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CAPÍTULO 3 – A TALIDOMIDA E A DEFICIÊNCIA NA IMPRENSA COMO

3.1 ANÁLISE DA MÍDIA IMPRESSA SOBRE TALIDOMIDA

A compreensão sobre deficiência e pessoa com deficiência hoje é muito distinta da visão construída para o período analisado, por isso seria equivocado tentar

85 Foucault cita um caso em que a problemática da teratologia no Direito foi anterior a sua incorporação no campo da Medicina. Ele cita o manual escrito pelo padre jesuíta Francesco Emanuele Cangiamila. Segundo Foucault “Em 1745, ele publicou um texto que se chama Traité d’embryologie

sacreé, em que vocês têm a teoria jurídico-natural. Jurídico-biológica do monstro” (2001, p. 82).

Deste ponto em diante Foucault aborda questões relativas à construção de monstruosidade, como a criminalidade, o incesto, a sexualidade, a antropofagia etc, que não se relacionam às discussões travadas por esta pesquisa, sem deixar de se reconhecer a importância da obra (Os Anormais) como momento em que Foucault se dedica a analisar as formas de poder tendo por base relações individuais e não sociais, gerais ou hierárquicas, como se representam através de toda análise que ele desenvolve sobre biopoder.

compreender a realidade da época como fenômeno que se aponta como apropriado ou inadequado. Contudo, aqui se ressalta que a imprensa, utilizando-se de uma linguagem acessível ao grande público, atuou de forma a estigmatizar aqueles que foram atingidos por um novo fenômeno de deficiência descoberto em fins de 1961 e relacionado ao consumo do fármaco talidomida. Nesse cenário, a imprensa agiu de forma a questionar os limites da ciência e da medicina aliadas à vida moderna, e o fez por meio da linguagem utilizada em suas publicações. No entanto, através dessa mesma linguagem e posicionamento, a imprensa acabou reforçando a imagem negativa daqueles que foram afetados pelos malefícios da ciência, como se eles fossem o próprio malefício.

A análise das significações atribuídas à deficiência através da mídia impressa e a compreensão da deficiência por síndrome de talidomida auxiliam no entendimento do lugar da pessoa com deficiência na sociedade. Com relação às notícias de jornais, o uso da imprensa periódica como suporte principal da pesquisa, no caso do tema aqui estudado, permitiu identificar uma determinada cronologia dos eventos ligados à talidomida no Brasil, tema ainda carente de investigações históricas e sociológicas no país. Como bem observou Zicman (1985), uma das virtudes de se tomar jornais como fonte documental reside no fato de que a periodicidade dos mesmos transforma-os em “[...] ‘arquivos do cotidiano’ registrando a memória do dia-a-dia, e este acompanhamento diário permite estabelecer a cronologia dos fatos históricos”. (p. 90). Vale destacar a observação de Martini (2011) quanto aos hábitos de leitura de jornais impressos entre a população do Rio de Janeiro. Segundo ela, de acordo com os dados do IBOPE da década de 1950, dentre os mais lidos estavam o Diário

de Notícias, o Correio da Manhã, o Última Hora e o Jornal do Brasil. Este último

seguiu com grande popularidade de leitura ao longo dos primeiros anos da década de 1960, a partir da reformulação ocorrida no layout do periódico em 1959, mudança essa tida como a “[...] modificação estrutural e gráfica mais célebre na história dos jornais impressos brasileiros.” (FONSECA, 2008, p. 59).

Apesar de esta tese não estar focada na “[...] leitura das condições pelas quais as informações emergem em determinado produto jornalístico, convertendo um fato ou assunto em notícia.” (PONTES; SILVA, 2012, p. 50), manteve-se atenção com relação a certos aspectos formais/materiais das fontes, pois, uma vez escolhida a mídia impressa como principal suporte para a coleta de informações, algumas questões relativas a ela pareceram pertinentes, tais como:

[...] o reconhecimento da carga valorativa das capas, manchetes e chamadas; o recorte temático e de organização proposto pelas editorias; a identificação dos gêneros jornalísticos; o processo discursivo da diagramação/edição; a observação da estrutura interna das matérias; a organização de títulos e chamadas; a presença de boxes, suítes, fotografias, gráficos e tabelas; os tipos e a hierarquia das fontes; a assinatura e as demais marcas da apuração. (PONTES; SILVA, 2012, p. 52).

Os jornais pesquisados levaram aos seus leitores, no ano de 1962, inúmeras representações dos acontecimentos que envolveram a talidomida, destacando sobremaneira os aspectos científicos do fenômeno, com ênfase na questão dos efeitos teratogênicos da droga no corpo dos bebês. Nos contornos deste capítulo, com ênfase nas notícias em que é possível verificar quais atitudes foram tomadas para a retirada de circulação da droga naquele momento. Além disso, também se entende que os periódicos impressos revelam facetas sobre o tema que não estão presentes em outros documentos. (DE LUCA, 2005).

Cruz e Peixoto alertam para um indicativo que pode conduzir ao erro na pesquisa com jornais:

Se uma grande tiragem geralmente indica uma publicação com penetração significativa e forte estrutura comercial, uma tiragem menor não identifica imediatamente uma publicação com fragilidade comercial, podendo ser indício de sua especialização ou de sua atuação num âmbito social mais delimitado e restrito. (2007, p. 263).

Estudos de recepção desses veículos, sejam jornais ou mesmo revistas semanais, são mais difíceis de serem realizados. Isso não exime a pesquisa de conter inserções sobre a circulação dos periódicos, preço e tendência de público, pois sinalizam-se, assim, alguns aspectos relevantes. Para o período analisado, Andrade e Cardoso (2001, p. 245), referindo-se ao conteúdo sobre ciência e tecnologia nas páginas de revistas, explicam que, “[...] muito embora não seja possível precisar exatamente a penetração social, tudo indica que essas matérias atingiam as classes alta e média”. Martini (2011), através de análise com os arquivos do IBOPE, explica que para a década de 1950 cerca de 71% da população carioca tinha como hábito ler jornais, inclusive, às vezes, mais do que um por dia. A autora informa que a revista O

Cruzeiro86 era habitual em casa, considerando que a cada 100 leitores, a maior

porcentagem estava concentrada nas classes C1 e C2.87

Tais periódicos, entendidos como publicações da grande imprensa88, foram

editados num contexto em que o jornalismo havia se profissionalizado e alterações foram feitas nas condições técnicas de produção vigentes, tornando o hábito da leitura mais atraente. Bahia (2009) caracteriza o jornalismo noticioso, que foi tornando-se predominante no período, em contraposição ao jornalismo opinativo, existente até meados do século XX:

Nesse horizonte, aliás, é que floresce o que se pode chamar de um novo jornalismo – caracterizado como um processo que, a partir dos anos 50, se incorpora ao conceito de ciência do comportamento pelo peso de sua contribuição à transmissão de ideias, ao papel dos grupos coletivos que intercambiam mudanças e à reorganização da sociedade. (p. 271).

Ainda de acordo com a mesma obra, durante os anos 1950, a imprensa brasileira passou por várias alterações que objetivavam sua modernização e consequente ampliação de tiragens, permitidas através de uma série de mudanças estéticas, técnicas e gráficas. Em alguns jornais brasileiros analisados, sobretudo aqueles editados no Rio de Janeiro, tais mudanças ficam bem evidentes, como em

Última Hora, Jornal do Brasil e Diário Carioca.89 A primeira página recebeu atenção

especial: incorporação constante de fotografias, estabelecimento de padrão na largura das colunas e ordem hierárquica dos assuntos condizente com seu valor jornalístico.90

86 De acordo com Andrade e Cardoso, O Cruzeiro tinha uma postura ideológica conservadora, “[...] próxima da corrente do pensamento denominada neoliberal – alimentando verdadeira aversão aos monopólios de Estado, a pretexto de salvaguardar os interesses dos capitais privados nacionais e estrangeiros.” (2001, p. 251).

87 A pesquisa de Martini (2011), embora não apresente uma análise sistemática, ano após ano, da década de 1950, baseou-se em pesquisas encomendadas do Serviço de Controle de Venda Avulsa de Jornais do IBOPE. Ainda segundo a pesquisa, é possível identificar que entre os jornais mais lidos pelos cariocas estavam: Diário de Notícias, Correio da Manhã, O Globo e Diário da Noite.

Última Hora era mais lido entre classes menos abastadas e O Globo preferido por mulheres e

classes ricas. Já em São Paulo, as preferências eram O Estadão, Folha da Manhã, Correio

Paulistano, A Gazeta e Última Hora, embora 50% dos entrevistados alegassem não ler nenhum

jornal no período. A pesquisadora destaca que a revista O Cruzeiro tinha boa aceitação, mas não dá maiores informações a esse respeito.

88 Cruz e Peixoto (2007) explicam que por “grande imprensa” entendem estruturas empresariais com grandes tiragens e ampla visibilidade pública.

89 De acordo com Zicman (1985), o nome do jornal é indicativo de informações preciosas sobre a sua história, o seu conteúdo e o seu público, fator para o qual se atentou durante a análise das notícias. 90 Conforme Bahia, “[...] como acontece em Última Hora e no Diário Carioca, surgem um novo conceito de notícia e um novo design que retificam padrões editoriais e gráficos tradicionais no jornalismo diário e introduzem concepções de estilo formalmente em choque com as práticas vigentes no país. A repercussão dessa revolução é nacional e internacional.” (2009, p. 378).

Além das novas práticas adotadas nas redações, maquinários antigos foram substituídos por tecnologias atualizadas.91 Mesmo com uma série de transformações

visando aprimorar a produção jornalística, entende-se que à imprensa daquele contexto atribuía-se o papel de reproduzir os acontecimentos, retratando a realidade, a partir de elementos que eram julgados fidedignos, considerando que tal realidade seria objetiva e totalmente apreensível. Tudo isso tendo como pressuposto a neutralidade, percebida através de informações quantitativas, reprodução de dados divulgados por fontes oficiais, reprodução de entrevistas com autoridades científicas, etc. Contudo, entende-se que o teor dos periódicos faz deles não apenas um mero meio de informações, mas também fonte histórica como qualquer outra, passível de análise e questionamento pelo historiador e por outros cientistas sociais.

As notícias foram analisadas uma a uma, tendo como premissa a análise de episódios ligados diretamente à história da talidomida e seus significados, e foram alocadas em uma perspectiva cronológica. Notou-se um aspecto predominante nas publicações observadas referentes à década de 1960: a total ausência do discurso das famílias dos atingidos pela iatrogenia medicamentosa; e, posteriormente, às décadas de 1970 e 1980: a ausência das pessoas diretamente atingidas em seus corpos pelos efeitos deletérios da droga. A cobertura foi baseada em fontes oficiosas, de autoridades governamentais ou científicas no assunto reproduzindo um conhecimento institucional acerca do tema.

As pessoas com deficiência e seus familiares tiveram, então, seus discursos excluídos da mídia impressa. Ao que parece, os veículos falavam sobre as pessoas com deficiência sem dirigir-se a elas ou mesmo abrir espaço nos impressos para as suas demandas, as suas versões sobre o evento ocorrido e demais falas específicas sobre as suas condições de deficiência por talidomida. Nesse sentido, concorda-se com Cruz e Peixoto, ao destacarem que

[...] a imprensa não se situa acima do mundo ao falar dele. Também não se trata de ir atrás de uma representação do mundo que se articula fora do

91 Em referência ao uso de equipamentos como a máquina de escrever: “Para se ter uma noção mais penetrante do impacto da revolução no jornalismo a partir da reforma do Jornal do Brasil, convém lembrar que, em meados dos anos 50, na redação de grandes jornais brasileiros ainda se tem por hábito escrever a mão. Só então desembarcam nas mesas dos repórteres máquinas em quantidade suficiente para todos.” (BAHIA, 2009, p. 381). Bahia comenta, ainda, que, antes dessas reformas, os jornais não possuíam padrão de normas para redação e diagramação, bem como não contavam com critérios de proporcionalidade entre anúncios e matérias. As informações, até então, ou eram obtidas por fontes oficiosas ou fruto de textos opinativos que tinham, para aquele momento, pouco do profissionalismo jornalístico, conforme entendido atualmente.

veículo e aí se clarifica, ou mesmo, de buscar uma ideologia construída pela classe dominante e que aí ganha visibilidade. (2007, p. 258).

Chamou atenção a vinculação da monstruosidade conferida pelos jornais à talidomida na década de 1960. Pelas representações construídas nos jornais, se delineiam e se reforçam distinções entre as noções de sujeito “normal” e de “monstro”, “defeituoso”, “aleijão”, entre outros termos utilizados pela mídia. Essas palavras são muito mais do que terminologias que definem um estado físico, pois inserem-se no campo do simbólico, ao mediarem relações e estabelecerem compreensão sobre reconhecimento e pertencimento. Assim, passa-se agora para a análise das representações construídas sobre as crianças com síndrome de talidomida através dos jornais.

3.2 REPRESENTAÇÕES DOS BEBÊS COM DEFICIÊNCIA POR TALIDOMIDA NOS