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Nesta seção, apresentamos um breve panorama que nos permite entender o que são necessidades e demandas de saúde. Ambas constituem conceitos que indicam questões de saúde e suas possibilidades de satisfação.

Em revisão bibliográfica sobre necessidades de saúde no período de 1990 a 2004, Campos e Bataieiro (2007, p. 607) indicam a leitura do termo necessidade a partir das obras de Marx e Engels, como aquilo “que precisa ser satisfeito para que a vida continue”, implicando o

foco no processo de trabalho. Além disso, apresentam a configuração do Sistema Único de Saúde e os modelos de saúde com foco na doença como influenciadores diretos no modo como as necessidades de saúde são pensadas e trabalhadas, fazendo notar uma visão funcionalista e classificatória ao invés de se prever uma práxis emancipatória.

Stoz (2004) cita Donabedian (1973) para refletir que as necessidades de saúde correspondem a condições que requerem um serviço, considerando que, por questões diversas, as pessoas não conseguem estabelecer sua própria saúde. O autor apresenta que as condições sociais e as ideologias vigentes em cada momento implicam na possibilidade das necessidades de saúde serem ou não sentidas, bem como se são expressas pelas pessoas. As necessidades expressas se transformam em demandas, porém o autor adverte: nem toda demanda manifesta uma necessidade. Além disso, cabe considerar que a oferta de serviços na rede de saúde pode ou não atender às demandas, bem como estas podem ser tecnicamente definidas mesmo sem serem sentidas. Neste sentido, ele afirma:

Necessidades são individualmente sentidas; são biológica e socialmente determinadas; sua atenção, satisfeita apenas socialmente, é o sinal de seu reconhecimento. É o sistema de atenção que supera o critério auto-referido do sofrimento, ao usar critérios de relevância social (transcendência), epidemiológica (magnitude) ou econômica (custos), mas com isso acaba-se por privilegiar alguns grupos sociais em detrimento de outros. (STOTZ, 2004, p. 289)

Com base na discussão proposta por Stotz, Cecílio e Matsumoto (2006) situam que as necessidades não podem ser vistas de modo individualizante, nem como simples decorrência da estrutura. Neste sentido, fazem notar que não podemos nos eximir da análise social que situa cada pessoa nos contextos em que sua vida se forma como também faz-se necessário evitar sucumbi-la em relação à estrutura, situação que negligenciaria a relação criativa de cuidado que cada pessoa (re)constrói visando estabelecer sua saúde. Para tanto, autor e autora apresentam uma proposta de taxonomia das necessidades de saúde que permite a investigação das mesmas nos serviços de saúde, colocando as/os usuárias/os em um espaço privilegiado. Nessa taxonomia, apresentam quatro conjuntos de necessidades que precisam ser dimensionadas: boas condições de vida; garantia de acesso a todas as tecnologias que melhorem e prolonguem a vida; autonomia e autocuidado; ter vínculo com profissional ou equipe (CECÍLIO, MATSUMOTO, 2006).

Todos os trabalhos apontam para a relação entre a as necessidades e demandas dos sujeitos que, quando acolhidas nos serviços de saúde, passam a ser reconhecidas socialmente. Tal reconhecimento evidencia o sujeito, sua história e a relação com o mundo na medida em

que suas necessidades e demandas não compõem um substrato alhures. Elas representam as experiências que vivencia e o distinguem enquanto ser único e singular: “[a pessoa genérica, abstrata,] existe enquanto representação intelectual; [já a pessoa concreta, singular, é a] que demanda cuidados, que está [exposta] aos riscos e é capaz de sofrer e produzir sofrimentos de um modo particular” (PITTA, 1996: 39). Ou ainda, é possível considerar que, na experiência de busca pela satisfação de suas necessidades e demandas, a pessoa concreta é aquela que se depara com protocolos assistenciais que pouco dá conta das suas especificidades (SOUZA, BOTAZZO, 2013).

É possível caracterizar as necessidades e demandas de saúde a partir da visualização e da análise sobre como elas se organizam diante do sistema de saúde e dos modelos de assistência. Neste sentido, Cecílio (2009) nos apresenta – e esta apresentação será basilar para compreender o trabalho desenvolvido nesta pesquisa – que

A demanda é o pedido explícito, a “tradução” de necessidades mais complexas do usuário. Na verdade, demanda, em boa medida, são as necessidades modeladas pela oferta que os serviços fazem. A demanda pode ser por consulta médica, consumo de medicamentos, realização de exames (as ofertas mais tradicionalmente percebidas pelos usuários...); as necessidades podem ser bem outras.

As necessidades de saúde, como vimos, podem ser a busca de algum tipo de resposta para as más condições de vida que a pessoa viveu ou está vivendo (do desemprego à violência no lar), a procura de um vínculo (a)efetivo com algum profissional, a necessidade de ter maior autonomia no modo de andar a vida ou, mesmo, de ter acesso a alguma tecnologia de saúde disponível, capaz de melhorar e prolongar sua vida. (CECÍLIO, 2009, p. 120)

Um ponto que nos permite certa distinção entre necessidades e demandas de saúde relaciona-se à organização que as últimas produzem dada a lógica institucional que carregam (SANTOS, PENNA, 2013; SOUZA, CZERESNIA, 2009; STOTZ, 2004). Em investigação sobre a reflexão semântica da palavra demanda apresentada por Spink (2007), a autora apresenta quatro acepções ao termo que estão relacionadas: ao direito (quando demandas que constituem direitos assegurados por lei não são atendidas e constituem litígio), à necessidade (a partir de uma lógica econômica e mercadológica), à precisão e carência (quando as demandas se ancoram na noção dos direitos de cidadania e devem ser asseguradas pelo Estado) e ao desejo (demandas relativas à subjetividade). Entretanto, cabe destacar que esse termo traduz a implicação de disponibilidade de um serviço e a capacidade de adquiri-lo (na maioria das vezes, baseado na condição financeira) por uma pessoa. Este ponto reforça a ideia de que nem sempre uma demanda é capaz de revelar as necessidades que movimentam sujeitos aos serviços de saúde (CAMPOS, 1969; STOTZ, 2004), ao mesmo tempo que traz em seu bojo aspectos que podem configurar relações utilitaristas e de acesso baseado na compra de serviços.

As necessidades em saúde, contudo, não são uma categoria ligada ao “status” econômico, mas sim inerentes ao indivíduo e sua satisfação é imperativa, tanto para a sobrevivência da espécie, quanto para o perfeito funcionamento da sociedade. (...) Conseqüentemente, as formas de seu atendimento variam conforme a intensidade da manifestação, o estágio de desenvolvimento da comunidade, o nível de percepção da necessidade pela população e a importância que ela assume para o bem-estar (CAMPOS; 1969, p. 80).

Cabe destacar que, em muitas discussões e na práxis cotidiana, necessidades de saúde são compreendidas como necessidades de serviços de saúde, conformando contornos em sua definição que apontam para um processo de mercantilização e utilitarismo dos serviços de saúde. Entretanto, é esse percurso passível de crítica que nos solicita um profundo trabalho crítico para repensar as questões de saúde e doença de modo a avaliar o impacto dos determinantes sociais de saúde, a conjuntura e as estratégias que viabilizem práticas emancipatórias. Assim, Paim e Almeida-Filho (2014) nos alertam que

...o reconhecimento da complexidade do conceito de necessidade aponta para sua determinação histórica e social, de modo que sua definição e operacionalização passam por lutas sociais e disputas de sentido. A redução das necessidades de saúde às necessidades de serviços de saúde, se de um lado favorece a medicalização da sociedade e a valorização do capital, de outro possibilita o atendimento em parte do direito à saúde e o desenvolvimento de uma consciência sanitária crítica acerca da determinação social das necessidades e problemas de saúde, bem como da alienação que se processa nas sociedades capitalistas. E as tentativas de descrição e operacionalização dessas necessidades pelo sistema de saúde poderão auxiliar os sujeitos das práticas de saúde a requalificarem seu trabalho (PAIM, ALMEIDA- FILHO, 2014, p. 38, itálicos dos autores).

Deste modo, para tornar os espaços de saúde aptos ao atendimento das necessidades de saúde de modo a qualificar esta relação como emancipadora da população e crítica aos processos de utilitarismo, faz-se necessário implicar a realidade social para que seja possível compreender como as necessidades são produzidas, bem como o modo a partir do qual cada pessoa se forma diante dessa realidade e sente suas necessidades (ou não).

3.2 NECESSIDADES, DEMANDAS, TRANSMASCULINIDADES E HOMENS TRANS: