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Se pudéssemos descrever o significado de cada aposta dos homens trans protagonistas da pesquisa para dar conta de suas necessidades e demandas de saúde, teríamos a resposta do “nosso pai”, que Guimarães Rosa (1988) fez se lançar em meio ao rio. “Nosso pai” estava em seu barco e não voltava. Todas as pessoas de convívio cotidiano queriam saber o porquê e questionavam suas próprias relações para com ele.

Para os homens trans, os entrelaces feitos por cada um deles à construção dos seus itinerários terapêuticos, que hora se mostram tão próximos e, ao mesmo tempo, tão singulares, são efeitos daquilo que elaboram a partir da imensa trama da vida na cultura, em sociedade, do que foi dito que se é, pelo que se apresenta como objeção, bem como pelo desejo de ser. Eles dizem “é isto” e isto é sempre muito grande e vasto para compreendermos como um todo. Podemos, entretanto, beirar o todo. O que beira é sempre muito próximo, e há como ser ou não. Seguiremos, pois, no fluxo que Milton Nascimento e Caetano Veloso (1991) mimetizaram: “margem da palavra, entre as escuras duas, margens da palavra, clareira, luz madura”.

Todo o contato com os protagonistas da pesquisa produziu sensações diversas frente aos risos, aos incômodos, aos silêncios, às tristezas, às forças... Nos debruçamos sobre os ditos e não ditos e nas possíveis interpretações aos seus significados. À beira do rio, entendemos:

Asa da palavra, asa parada agora Casa da palavra, onde o silêncio mora Brasa da palavra, a hora clara, nosso pai Hora da palavra, quando não se diz nada Fora da palavra, quando mais dentro aflora Tora da palavra, rio, pau enorme, nosso pai (NASCIMENTO, VELOSO, 1991).

A partir da investigação de campo, produzimos um total de quatorze horas, trinta e seis minutos e quarenta e seis segundos de gravação de áudio proveniente das entrevistas realizadas, que representou uma média de uma hora e trinta e cinco minutos por entrevista. O material foi transcrito em sua totalidade a partir do software Express Scribe Transcription Software. Para tanto, contamos com a colaboração de um pesquisador auxiliar na transcrição de parte do material. Feito este procedimento, realizamos uma revisão a partir da escuta atenta dos áudios para correção e/ou adequação de termos transcritos. O material revisado foi impresso para, então, iniciarmos sua análise.

O primeiro momento da análise consistiu na leitura profunda do material acompanhada de grifos, anotações e da utilização de marcadores capazes de sintetizar as ideias presentes nos trechos destacados. A repetição dos marcadores ao longo das entrevistas foi uma das formas de evidenciar determinado tema para posterior discussão. Em seguida, realizamos comparações entre os conteúdos de cada marcador a fim de identificar as convergências e divergências nele presentes. No terceiro momento, buscamos estabelecer as possíveis associações entre os marcadores e identificar como determinados temas se relacionam, no que consideramos defini- las como teias de associação. Por fim, a partir destas teias, elaboramos um panorama que foi discutido frente à vivência de cada homem trans, comparando-as entre si.

Os marcadores produzidos a partir da leitura do material foram, em ordem de repetição: modificação corporal (MC), cirurgia, hormonização, hormonioterapia, demanda, serviços de saúde, questões trans19, dificuldades, informação, violência institucional/transfobia institucional, saúde do homem, masculinidade, serviços de saúde ideal, identidade de gênero (como marcador para a busca ou não de cuidados de saúde), processo transexualizador (PT), transfobia estrutural, rede privada de serviços de saúde, homofobia, racismo, religião, rede de apoio/de afeto e cuidados complementares. As associações entre eles geraram as seguintes teias: modificação corporal (MC), hormonização, questões trans, identidade de gênero como marcador de busca de cuidado, violência institucional/transfobia institucional e rede de apoio. A partir delas, estabelecemos o panorama geral que propõe as modificações corporais enquanto tema basilar para a investigação das necessidades e demandas de saúde, bem como do itinerário terapêutico realizado pelos homens trans.

Organizadas tais questões, buscamos identificar quais os percursos realizados pelos homens trans na efetivação dos cuidados pretendidos. Deste modo, buscamos verificar quais espaços são procurados na rede formal de saúde e fora dela e como isso acontece. Assim,

19Entendemos como questões trans um conjunto de contextos e acontecimentos possível de ser compreendido

apenas em função da transgeneridade, podendo ser ampliado a partir da leitura relacional com outros

marcadores. Não buscamos dividir as vivências no binarismo cis e trans, pois reconhecemos essa classificação como parte da estrutura colonial de exclusão pautada na polarização de comportamentos, linguagem e

experiências capazes de legitimá-las ou deslegitimá-las – ou, na proposição de Mignolo (2008, p. 291), a afirmação da superioridade para uma dada identidade que acaba por expelir outras da esfera do “real”. Neste sentido, exemplificamos as questões trans como violências causadas contra pessoas trans em função da sua identidade de gênero (transfobia); as modificações corporais realizadas com a finalidade de reconhecimento, aceitação e como possibilidade de diminuir o risco de se sofrer violências; e procedimentos clínicos pensados para mulheres cisgêneras que são necessários aos homens trans e produzem situações de constrangimento para os mesmos – como as clínicas de ginecologia e os exames preventivos.

identificamos as barreiras e riscos na busca por cuidados, as estratégias desenvolvidas e quais os cuidados produzidos neste processo.

Realizamos a análise dos dados na proposta de análise interpretativa de Clifford Geertz. A partir dela, visamos a contextualização social e cultural das narrativas pesquisadas. Geertz (2008) propõe um conceito semiótico da cultura, reconhecendo-a como uma teia de relações. Assim, uma análise interpretativa não pode ser realizada como “uma ciência experimental em busca de leis, mas (...) à procura do significado” (GEERTZ, 2008, p.15). Dias (2013) apresenta, com base no mesmo autor, que o papel do/a pesquisador/a implica “interpretar os significados que [os] sujeitos atribuem aos elementos e relações presentes [no] universo simbólico” (DIAS, 2013, p. 66).

A utilização da análise interpretativa prevê o “alargamento do universo do discurso humano” (GEERTZ, 2008, p. 10) de modo que as interpretações do/a pesquisador/a não repousem na rigidez da construção de verdades indubitáveis, mas permitam a compreensão desse universo. Deste modo, é imprescindível não perder o contato “com as superfícies duras da vida — com as realidades estratificadoras políticas e econômicas, dentro das quais os homens [trans] são reprimidos em todos os lugares — e com as necessidades biológicas e físicas sobre as quais repousam essas superfícies” (GEERTZ, 2008, p. 21).

Duarte (2002) nos atenta que “a maior parte das discussões trata de problemas ligados à postura adotada pelo pesquisador em situações de contato e, sobretudo, à leitura, interpretação e análise do material recolhido (construído) no trabalho de campo” (DUARTE, 2002, p. 147). A torção feita pela autora entre recolhido e construído nos aponta para como o modo de interação com os protagonistas de pesquisa influencia o resultado da mesma, além da implicação do próprio pesquisador na direção da investigação.

Neste sentido, cabe destacar que a análise de dados implicou reconhecer como cada entrevista ocorreu, o que cada protagonista trouxe de suas vidas e como isso foi apresentado: as emoções, os silêncios, o modo como a relação entre pesquisador e protagonistas aconteceu e o que ganhou fluidez ou barreira a partir dela. O tema discutido não possui a mesma concepção para todos os participantes, nem entre estes e o pesquisador, o que implica compreendê-lo e dimensiona-lo nas múltiplas possibilidades dos seus significados.

3 NECESSIDADES E DEMANDAS DE SAÚDE DE HOMENS TRANS EM SALVADOR – BA (ou “Quem tem sua dor é que geme”)

“Minha vida tem sido uma constante luta contra a natureza. Reafirmo que uma pessoa é tão válida como outra, um feminino é tão válido como um masculino e os masculinos e femininos se equivalem. Nego-me a acreditar que isto não seja possível. Reafirmo a minha rebeldia contra a natureza, contra ‘o estabelecido’, contra tudo aquilo que nos roube ‘a esperança’. Reafirmo minha rebeldia contra tudo aquilo que nos negue, antes de tudo, nossas próprias vidas.” (Joel Maldonado, 2008)

As necessidades e demandas de saúde dos homens trans do município de Salvador – BA constituem o tema de discussão deste capítulo. Nele, apresentaremos uma breve definição destes conceitos de modo a qualificar a compreensão da temática e a escolha pelo trabalho de investigação sobre a saúde dos homens trans, mais especificamente, dos itinerários terapêuticos por eles realizados. Para realizarmos esta discussão, consideramos os dez protagonistas da pesquisa no contexto do cenário soteropolitano e também a expectativa que possuem em torno da organização dos serviços de saúde e da relação com as/os profissionais. Reconhecemos que os cenários hostis às vivências trans fazem pulular necessidades e demandas de saúde e implicam os homens trans a estabelecerem vias que, muitas vezes, refletem na realização de práticas de alto risco – ou, nas palavras de Ian, ao lidar com as próprias questões de saúde, “Quem tem sua dor é que geme”. Destacamos que algumas questões de saúde surgem demandando assistência médica, porém, as necessidades e demandas dos homens trans compõem um quadro muito maior que diz respeito à garantia do direito à saúde.