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A definição do campo de pesquisa perpassou pela dificuldade de estabelecer um local que permitisse a realização de observações participantes que nos garantissem entender quais os caminhos realizados pelos homens trans na busca por cuidados a sua saúde. A princípio, consideramos importante conhecer os espaços de socialização dos homens trans no município e possíveis serviços de saúde que prestassem atenção a pessoas trans.

O primeiro local mapeado foi o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, núcleo Bahia (IBRAT-Bahia) formado por homens trans baianos que se organizam coletivamente para pensar e articular as pautas locais e discuti-las com o grupo nacional composto por homens trans de outros Estados. Porém, o IBRAT-Bahia estava em fase de reorganização e não havia encontros ocorrendo naquele momento. Partimos para o Centro Municipal de Referência LGBT, órgão da Secretaria Municipal de Reparação (SEMUR) que, à época, embora inaugurado, não havia iniciado suas atividades junto à população. Também não havia um serviço de saúde específico para os cuidados da população trans, em especial, de homens trans. Deste modo, a estratégia de contato e observação de campo se deu por meio da participação em eventos, debates, mobilizações e grupos cujos temas constituíam identidade de gênero, transgeneridade e transexualidade. Dentre eles, destacamos o II Congresso Internacional Desfazendo Gênero, a mobilização local do Grupo Famílias Pela Diversidade10 contra a LGBTfobia e os diversos encontros da articulação De Transs Pra Frente.

Os critérios de inclusão para participação na pesquisa foram a auto identificação enquanto homem transgênero, homem trans ou homem transexual, ter idade compreendida entre 20 a 59 anos e residir em Salvador. Os critérios de exclusão foram ter idade inferior ou superior à faixa etária de inclusão, não se identificar como homem transexual, homem transgênero ou homem trans e auto identificação enquanto mulher, mulher lésbica ou butch11.

10 No período de realização desta pesquisa, a articulação nomeada “Grupo Mães pela Diversidade” passou a se

autodenominar “Grupo Famílias Pela Diversidade”.

11 Toledo (2008) cita Bright (1998) para apresentar a butch como “lésbicas que usam roupas neutras ou

masculinas, faz o tipo mais durona, toma a iniciativa em boa parte das situações e apresenta uma fachada de auto-suficiência” (BRIGHT, 1998, p. 9-10 apud TOLEDO, 2008, p. 155). Esta identidade teria seu par

representado pela femme (lésbica feminina), entretanto, as autoras pontuam que tais identidades não existem em estado puro. Tais discussões podem ser verificadas também nos trabalhos de Rodrigues (2011), Almeida e Heilborn (2008) e Lacombe (2007).

Destacamos que a faixa etária se baseou na proposta da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, um dos pontos discutidos na elaboração da investigação da saúde dos homens trans, e pela possibilidade de encontrar protagonistas que tivessem acessado o Processo Transexualizador em outros Estados ou realizado procedimentos cirúrgicos.

Cabe destacar que o Brasil é o país onde ocorre o maior número de mortes de pessoas trans, marcadas pela brutalidade e violência, qualificando tais mortes como crimes de ódio. A dificuldade em realizar os registros das mortes e a negativa de identificar as pessoas como transgêneras nas certidões de óbito enfatizam o assentimento político de invisibilidade e anulação das pessoas trans, implicando ao Brasil não somente o fato de ser o território que mais mata pessoas trans no mundo, como também aquele que busca esconder sua realidade transfóbica. Nesse sentido, grupos militantes e organizações atuam na direção de realizar o mapeamento e a contabilização das mortes de pessoas trans com a finalidade de produzir dados que permitam incidir sobre as políticas públicas.

A pesquisa “Transrespect versus Transphobia Worldwide” (TvT), organizada pela Transgender Europe, tem realizado o monitoramento dos assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso em todo o mundo. A ASTRA Rio, o Grupo Gay da Bahia (GGB) e a Rede Trans Brasil são instituições brasileiras colaboradoras da pesquisa. A TvT (2016) apresenta que entre janeiro de 2008 e setembro de 2016, a região da América Central e do Sul foi a que mais somou casos de mortes de pessoas trans, um total de 1.768 (78%), sendo o Brasil o país que lidera essa lista, somando 900 mortes. O grupo mais atacado está na faixa etária entre 20 e 39 anos. O perfil profissional e de ocupação identifica a maior vulnerabilidade de pessoas trans profissionais do sexo, porém, para muitas das vítimas, não foram reportadas profissão ou ocupação. As causas de mortes são, em sua maioria, por armas de fogo, esfaqueamento e espancamento e os crimes ocorrem principalmente nas ruas ou nas próprias residências das vítimas.

Segundo o dossiê organizado pela Rede Trans Brasil (2017), o Nordeste é a região brasileira com maior índice de tentativas de homicídio (29%) e de assassinatos (33%) de pessoas trans – seguida das regiões Sudeste (27%, 29%), Norte (19%, 9%), Sul (13%, 17%) e Centro-Oeste (12%, 12%). O dossiê apresentou a situação das 123 mortes de pessoas trans e travestis no Brasil entre outubro de 2015 e setembro de 2016. Dentre os estados nordestinos, a Bahia apresenta maior quantidade de casos registrados (08), além de 7 tentativas de homicídio nos municípios de Salvador (03), Luis Eduardo Magalhães (02), Mainique (01) e Ilhéus (01).

Cabe destacar que, dentre os casos apresentados, a grande maioria possui as travestis como suas principais vítimas, seguidas pelas mulheres trans.

Neste percurso, contamos com a colaboração de um homem trans com quem realizamos uma entrevista piloto. Tal procedimento nos garantiu refletir o instrumento de pesquisa, expandir os horizontes de elaboração sobre o campo e os objetivos da investigação, além de aprofundar questões e posicionamentos necessários para a realização da mesma. Sua contribuição assentou os caminhos por onde seriam possíveis estabelecer o fio condutor da investigação. A entrevista piloto foi realizada em um café na região central do município. Consideramos válido destacar os pontos elaborados a partir deste momento que nos garantiram vislumbrar o campo de investigação, os sujeitos da pesquisa e os espaços a serem compreendidos. Neste sentido, apresentamos que:

 A identidade de gênero se apresenta como marcador da mudança de concepção de saúde: isso reflete e articula questões de saúde que, antes de conceber-se transgênero, não eram pensadas por ele;

 O pouco conhecimento das/os profissionais de saúde no tema das transgeneridades;

 A invalidação da cidadania dos homens trans até que os mesmos alcancem os critérios estabelecidos por normativas dos campos jurídico e biomédico;

 O pouco conhecimento sobre os efeitos do uso de hormônios e o impacto sobre questões de doença que podem acometer os homens trans, situação geradora de angústia.

Consideramos, ainda, que este encontro nos fez refletir a importância de investigar os contextos que produzem resistência nos homens trans em buscar os serviços de saúde. Isto porque, em situações de maior vulnerabilidade, a possibilidade de sofrer violência verbal ou física, aumenta. Nosso colaborador chegou a enfatizar o risco de violência sexual.

Destacamos que o projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (CEP/ISC/UFBA) no dia 08 de junho de 2016 sob o número do parecer 1.658.899. Na Plataforma Brasil, está registrada no Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) de número 56574116.4.0000.5030. Neste sentido, ressaltamos que a pesquisa cumpriu com as recomendações da Resolução nº 466/2012, do Ministério da Saúde, que apresenta diretrizes e normas regulamentadoras para a realização de pesquisa com seres humanos e da Resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, que versa sobre as normas aplicáveis às pesquisas

em Ciências Sociais e Humanas. Assim, os dados e informações pessoais dos protagonistas permanecem em anonimato e sigilo. Na apresentação dos participantes e de pessoas destacadas em suas falas, bem como de instituições, utilizamos nomes fictícios com vistas a preservar a real identidade dos entrevistados e das suas redes.