• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 6 – DIREITOS PARA PESSOAS COM SÍNDROME DA TALIDOMIDA

6.3 NOVAS LUTAS: A CRIAÇÃO DA ABPST E A LEI Nº 8.686/93

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2014) explica que a luta do Movimento Político das Pessoas com Deficiências, desde a década de 1970, buscou imprimir à luta o caráter protagonista em suas próprias vidas e para o exercício da cidadania. Além disso, os direitos conquistados visavam à

144 Ibid.

145 Pereira (2010) destaca que, para esse momento histórico, “[...] os ataques conservadores contra os avanços constitucionais de cunho social se fortaleceram com a entrada no país da ideologia neoliberal, durante o governo Collor [de] Mello (1990). Nesse momento, caminhou-se vigorosamente para o desmonte (e não apenas a contrarreforma [...]) do embrião do Estado de Bem-Estar universalista e equânime desenhado na Constituição” (p. 16). Nesse sentido, as práticas neoliberais tornaram-se “[...] absolutamente contrári[as] ao fortalecimento da incipiente cidadania social conquistada com a redemocratização do país e consignada na Carta Magna”. (PEREIRA, 2010, p. 16).

proteção das pessoas em situação de maior vulnerabilidade. A tônica do discurso deixava de incidir sobre o direito à igualdade e passava a incorrer sobre o direito à diferença e à diversidade, todos esses respaldados pela noção de reconhecimento – da deficiência, dos direitos próprios a essa condição e das necessidades decorrentes das complicações da própria deficiência e do envelhecimento.

Portanto, a conquista do direito ao reconhecimento, através do recebimento da pensão, tem um caráter dúbio, pois a implementação da Lei de 1982 pode ter sido considerada vitoriosa, mas a crise econômica na década de 1980, entre outros fatores, colocou em questão o direito recebido. Tal conjuntura desencadeou um novo processo de luta, agora protagonizado por outros atores, as próprias pessoas com deficiência por talidomida, que pleitearam o reajuste da pensão, entre outros direitos.

Em entrevista concedida à jornalista Wanessa Veloso (2014), a fundadora da ABPST, Claudia Maximino, explicou as motivações para a criação da associação:

Em princípio buscava os meus direitos apenas. Tendo em vista ter saído de uma faculdade e uma pós-graduação e o mercado de trabalho não me deixava mostrar meu potencial.

Consegui logo no primeiro ano de movimento o reajuste e inclusão de pagamento de próteses e órteses, assistência médica. Isso motivou a continuar a buscar outros direitos. (informação verbal).146

Nesse sentido, alia-se o conteúdo dos dados à teoria do reconhecimento de Honneth (2003), o qual indica que algumas formas e manifestações de desrespeito e injustiça social motivam a luta por reconhecimento. Segundo o autor, essas lutas se caracterizam por situações em que “[...] experiências individuais de desrespeito [...] podem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de reconhecimento.” (HONNETH, 2003, p. 257). Isso fica evidente nas palavras de Claudia Maximino: “E ano após ano fomos conquistando leis, portarias, resoluções. Muitas ainda, apesar de sancionadas, não são cumpridas. O que nos faz continuar na luta.” (informação verbal).147

A nova articulação da associação, face ao contexto de inflação em descontrole, fica evidente nas palavras de Claudia:

Quando eu comecei a ir atrás, aí saiu a pensão... aí eu me formei e não estava recebendo a pensão ainda e também não conseguia trabalho, aí acabei pensando: “Bom... vou correr atrás!” Juntei algumas pessoas [da primeira geração da talidomida] e começamos a procurar prefeitura, estado, o Covas...

146 Entrevista concedida por Claudia Marques Maximino a Wanessa Veloso, em 2 de maio de 2014. 147 Ibid.

aí nos responderam: “Para vocês obterem alguma coisa... vocês têm que ser uma Associação”.

Foi nesse momento que fundei a Associação. Mas na verdade a gente só queria o aumento... então montamos a Associação... e aí a coisa engrenou... mas foi uma vitória... porque quando eu vi lá... que o [ex-presidente] Figueiredo assinou, eu fiquei super contente... [...] só que depois a gente demorou muito para receber... (informação verbal).148

A demora do recebimento da pensão e a diminuição do valor incidiram diretamente sobre a vida das várias pessoas com a síndrome. Assim, se por um lado as políticas sociais para pessoas com deficiência foram ampliadas, elas pouco responderam às necessidades cotidianas daquele grupo social.

A mesma interpretação de Claudia é destacada pela mãe de uma das pessoas com a síndrome da primeira geração, considerando que, com o passar dos anos. Explica a depoente que, após a criação da Lei 7.070/82, as pessoas da primeira geração

[...] começaram a receber uma miséria de pensão, sei lá se aquilo poderia ser chamado de pensão... eu não me conformava de ir para o banco e receber. Era assim, algo que [correspondia a] um pacote de cigarros (lembro que eu fazia essa analogia...), era o valor dessa enorme pensão... até um dia, que eu lendo o jornal vi uma coluna convocando pessoas lesadas pela talidomida... e eu falei “nossa... isso é um milagre”. Peguei o telefone rápido. (MAXIMINO; TABOADA, 2012).

Nesse contexto, a luta foi retomada e um novo movimento emergiu, a ABPST. Nos termos de Honneth (2003),

[...] os sentimentos de injustiça e as experiências de desrespeito, pelos quais pode começar a explicação das lutas sociais, já não entram mais no campo de visão somente como motivos da ação, mas também são estudados com vista ao papel moral que lhes deve competir em cada caso no desdobramento das relações de reconhecimento. (p. 266).

Flávio A. W. Scavasin, então vice-presidente da ABPST, indica que, por ocasião da emergência da luta por reconhecimento e direitos, “Começaram a sair matérias sobre as vítimas da talidomida no Brasil, sobre as dificuldades das vítimas, e isso começou a pressionar, a nos ajudar a pressionar o governo com relação aos benefícios e às necessidades das vítimas.” (MAXIMINO; TABOADA, 2012).

Novamente, aqui se retoma o papel da imprensa. De acordo com as informações coletadas, entende-se que esta foi utilizada como um espaço para

pressionar a classe política e localizar novos casos de pessoas acometidas pela síndrome. Conforme o site da Associação,

A atuação da ABPST começou em maio 1991, com a veiculação de um anúncio em jornal por iniciativa de Claudia M. Maximino, que chamava outras vítimas da Talidomida para lutarem por seus direitos, como ela própria vinha fazendo. A fundação legal da ABPST foi em 05 de outubro de 1992. (ABPST, 2017).

Importante destacar a utilização da mídia como estratégia de mobilização da associação. Uma questão que apareceu fortemente nos depoimentos dos familiares e das próprias pessoas com a síndrome foi a falta de informação sobre essa tipologia de deficiência. A ausência de uma ampla divulgação sobre os riscos do consumo do medicamento e mesmo sobre a história da descoberta da iatrogenia medicamentosa levou diversos interessados a utilizarem os meios de comunicação para identificação e localização de outras possíveis vítimas que ainda desconhecessem a causa de sua deficiência. Sobre isso, Claudia Maximino destaca que, quando “[...] descobri que ainda nasciam vítimas, aí sim ficamos mais engajados a brecar tudo isso e obrigar o governo a fazer de forma correta a utilização da droga.” (informação verbal).149

FIGURA 6 – ANÚNCIO DA ABPST NO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO

FONTE: O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 7, 21 abr. 1992.

De forma a ilustrar esse argumento, evoca-se o depoimento da mãe de uma das pessoas afetadas pela talidomida, pertencente à segunda geração, nascida durante a década de 1970. Nilza Maria Santos narrou, em uma entrevista, sua experiência com o medicamento:

Olha, primeiro eu não sabia que estava grávida, eu sentia algumas dores, daí eu tinha uma vizinha, pedi um remédio para dores e ela me deu o remédio [...]. Eu nunca tinha visto antes uma vítima de talidomida. Por incrível

que pareça, nessa grande cidade nunca tinha visto [...]. O Brasil é um país

super desinformado. Eu não era tão indouta a ponto de não entender alguma coisa e nunca tinha ouvido falar de talidomida. Assim como eu, o Brasil, uma

porcentagem quase que 90%, não sabia e ainda hoje não sabe. (MINAS MOVIMENTA, 2012) 150.

Essa mesma mãe relata que somente por volta dos três anos de idade do filho é que soube da possibilidade de a deficiência dele ter sido decorrente da síndrome da talidomida.

Uma das entrevistas gravadas no documentário Tá faltando alguma coisa (2012), sobre a mobilização jurídica da ABPST, foi concedida pela procuradora do Ministério Público Federal, Dr.ª Eugenia A. Gonzaga. Em seu depoimento, a representante do poder judiciário evoca a importância da atuação do movimento iniciado pela ABPST:

A Associação tem ainda... eu acho que tem que ser reconhecida como um

caso de referência nacional, porque tudo que nós temos nessa área de

talidomida, todos esses benefícios, todas essas conquistas tiveram o dedo da associação. Eu desconheço algum caso em que não tenha redundado numa lei, num benefício importante e devido que não tenha tido atuação da Associação. Realmente uma atuação muito profícua, muito séria, que merece todo o reconhecimento. (MAXIMINO; TABOADA, 2012, grifo nosso).

Fica evidente, nas palavras da procuradora, o reconhecimento a que Honneth (2003) denomina estima social, pelo qual se reconhece a importância da luta de determinados atores sociais. Aqui, os atores principais já não eram os familiares, como na década de 1970, mas sim as pessoas com a síndrome pertencentes à primeira geração. Nesse caso, conforme Honneth (2003), se destaca a terceira esfera de reconhecimento, tal seja o reconhecimento solidário (por estima social), pois se percebe que o movimento “[...] é respeitado em virtude de determinadas propriedades, [...] trata-se das propriedades particulares que o caracterizam diferentemente de outras pessoas”. (p. 187).

Como resultado da luta por reconhecimento desenvolvida a partir da ABPST, durante o governo Itamar Franco foi sancionada a Lei nº 8.686/93, que orientava o reajuste da pensão vitalícia, cujo teor pode ser ilustrado pelos artigos 1º e 3º:

150 Nilza Maria Santos ressalta, ainda, na mesma entrevista, sua luta pessoal para compreender a síndrome do filho e ter reconhecida a síndrome para que tivesse acesso à pensão. Ela explica esse processo: “Comecei a tomar as devidas providências, a recorrer tanto no tratamento como na pensão alimentícia. Foi uma dificuldade muito grande para conseguir as coisas e o próprio governo tem uma mente totalmente deserta quanto às necessidades das vítimas. Com três para quatro aninhos, eu comecei a dar entrada nos papéis do INSS e [eles] sempre dizendo não, indeferindo, indeferindo, e eu insisti, não desanimei, continuei insistindo, até os 11 anos nós conseguimos uma resposta positiva.” (MINAS MOVIMENTA, 2012).

Art. 1º A partir de 1º de maio de 1993, o valor da pensão especial instituída pela Lei nº 7.070, de 20 de dezembro de 1982, será revisto, mediante a multiplicação do número total de pontos indicadores da natureza e do grau de dependência resultante da deformidade física, constante do processo de concessão, pelo valor de Cr$ 3.320.000,00 (três milhões, trezentos e vinte mil cruzeiros).

[...].

Art. 3º Os portadores da "Síndrome de Talidomida" terão prioridade no fornecimento de aparelhos de prótese, órtese e demais instrumentos de auxílio, bem como nas intervenções cirúrgicas e na assistência médica fornecidas pelo Ministério da Saúde, através do Sistema Único de Saúde - SUS. (BRASIL, 1993).

A referida lei garantia, ainda, que o valor da pensão seria reajustado conforme os mesmos índices aplicados aos beneficiários do BPC. Claudia Maximino analisa o impacto do sancionamento da lei:

O primeiro ganho foi o nosso reajuste, porque aí deu para respirar aliviada... consegui viver... tinha hora que eu trabalhava, tinha hora que eu não trabalhava... não só eu como todo mundo... Então, o maior ganho foi a Lei 8.686 de 1993, e a inclusão de próteses e órteses, porque a gente não tinha nada [...]. Foi um grande ganho no papel. E o valor da pensão, bem ou mal, está defasado, mas ainda continua nos sustentando [...]. (informação verbal).151

O estabelecimento da pensão vitalícia e mesmo da indenização não foram resolutivos ou até compensatórios das questões que permearam a vida das pessoas com a síndrome. Ou seja, a ação civil acordada não implicou automaticamente em conquistas de direitos sociais. No item que segue, demonstram-se novas reivindicações.