ou desvanecendo saberes que atuam nas relações sociais, mantendo/conservando certos domínios de memória (MANZANO, 2014, p. 66).

Sendo assim, o papel da mídia é central na cultura do corpo, pois é ela quem organiza a imagem enquanto mediadora das relações e comportamentos sociais. A imagem possui um papel central na cultura do corpo ideal, pois cada imagem relacionada à cultura do corpo belo passa por um corpo físico, projetado como espetáculo, inseparável do social que torna o próprio social aspirante desse corpo belo na contemporaneidade. Featherstone (1995, p. 100 apud BERGER, 2006, p. 185) afirma que a manipulação midiática das imagens, por meio de performances, e do espetáculo de tramas da vida real, determina uma “constante reativação de desejos por meio das imagens”.

Para Debord (2003), o próprio espetáculo é ao mesmo tempo parte do capitalismo, uma “ditadura da economia burocrática”, para o qual se faz necessário um espectador para olhar e desejar o que lhe é mostrado:

A ditadura da economia burocrática não pode deixar às massas exploradas nenhuma margem notável de escolha, visto que ela teve que escolher tudo por si própria. [...]. Ela deve acompanhar-se de uma violência permanente. A imagem imposta do bem, no seu espetáculo, recolhe a totalidade do que existe oficialmente e concentra-se normalmente num único homem, que é a garantia da sua coesão totalitária. Com esta vedeta absoluta, deve cada um identificar-se magicamente, ou desaparecer. Pois trata-se do senhor do seu não-consumo, e da imagem heroica de um sentido aceitável para a exploração absoluta [...]. (DEBORD, 2003, p. 46-47).

No cinema (que é uma vertente midiática), por exemplo, são mostradas imagens de corpos, principalmente femininos, simétricos, aparentemente saudáveis e belos. Isso se reflete nas práticas sociais de indivíduos que almejam ter um corpo considerado belo e ideal, igual ao do cinema, contribuindo, assim, para a perpetuação de valores estéticos/comportamentais dominantes discursivamente. É possível observar em nosso objeto de pesquisa – Cinderella (2015) – a formulação também desses discursos, em sua constituição como espetáculo, pois representa a relação discursiva dos corpos ideais que ainda permanecem vivos na nossa sociedade. Assim, o filme representa não apenas um mundo de fantasias, mas também dialoga com a construção social de uma ideologia da felicidade perene.

Em outras palavras, o espetáculo, assim como a imagem, também está inserido no real, que rege as relações sociais de costumes e aparências, estando interligado ao

capitalismo. Debord (2003, p. 21) afirma que “A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais”. Ou seja, a imagem como fetiche faz parte de um social, do qual o masculino e o feminino são criações humanas que variam em suas relações culturais e ideológicas que condicionam de modo diferente cada indivíduo a funções sociais diversas. Principalmente, a imagem da mulher e de seu corpo, no âmbito capitalista, construída discursivamente para ser desejada e aceita enquanto um objeto belo de desejo a ser consumido.

Documentos relacionados