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CAPÍTULO 4 – TALIDOMIDA NO PÓS-TRAGÉDIA NOS JORNAIS: SILÊNCIO E

4.2 RESPONSABILIZAÇÃO NO BRASIL: NO MEIO DO CAMINHO, UM GOLPE

4.2.1 Responsabilidade e maternidade: culpa, aborto e eutanásia

E por tudo que devora, E por inchar a cabeça Deste feto que não chora,

É preciso que pereça Esta Hiroshima de agora. Pereça também o pai Que não é do filho morto. Mas é a moral que impede

a mãe de fazer abôrto. Pereça o pai da invenção Construída para a morte. E morra do coração Que o mundo terá muita sorte. (“Hiroshima na farmácia”,

L. P. de Castro, Diário de Notícias, 17 mar. 1963, p. 3) Ainda sobre a produção de sentido relacionada à culpabilização em torno do tema da talidomida, até mesmo uma das vítimas foi responsabilizada: a mãe.

Quando milhares de mães deram à luz de bebês defeituosos na década de 1960, devido ao tranquilizante talidomida, descobriu-se que as parturientes expostas a drogas durante a gravidez punham em perigo a vida de seus filhos por nascer. Presumiram os médicos na época que somente a mãe é a

responsável pelos defeitos induzidos quimicamente. O pai era

considerado inocente, na pior das hipóteses, devido a seu estilo de vida, drogas, fumo ou bebida, afetaria sua própria saúde, mas não a do filho. (GAZETA DA FARMÁCIA, 11 nov. 1979, p. 2, grifo nosso).

O depoimento de Angelina Naccarato, mãe de um dos atingidos pela talidomida, presente no documentário Tá faltando alguma coisa, é bastante elucidativo no que se refere à culpabilização: “[...] quando nascia o bebê deficiente, logo a culpa recaía sobre alguém [...].” (MAXIMINO; TABOADA, 2012). Inicialmente, quando pouco se sabia sobre o efeito teratogênico do fármaco, os jornais deram indícios de que a culpa pela geração dos “bebês-monstro” era materna, sugerindo que a deficiência poderia ser causada pela mãe. Ao ser comprovada a relação entre a talidomida e a teratogenia, de alguma forma também persistia a responsabilização incidindo sobre as mães, mas agora pela ingestão do fármaco. Brynner e Stephens observaram que “[...] uma vez que a causa da epidemia tornou-se pública em novembro de 1961, as mães poderiam e sentiram culpa por tomarem o medicamento quando estavam grávidas.”107 (2001, p. 65, tradução nossa). E nos jornais brasileiros

isso se materializou:

Trágica e recente experiência com a Talidomida chamou a atenção dos médicos e também da maioria dos leigos, para o fato de que a mulher não deve tomar nenhuma nova droga [...] a menos que aconselhada pelo médico. Se todas as mulheres tivessem observado esse preceito há anos, hoje nenhuma delas estaria sofrendo o desgosto de ter um filho deformado pela Talidomida. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 8 fev. 1964, p. 2).

A mulher das camadas médias da sociedade brasileira, nos anos 1960, estava experimentando outras vivências que não aquelas restritas ao cuidado do lar e da família. Pedro aponta que, nesse período, “[...] a presença feminina cada vez mais forte no mercado de trabalho.” (2003, p. 253), aliada a outros fatores, permitiu diversas mudanças de ordem cultural. Pedro observou, assim, a retração no número de filhos durante a década de 1960.108 Isso pode ser associado à carreira profissional, ao

107 “Once the cause of epidemic became public in November 1961, mothers could and did feel guilty about taking a medicine while they were pregnant.” (BRYNNER; STEPHENS, 2001, p. 65).

108 Pedro demonstra que “[...] no Brasil a pílula anticoncepcional e o DIU foram comercializados sem entraves desde o início da década de 60.” (2003, p. 241), e isso representou uma “[...] sensível queda na natalidade ocorrida no Brasil a partir de 1960.” (2003, p. 240).

ensino superior, a novos cuidados de saúde, entre outros aspectos, para além da vida doméstica de mãe e esposa: “O processo de urbanização, o estímulo ao consumo, os novos meios de comunicação, a política previdenciária e de saúde proporcionaram um ambiente propício à demanda por formas de regulação da fecundidade.” (PEDRO, 2003, p. 250).

De forma que, “[...] a maternidade já não [era] mais o destino obrigatório.” (PEDRO, 2003, p. 250), sendo assim, também não precisa ser vivenciada em todos os seus aspectos. Nesse caso, a talidomida tornou-se uma alternativa no combate aos enjoos matinais e outros desconfortos próprios desse período da vida feminina. Isso não significava que uma gama significativa das mulheres brasileiras utilizasse a pílula anticoncepcional, mas pode ser um indicativo de que os desconfortos gerados pelo seu consumo fossem combatidos pela utilização da substância.

Dois casos que tiveram vultosa visibilidade na mídia impressa da época evidenciaram algumas dessas características ligadas às mulheres modernas que trabalhavam fora e consumiam a talidomida: o de uma mãe norte-americana, Sherri Finkbine, e o de uma belga, Suzanne Vandeput. A primeira solicitou à justiça dos EUA autorização para a prática de aborto, quando a associação entre a droga e a teratogenia ganhou notoriedade na mídia internacional. Não conseguindo essa abertura no país de origem, ela se dirigiu, com o marido, para a Suécia, onde praticou o aborto de forma legalizada. Os jornais acompanharam esse caso e teceram suas interpretações sobre ele entre agosto de 1962 e janeiro de 1963:

A sra. Sherry Finkbine, norte-americana, atormentada pela possibilidade de

dar à luz um monstro, solicitou autorização legal para fazer um abôrto

clínico. Mas nos Estados Unidos, o abôrto [sic] só é permitido quando a vida da mãe se acha em perigo. Por isso, a Sra. Finkbine embarcou para a Suécia, onde a legislação lhe permitirá a consecução de seu objetivo. (NOVOS RUMOS, 17-23 ago. 1962, p. 8).

O segundo caso, que aconteceu na Bélgica, foi o de Suzanne Vandeput, levada ao Tribunal do Júri sob a acusação de ter assassinado sua filha com sete dias, por esta ter nascido sem os braços em decorrência das alterações genéticas produzidas pela talidomida. Em uma terceira acepção, a culpa foi imputada às mães que optaram pelo aborto ou pelo infanticídio.

Brynner e Stephens evidenciaram um dos argumentos utilizados no tribunal de Alsdorf, Alemanha, na ocasião do julgamento contra o fabricante da substância. Os autores indicam que a defesa expôs um argumento bastante controverso:

“Provavelmente o argumento mais inesquecível apresentado pelos inventores da talidomida era que as deformidades de todos os bebês eram culpa das próprias mães, por tentativas mal sucedidas de aborto.”109 (2001, p. 70, tradução nossa).

Os jornais não se posicionam abertamente sobre o aborto/eutanásia, pois transitam pelo universo da deficiência, por vezes tendendo para a percepção de que as mães poderiam conviver com tais crianças. Em algumas das notícias apresentou- se a visão da Igreja Católica para os casos Finkbine e Vandeput. O semanário Novos

Rumos expressou a responsabilização na visão do Vaticano:

O Vaticano não condena os responsáveis. Mas, desvia-se do problema e condena a infeliz mãe norte-americana que busca, na extrema solução do

abôrto, evitar que venha a povoar o mundo mais um ser monstruoso, a mãe que procura evitar que sua própria existência se transforme num rosário de martírios e sofrimentos. Que procura evitar que a própria sociedade que fabrica monstros venha mais tarde a execrar seu filho, a transformá-lo em um pária no meio de crianças saudáveis. (NOVOS RUMOS, 17-23 ago. 1962, p. 8, grifos nossos).

O tema da eugenia foi associado aos casos conhecidos de aborto: “Eugênico – Poder-se-á qualificar o caso das gestantes vitimadas por medicamentos contendo Talidomida e que por isso provocam a expulsão do feto, de abôrto [sic] eugênico.” (TRIBUNA DA IMPRENSA, 16 ago. 1962, p. 5).

Independente dos atos que essas mães praticaram (aborto, infanticídio ou eutanásia), a compreensão que se faz sobre a divulgação desses casos na mídia impressa é que, de alguma forma, associou-se à figura da mãe responsabilidade pelo nascimento dos filhos com as deficiências congênitas.