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2 CORPO, ESPETÁCULO E CONTOS DE FADAS

2.5 CONTOS DE FADAS QUESTÃO DO BELO E FEIO

A origem dos contos de fadas não é tão precisa, mas as histórias foram surgindo como um meio pelo qual os seres humanos entendiam o mundo e as crenças à sua volta. Essas histórias foram surgindo, em primeira instância, de forma oral e passadas de geração para geração. Segundo Silva (2004, p. 61 apud CHAGAS, 2009, p. 18), “os primeiros contos foram criados quando os homens tentavam compreender os diversos fenômenos que aconteciam à sua volta.”.

Com o passar das décadas, essas histórias passaram a ser escritas e, ao mesmo tempo, adaptadas, até chegar aos nossos dias:

Atualmente os contos de fadas fazem parte da vida das crianças e as mais diversas obras que são adaptadas se destinam a esse público. No entanto, as histórias que chegam até à sociedade atual foram contadas e recontadas, sofrendo várias alterações em suas narrativas. (CHAGAS, 2009, p. 18)

5 Comumente, enunciados relativos ao que se consideram más ações são materializados em expressões como

Em relação à estrutura narrativa, Propp (1984) expõe uma metodologia de análise do conto de magia definindo este tipo de narrativa em relação à sua construção estrutural, que, segundo o autor, enquadra sete definições fixas. São elas, resumidamente: o herói, o antagonista (ou agressor), o doador, o auxiliar, a princesa (ou seu pai), o mandante e o falso herói. E além disso, afirma que há trinta e uma funções (ações) a serem realizadas: afastamento, proibição, transgressão da proibição, interrogatórios, informação sobre o herói, embuste, cumplicidade, dano, carência, mediação, início da reação, partida, primeira função do doador, reação do herói, recepção do objeto mágico, deslocamento no espaço, combate, marca do herói, vitória, reparação do dano ou carência, regresso do herói, perseguição, salvamento, chegada incógnito, falsa pretensão, tarefa difícil, tarefa cumprida, reconhecimento, desmascaramento, transfiguração, castigo e casamento. Para o autor, em todos os contos maravilhosos há uma regularidade, uma mesma função (ações das personagens), é ela que torna a composição dos contos estável, apesar dos enredos diferentes. Segundo Propp (1984, p. 133): “A composição é um fator estável, o enredo variável, nos contos maravilhosos encontramos o herói verdadeiro e o falso: o verdadeiro executa a tarefa e é recompensado, o falso não consegue fazê-lo e é castigado”. Estas construções estarão sempre presentes em todo conto de origem maravilhosa, tornando assim, a composição estrutural sempre repetível.

No entanto, não será apenas dentro do conto maravilhoso que há essa estrutura: o cinema registra histórias e, juntamente com elas, focaliza também corpos, que aparecem belos, amáveis, e outros feios e odiados. Para exatamente retomar discursos sobre as facetas de herói e vilão e seus comportamentos, principalmente a luta entre eles, já que em contos de fadas o bem sempre prevalece ao mal, há nessa perspectiva uma representação de um ideal social. Apesar das percepções entre belo e feio serem relativas entre culturas e épocas, há, de certa maneira, uma padronização de beleza e da falta dela. De acordo com Baecque:

É próprio do cinema registrar corpos e com eles contar histórias, o que resulta em torná-los doentes, monstruosos e, às vezes simultaneamente, infinitamente amáveis e sedutores. O registro bruto, tal como a obra de ficção, passa por essa doença e essa beleza, enquanto estas assumem a forma da desfiguração aterradora ou da representação ideal. (BAECQUE, 2011, p. 482).

Não apenas existem traços corpóreos que produzem discursos, mas também há a tríade cinema, corpo e espetáculo, sobre a qual Baecque (2011) afirma: “Existe uma relação ao mesmo tempo imediata e obrigatória: o corpo exposto no cinema é o primeiro traço da crença no espetáculo, portanto o lugar onde o espetacular se investe de maneira privilegiada.”.

Sendo assim, o corpo exposto no cinema, principalmente o cinema hollywoodiano, foi transformado em santuário corpóreo, em que há uma padronização de características para os corpos, e consequentemente por meio do espetáculo, os desejos dos espectadores para serem consumidores de corpos saudáveis, torneados e belos, serem consumidores da aparência dos sonhos. Baecque (2011) sustenta que:

O ficar fechado no estúdio é a condição primeira de uma remodelação dos corpos em obediência aos cânones de uma beleza mais padronizada, de uma estetização das aparências para a qual concorrem, por todos os seus efeitos, as técnicas cinematográficas (iluminação, cenários, e logo jogo de cores), de um controle de efeitos e das atitudes que é estabelecido pelos vigilantes e pudicos códigos de censura de ambos os lados do Atlântico. O cinema para “o grande público” concentra assim a maior parte dos seus meios corporais em torno da fabricação de um glamour padrão, novo horizonte do sonho sensual internacional. (BAECQUE, 2011, p. 488-487).

É graças aos estúdios hollywoodianos, já que Hollywood foi historicamente demarcada como a cidade dos sonhos, onde tudo é possível, que a ideologia da transformação dos sonhos em realidade/felicidade ganhou sua hegemonia nas mais diversas culturas. Na maioria dos filmes hollywoodianos, temos a figura da mulher ideal em comportamento e, ao mesmo tempo, tentadora/sedutora em beleza exterior. Isso se deve à escolha de belos atores e atrizes em interpretar seus papéis e, ao mesmo tempo, ao capitalismo em prol do consumo. Baecque (2011) diz que:

As estritas regras do figurino, dos gestos, da conveniência, como também as do happy end, têm como duplo efeito uma certa uniformização e uma não menos neutralização dos afetos e dos desejos ligados à representação cinematográfica da feminilidade. (BAECQUE, 2011, p. 492).

Na perspectiva da feminilidade, há o que se designa como características de beleza, difundindo assim a representação do glamour e sedução dos corpos cinematográficos para o real. Essa representação ajuda a promover o consumo dos mais diversos produtos estéticos pelos indivíduos do sexo feminino, por conta do desejo de terem uma vida completa (por meio do laço matrimonial e filhos) e feliz alcançada por meio da aparência física.

Já a noção do feio e do monstro vem sendo historicamente discutida e estudada. De acordo com Courtine (2013), aparições monstruosas aconteciam em feiras parisienses no século XVII, sendo consideradas o espetáculo das aberrações e anomalias. Courtine (2013, p. 87) afirma que “A história da monstruosidade como espetáculo, [...] começa verdadeiramente, para além das peregrinações de curiosos ocasionadas pelos nascimentos monstruosos, com sua teatralização nas feiras”.

Nesse século, havia o espetáculo e o comércio de anormais, considerados monstros, cujo principal intuito era o de entreter a massa europeia e afins. Por meio deste

teatro da monstruosidade, o autor nos mostra que, nessas peças teatrais, há uma convenção de operações para a forma de se apresentar ao público, um cenário complexo típico para o efeito desejado, de horror; Courtine (2013, p. 268) afirma que “O teatro da monstruosidade obedecia a dispositivos cênicos rigorosos e a montagens visuais complexas”. Assim, o espectador conseguiria facilmente identificar quem era o monstro, a aberração contida nesse espetáculo, por meio do cenário, das vestimentas e do papel que esse monstro exercia nas peças teatrais. Courtine (2013) relaciona a monstruosidade com o poder de normalização, conceituado por Foucault (1975), que afirma que a emergência do poder dessas normas se dá por meio de jogos de verdades e valores. Foucault (1975) afirma que:

Esta emergência do poder de normalização, a maneira como se formou, a maneira como se instalou, sem que jamais se apoiasse em uma única instituição, mas pelo jogo que chegou a estabelecer entre diferentes instituições, estendeu a sua soberania em nossa sociedade[...]. (FOUCAULT, 1975, p. 24 apud COURTINE, 2013, p. 260).

Dito de outro modo, é por meio da representação da monstruosidade que se tem o estabelecimento da norma, todos os que estiverem dentro de um jogo de verdades eludido por determinadas regras e valores sociais, são considerados normais, aos demais, que fogem dessa norma, resta-lhes a designação de anormal, como os monstros. A eles, o espaço social se resume a expor sua monstruosidade como entretenimento e como exemplo de “não ser”, no caso dos contos de fadas.

Gradativamente, esse aspecto monstruoso ganha um grande número de significações entre os corpos, comportamentos e olhares. A vastidão da monstruosidade corporal para o comportamento é permeada de formas discursivas, seguindo o campo de representações. Em outras palavras, o monstro é uma construção cultural, por meio de estereótipos de anomalias tidas discursivamente no social. Segundo Courtine (2013, p. 260), “[...] o anormal (e isto até o fim do século XIX, até o século XX, talvez) é no fundo um monstro cotidiano, um monstro banalizado”.

Ainda segundo o historiador, o monstro na tela cinematográfica sofreu atualizações (o estúdio da Disney foi um dos principais responsáveis por isso), deixou de ter o aspecto medonho e foi reutilizado para comover as massas, utilizar um eufemismo no discurso desses anormais, dando um efeito mais humano para os monstros, mas ainda preservando o aspecto comportamental de práticas de ser mau. Courtine (2013) afirma que:

O triunfo comercial da empresa Disney, na segunda metade do século XX, assinala o fim da separação do espetáculo da deformidade corporal de suas remotas origens carnavalescas, o recalque em escala industrial das sensibilidades que ainda ontem procuravam a exposição dos olhares ao choque perceptível do corpo anormal, a entrada na fase terminal da pasteurização da massa da cultura popular. Os monstros

se dividem agora entre bonzinhos extraterrestres e ogros benevolentes[...]. (COURTINE, 2013, p. 329).

As distinções entre belo e feio sofrem modificações de acordo com culturas e momentos históricos, no entanto, alguns sentidos permanecem e podem ser considerados, segundo Eco (2007):

Se examinarmos os sinônimos de belo e feio, veremos que, enquanto se considera

belo aquilo que é gracioso, prazenteiro, atraente, agradável, garboso, delicioso,

fascinante, harmônico, maravilhoso, delicado, leve, encantador, magnífico, estupendo, excelso, excepcional, fabuloso, legendário, fantástico, mágico, admirável, apreciável, espetacular, esplêndido, sublime, soberbo; é feio aquilo que é repelente, horrendo, asqueroso, desagradável, grotesco, abominável, vomitante, odioso, indecente, imundo, sujo, obsceno, repugnante, assustador, abjeto monstruoso, horrível, hórrido, horripilante, nojento, terrível, terrificante, tremendo, monstruoso, revoltante, repulsivo, desgostante, aflitivo, nauseabundo, fétido, apavorante, ignóbil, desgracioso, desprezível, pesado, indecente, deformado, disforme, desfigurado. (ECO, 2007, p. 17-19, grifo do autor apud CHAGAS, 2009, p. 24).

Sendo assim, a noção do feio está entrelaçada com o ser/agir de modo mau, segundo Eco (2007, p. 25): “[...] acabava-se por se acentuar que se alguém é feio, é sempre mau.”. Desta forma, ser feio está, principalmente, relacionado ao modo de agir dos sujeitos, às suas ações praticadas socialmente, o que acaba construindo um sujeito feio também na aparência.

Visto deste modo, observamos que, em comparação com os sentidos produzidos e cristalizados socioculturalmente entre belo e feio, instaura-se uma ligação direta entre herói-belo e vilão-feio, tanto no aspecto físicos quanto à moral estabelecida por cada estereótipo. Essa perspectiva é uma das responsáveis por produzir práticas sociais referentes a ser bom e belo, principalmente, na relação do culto ao corpo.

Essas transformações e persistência do culto ao belo têm se estabelecido entre o social, sua identidade e o consumo. Giddens (2002, p. 36) afirma que “[...] mudanças em aspectos íntimos da vida pessoal estão diretamente ligadas ao estabelecimento de conexões sociais de grande amplitude [...]”. Dito de outro modo, os efeitos produzidos discursivamente no social influem diretamente no modo de ser e agir dos indivíduos.

Essa identidade é organizada para o consumo, sendo orientada por aspectos emocionais ligados à sedução, pelos desejos sempre crescentes e voláteis, presentes na mídia e em aspectos universais, tais como a busca pela felicidade e sucesso na vida. Bauman (2000, p. 90) afirma que “[...] uma sociedade de consumidores se baseia na comparação universal – e o céu é o único limite”. Assim, o indivíduo em busca de uma identidade, passa a ter bens e

produtos para se tornar de certo modo superior aos demais, ansiando pela busca do que não tem, sempre insaciável e desejante.

Para Bauman (2000), há duas sociedades, a sociedade produtora e a consumista. A sociedade dos produtores em nossa atualidade coloca como norma, para a sociedade consumista, ter um corpo saudável e fitness, e esses consumidores serão levados a adaptarem seus corpos para o efeito do cuidado de si e do corpo, saciando o anseio de consumo e posse, sendo considerado um corpo saudável e ao mesmo tempo belo. A saúde é considerada pelo autor como um conceito normativo que demarca os limites entre a “norma” e “anormalidade”, designando costumes e práticas sociais.

O conceito de saúde é assim definido por Bauman (2000, p. 91): “Saúde é o estado próprio e desejável do corpo e do espírito humano [...]. Refere-se a uma condição corporal e psíquica que permite a satisfação das demandas do papel socialmente designado e atribuído - e essas demandas tendem a ser constantes [...]”. Em outras palavras, a identidade de um corpo aparentemente saudável/belo poderá ser concretizada ao adquirir os produtos estéticos e fitness presentes no mercado, a partir de estratégias de marketing, que todos podem possuir ou comprar, deste modo alcançado o tão sonhado corpo ideal, alcançando um corpo narcisista.

Na perspectiva de uma aceitação da identidade de um eu, o social tende a estabelecer normas sobre o que é belo e apreciado, a forma de (re)construir um sujeito às normas e práticas estabelecidas socioculturalmente, fazendo com que o eu se identifique como um “não-sujeito” que está inadequado às normas vigentes, e por isso, torna-se altamente alvo das exigências do social e cultural em padrões de beleza e também em práticas discursivas e ações sociais.

Com isso, tem-se a relação entre o ser/essência e parecer/aparência, que para ser feliz conforme os discursos cristalizados socialmente, é necessário ser bom, belo e ter valores morais condizentes com o que é dito e mostrado, só assim parece que a busca pela felicidade se torna tangível.

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