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3.3 NECESSIDADES E DEMANDAS DE SAÚDE DE HOMENS TRANS EM SALVADOR –

3.3.2. E XAMES CLÍNICOS , LABORATORIAIS E ATENDIMENTO PSICOLÓGICO

Ao buscarmos identificar as necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador – BA, sobressaíram aquelas relativas às modificações corporais, em especial, a hormonização e a realização de cirurgias. Entretanto, outras questões foram dimensionadas pelos protagonistas da pesquisa, como os exames clínicos, laboratoriais e o atendimento psicológico.

Os exames clínicos e laboratoriais aparecem, na maioria das vezes, também relacionados às MC. Isso porque os homens trans, ao demandarem pela hormonização, entendem que seus corpos passarão por uma série de transformações que implicarão no modo como cada estratégia de cuidado, em especial, a biomédica, for proposta. Deste modo, demandam por acompanhamentos clínicos e exames laboratoriais que possibilitem leituras

condizentes com as suas realidades, implicando os efeitos da hormonização e, também, das possíveis cirurgias. Paulo problematiza essa questão:

Você vai no dermatologista e, aí, você vai fazer o uso de uma determinada medicação que é super forte; eu tô lá com meu documento retificado, meu gênero retificado, eu vou no dermatologista e a dermatologista falava “vamos fazer o uso do Roacutan29”,

por exemplo, que é uma medicação que a pessoa não pode engravidar enquanto tá tomando ele. E, aí, eu fui falar que eu sou trans, que eu faço hormonioterapia, que eu tenho útero e que eu posso engravidar. Ela “buga”30. Ela não sabe o que fazer. Sabe...

não sabe. (Paulo, 31 anos)

Ao dimensionarem essas demandas, os homens trans refletem que as avaliações devem possibilitar o reconhecimento dos seus corpos diante das diversas e continuadas mudanças que implicam sobre eles. Em sua pesquisa auto etnográfica, Vergueiro (2016) apresenta que a sua busca por cuidados de saúde, no caso da hormonização, baseara-se mais em ter acesso a exames que lhe permitissem acompanhar sua situação hormonal do que implicar-se em um tratamento hormonal, dadas as possibilidades de que esta proposta estivesse vinculada ao critério de patologização das vivências trans. A explanação da autora coaduna com as colocações dos homens trans participantes desta pesquisa que também destacam que suas demandas se formulam a partir de critérios de despatologização.

Porque transexual tem CID e... como você já deve ter lido. Nos meus posicionamentos, eu não, eu tenho plena ciência da minha capacidade laboral, física, mental, psicológica e... eu não aceito um CID. Há quem diga que... a gente aproveita o CID porque existem os benefícios que a gente tem por conta da patologização, mas, eu não me vejo como doente, então, eu me identifico como homem transgênero ou homem trans, que é o termo que eu encontro pra fugir da patologização. Essa é a minha identidade. É a maneira como, como, hoje, eu me leio, como, hoje, eu me enxergo e... dessa forma que eu gostaria de ser tratado, conhecido e... (Ian, 25 anos)

Dentre as categorias profissionais demandadas pelos homens trans estão ginecologista, endocrinologista, psicóloga/o, clínica/o geral, nutricionista, médica/o cirurgiã/o, dermatologista, oftalmologista, otorrinolaringologista, psiquiatra e psicanalista. Das demandas por exames e procedimentos foram apresentados os exames laboratorial e clínico diversos, psicoterapia, hormonioterapia assistida, ultrassonografia, raio-x e cirurgias. Este cenário de demandas implica em destacarmos que as urgências dos homens trans na busca por cuidados de saúde são pela totalidade de suas vidas. Ao implicarmos um olhar atento às questões relativas às MC, devemos considerar as significativas melhoras que elas incutirão em suas vivências,

29 Fármaco de nome genérico isotretinoína. É um retinóide de ação anti-seborréica específica para tratamento

oral da acne grave, nódulo-cística e conglobata, e quadros de acne resistentes a outras formas de tratamento.

30 Gíria utilizada nos meios virtuais para representar falhas de sistema e eventos em que as tecnologias travam

sem perder de vista que existem outras questões de saúde que são demandadas ao mesmo tempo. Neste sentido, ao passo que lhes interessam a implantação do Processo Transexualizador no município (ao que refletem a necessidade de despatologizar a condução do mesmo), importa também que o cuidado seja pautado desde o princípio da integralidade.

Como parte do processo de garantia da integralidade do cuidado aos homens trans no Sistema Único de Saúde, urge implicar o estudo sobre as identidades de gênero ao longo da formação profissional, destacar outros modos para a sua compreensão, bem como qualificar o curso das ações em desenvolvimento. O não saber arquitetado em torno das identidades de gênero configura práticas anulativas dos homens trans nos serviços de saúde:

A formação dos profissionais, de uma forma geral, especialmente, do, da área, das áreas de saúde, não tem essas discussões no currículo porque eles não sabem o que fazer. Tipo, você vai pro endócrino, até, sei lá... essa médica mesmo [endocrinologista], no primeiro momento, ela aceitou tratar de mim, né, me acompanhar nesse processo; ela nunca ouviu falar sobre isso [transgeneridade], ouviu muito pouco, ela não sabia muito, tipo, o que fazer, ela foi pesquisar. Então, eu queria dizer que a formação não contempla isso, não fala sobre isso. (Paulo, 31 anos)

Por fim, todos os homens trans consideraram importante de terem acesso à psicoterapia, seja para buscarem a compreensão de vivências e os sentidos das transmasculinidades, seja porque o contexto de violência que os envolve é vasto, partindo da família, dos espaços escolares, de saúde e dos demais espaços públicos e privados. Em 2013, o Conselho Federal de Psicologia apresentou a Nota Técnica sobre o Processo Transexualizador a partir da qual considerou que a transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, portanto, a assistência psicológica não deve se orientar em modelos patologizantes. O documento se baseia na Portaria MS nº 1.707/2008 (que institui o Processo Transexualizador no âmbito do SUS)31 para destacar que a psicoterapia visa o “acompanhamento do usuário no processo de elaboração de sua condição de sofrimento pessoal e social” sem se restringir à decisão sobre a cirurgia transgenitalizadora (CFP, 2013).

Destacamos o posicionamento do CFP como um importante marcador no reconhecimento de sujeitos integrais com marcas culturais, sociais e históricas que são recorrentemente apagadas em função dos constantes processos de patologização das vidas.

31 Revogada pela Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013, que redefine e amplia o Processo

Nesta via, Sousa e Cavalcanti (2016) salientam o compromisso com uma atuação engajada pela despatologização das identidades trans:

[É] imprescindível destacar que essa ciência e profissão não constitui dispositivo de legitimação de vivências, mas se constitui como aquela que deve assegurar a garantia de condições de existência e vivência com foco nas(os) sujeitas(os) e na preservação dos direitos humanos. Nesse sentido, ao contrário de carimbar vivências como legítimas ou não legítimas, localizamos, na malha social, o que impede a manifestação das vidas e o que produz apagamento de sujeitas(os) a fim de firmarmos o compromisso com todas as pessoas (SOUSA; CAVALCANTI, 2016, p. 135)