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A ARTE DO OLHAR UM DISPOSITIVO TÉCNICO E ATO DE PRÁTICA

2 CORPO, ESPETÁCULO E CONTOS DE FADAS

2.1 A ARTE DO OLHAR UM DISPOSITIVO TÉCNICO E ATO DE PRÁTICA

Ao assistir a um filme, notamos que há imagens e diálogos, sendo esse conjunto parte da estética fílmica, em planos praticamente simultâneos. As imagens, quase sempre, vêm previamente (segundos antes) às falas das personagens envolvidas na narrativa, como por exemplo, a imagem de um casal ao se encontrar, a troca de olhares e a representação imagética de sentimentos, para depois surgir um diálogo entre o casal, para concretizar os sentidos produzidos pela própria imagem.

As imagens em movimento rodadas em uma tela branca cinematográfica com faixas pretas remontam a um ambiente fechado, onde o espectador tem uma visão privilegiada da tela. As faixas pretas presentes nessa aparição servem para não saturar excessos de imagens na tela, ficando apenas o que é importante olhar nas cenas do filme. Segundo Aumont, a definição de como o cinema projeta os filmes em tela é:

Se a inserção de um fotograma branco bloqueia o movimento aparente por um efeito de mascaramento, a faixa preta entre os fotogramas parece desempenhar outro papel, o de “mascaramento de contorno” [...] esse mascaramento é exatamente o que explica o fato de não haver acúmulos de imagens persistentes devidas à persistência retiniana: a cada instante, se percebe a posição presente na tela, a precedente estando “apagada” por mascaramento. (AUMONT, 2002, p. 51).

Em relação ao olhar, Aumont (2002, p. 59) afirma que “o olhar é o que define a intencionalidade e a finalidade da visão. É a dimensão propriamente humana da visão”. Em outras palavras, a visão faz parte do corpo humano, e é por meio deste olhar e no modo de olhar que há uma finalidade de visão. Os desempenhos oculares são como as máquinas fotográficas, em relação à captação e ao processamento da luz e da imagem. Nos olhos, a luz ou imagem refletida penetra no orifício da retina, e assim os olhos enxergam o que lhe é refletido.

Ao olhar para uma tela de cinema, por exemplo, por meio do campo de visão (este é o principal responsável por fazer com que o indivíduo registre e interprete o que está sendo visto), o olhar trabalha com o imaginário e com o real ao mesmo tempo, fazendo com

que o indivíduo se sinta “no interior” do filme, não se retirando, portanto, o foco de cada cena por determinados segundos na tela, já que o próprio cinema tenta despertar em seu espectador a impressão de realidade, a impressão de que tudo é possível. A imagem fílmica contribui para o aumento dessa impressão, mas para que isso ocorra é necessário se ter o efeito de verossimilhança, pois para o espectador acreditar no que vê é necessário que tenha existido ou que sua materialidade seja possível.

Por meio da forma como a imagem é revelada, apesar da palavra forma ser utilizada por diversos contextos, aqui, ela está representada, mesmo que de modo abstrato, sob o aspecto de unidade de amplos sentidos, tendo em vista que a forma funciona como uma unidade pertencente a um conjunto de totalidades. Por exemplo, em uma moldura onde está representado o corpo humano, as formas do corpo humano em unidades, tais como as formas de um rosto, braço, entre outros, essas unidades se unem em forma harmônica para dar sentido amplo de um corpo inteiro, assumido como uma única forma, a forma do corpo humano. Segundo afirma Aumont (2002):

[...] o sentido de “forma global” [...] característica de um objeto representado em uma imagem, ou de um símbolo sem existência como fenômeno no mundo real. Trata-se pois da percepção da forma como unidade: como configuração que implica a existência de um todo que estrutura suas partes de maneira racional. Por exemplo, em uma imagem se reconhecerá a forma de um ser humano, não apenas se for possível identificar um rosto, um pescoço, um torso, braços etc (tendo cada uma dessas unidades, aliás, uma forma característica), mas se certas relações espaciais entre esses elementos forem respeitadas. (AUMONT, 2002, p. 68).

Esta forma, na percepção cinematográfica, apresenta um contorno físico na tela (parte de faixas pretas e a imagem refletida), e nela está contida a figura (imagem) e, ao mesmo tempo, o fundo. Esse conjunto auxilia a melhor aproximação da imagem ao seu espectador. E as imagens cinematográficas estão diretamente relacionadas às experiências semânticas e emocionais do espectador, pois o espectador, ao entrar em contato com as mais variadas cenas, as emoções relacionadas a elas também são diversas, pois é por meio das cenas que o indivíduo pode se identificar com a situação passada na tela. A imagem é o ponto de intermédio entre o espectador e o mundo real, já que as imagens são feitas para uma finalidade, seja para efeitos de propagandas, vender um produto por meio da imagem para atrair um determinado público consumidor; até possíveis discursos emergentes na sociedade, tal como a imagem do corpo ideal e belo.

No caso das imagens em movimento, temos uma das principais materialidades, o olho da câmera. É por meio deste que é controlada cada imagem, cada ângulo a ser exposto, restringindo ou abrangendo o quê e a maneira como podemos visualizar cada imagem ao seu

tempo (antes das imagens serem transmitidas ao espectador final, elas também passam por recortes e várias edições.). A percepção dessa imagem em movimento é concebida pelo suporte câmera, e as sensações e percepções do olhar focam-se no que é permitido ver e sentir. Segundo Baecque (2011, p. 481), a organização cinematográfica é perceptível por meio da câmera: “Registrar, com o auxílio de uma câmera, corpos que se relacionam em um espaço, eis a definição dessa organização formal chamada cinema”. Portanto, é por meio da captação feita pela câmera que se organizam as etapas de cada cena fílmica, com a participação de atores para trabalhar em um enredo narrativo.

Com isso, pode-se compreender que o olhar e a imagem são instrumentos culturais e sociais/históricos que permitem ver/interpretar o simulacro do real de forma mais ampla e “racional”, sendo dependentes um do outro. Segundo Aumont (2002, p.73-74): “[...] a imagem é arbitrária, inventada, plenamente cultural, sua visão é quase imediata. [...] A parte do olho é a mesma para todos, e não pode ser subestimada”.

Em relação à imagem como prática discursiva, Courtine (2013, p. 75) afirma que há modos de olhar sobre o corpo historicamente, um deles foram os tratados fisiognomônicos – que interpretavam a anatomia corporal e lhe impingiam sentidos relacionados a seu caráter de acordo com o aspecto da superfície do corpo: “[...] as tipologias fisiognomônicas são olhar e discurso sobre o corpo, ao mesmo tempo memória do corpo, constituída da percepção hierarquizada de seus diferentes locais significantes”. Em outras palavras, os tratados fisiognomônicos constroem valores semânticos no corpo, trata-se de uma organização discursiva pelo modo de olhar o corpo, que determina usos e se inscreve por meio de práticas discursivas, produzindo, assim, percursos de olhares sobre o corpo, trazendo à tona discursos e costumes de uma sociedade.

Assim, a imagem cinematográfica também produz discursos, pois há nelas formas do que se deve ver, como por exemplo, o padrão de beleza - tendo como parâmetro a beleza norteamericana (com mulheres brancas, loiras e com corpos magros). A relação entre os valores morais dos bons costumes pode ser vista em filmes de heróis e vilões, em que estes merecem ser castigados por sempre praticarem o mal, e aqueles são sempre recompensados por sua bondade e seus bons feitos. Em Manzano (2014), a autora nos traz reflexões a respeito da organização do discurso televisivo, que podem ser consideradas também quando se observa o funcionamento da construção dos discursos no meio cinematográfico:

[...] existe uma organização da existência social dos discursos televisivos, ou seja, uma organização da formulação dos discursos e a construção de uma memória que obedece a uma técnica visual de produção, tornando inseparável o meio discursivo do discurso que circula sobre ele. (MANZANO, 2014, p. 84).

Em outras palavras, a organização da formulação dos discursos segue normas do que deve ou não ser dito/exposto a um determinado público. Sendo assim, a imagem e seus discursos ecoam efeitos de memória que podem ser vistos como parte de uma cultura e de suas práticas sociais. Tendo a materialidade fílmica como a extensão do corpo (enquanto discurso), será marcada discursivamente (com uma visão restrita por meio da câmera – o que apenas a câmera mostra) cada gesto corporal, mostrando, deste modo, o lugar que o sujeito ocupa na história em relação à imagem fílmica, pois será por meio da análise do filme Cinderella que perceberemos discursos e práticas sociais, que permeiam nossa sociedade contemporânea.

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