• Nenhum resultado encontrado

3.3 NECESSIDADES E DEMANDAS DE SAÚDE DE HOMENS TRANS EM SALVADOR –

3.3.3. C IDADANIA

As necessidades e demandas de saúde de homens trans não dizem respeito apenas às questões de cuidado às matérias orgânica e psíquica. Elas congregam a busca pelo reconhecimento e pela legitimidade das suas vivências, de modo que alcancem o respeito a sua cidadania. Por essa razão, os protagonistas desta pesquisa revelam o contato e/ou organização política a partir das transmasculinidades, bem como congregam forças às lutas trans e travestis, implicando suas identidades como substrato político por mudanças. Os termos “grupo”, “movimento” e “militância” aparecem ao longo das falas de cada homem trans destacando e contextualizando esta característica. O Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) aparece como principal organização por meio da qual dialogam e pautam politicamente suas questões.

Destacamos que suas necessidades e demandas de saúde vão para além das medidas setoriais de saúde, elas requerem melhores condições de vida, mudanças nos paradigmas culturais que enraízam desigualdades, condições sociais que permitam viver dignamente. Neste sentido, considerarmos que

A saúde, independentemente de qualquer definição idealista que lhe possa ser atribuída, é produto de condições objetivas de existência. Resulta das condições de vida - biológica, social e cultural - e, particularmente, das relações que os homens estabelecem entre si e com a natureza (PAIM; 1986, p. 04)

Paulo traduz esta definição:

As minhas necessidades de saúde? Conseguir ter acesso aos mesmos direitos [que as pessoas cisgêneras]. (...) É... conseguir dig... dignidade, sabe? Viver dignamente. (Paulo, 31 anos)

Estes movimentos que têm integrado grupos diversos desde as suas identidades nas pautas políticas por mudanças estruturais constituem o que Mignolo (2008) nomeou como desobediência política e epistêmica, necessária para conduzir as mudanças contra o sistema colonial de dominação que permanece atualizado em nosso tempo. Nele, a intensificação das desigualdades e a negativa dos direitos que competem a cada cidadã/o e à sociedade como um todo constituem estratégias massivas de dominação das vidas e de preservação destas estruturas dominantes. Assim, o direito a viver com dignidade deve ser sinônimo da luta pelo direito à saúde que “corresponde ao elo integrador que teria de permear todas as políticas sociais do Estado e balizar a elaboração e a implementação das políticas econômicas” (PAIM; 1986, p. 05). Esta urgência torna-se cada vez mais cara face ao momento político de sucessiva recessão e perdas de direitos que o Brasil tem sofrido e do alastro conservador e fundamentalista nas políticas de Estado.

As questões de saúde dos homens trans são, antes de tudo, urgências pelo reconhecimento da sua cidadania e, consequentemente, pelo direito à saúde. Esse contexto reflete a necessidade de “lutas pela sua inscrição no texto constitucional e em legislação específica e pela redefinição das políticas de saúde com vistas à equidade e à democratização” (idem, p. 05-06), considerando os processos de exclusão que experimentam cotidianamente. Isto porque, como nos lembra Fleury (1997, p. 27), “não se cria igualdade por Lei, ainda que não se consolide a igualdade sem a Lei”.

Neste sentido, é preciso ratificar os compromissos histórica e politicamente definidos pela garantia dos direitos à vida de pessoas trans por meio do Regime Internacional de Direitos Humanos das Nações Unidas, pelos Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero (Princípios de Yogyakarta) e pela Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. De mesmo modo, fazer valer a garantia ao nome social nos serviços de saúde e demais instâncias, dadas a Portaria MS Nº 1.820, de 13 de agosto de 2009 e o Decreto PR Nº 8.727, de 28 de abril de 2016.

Os relatos de negação ao uso do nome social de pessoas trans pelas/os profissionais de saúde, como também as dificuldades impostas à confecção do cartão do SUS com a identificação auto referida apresentam retaliações ao direito de pessoas trans nos serviços de

saúde32. A Portaria MS Nº 1820/2009 (Carta de Direitos e Deveres dos Usuários do SUS) apresenta o nome social como garantia sem distinção a pessoas cisgêneras ou transgêneras (trans e travestis), apontando que o preenchimento do campo nome social no cartão independe do registro civil. Seu uso justifica-se pelo tratamento adequado que não produza sofrimento à/ao usuária/o. Considerados os processos de exclusão e violência que envolvem as vivências trans, o Decreto PR Nº 8.727/2016 ratifica este direito às pessoas trans e travestis nos serviços de saúde. Deste modo, para pessoas trans e travestis, o nome do registro civil e o sexo devem ser omitidos nesse novo documento.

Na medida em que os homens trans revelam os constrangimentos sofridos nos espaços de saúde em decorrência negação do uso do nome social ou da confecção do cartão do SUS, devemos nos atentar à dimensão da transfobia institucional que se revela nesse processo. Se o impeditivo ao uso do nome social é a identidade trans, é de transfobia que falamos, ou seja, uma violência estrutural e institucionalmente articulada em modos diversos de negação aos homens trans das condições para que desenvolvam cuidados a sua saúde.

Estes contextos refletem a apresentação das necessidades de saúde dos homens trans que, além do respeito à cidadania e das leis implicadas no reconhecimento dos seus direitos, visam à despatologização das identidades trans, ao combate à transfobia institucional, à capacitação e qualificação profissional, à ampliação das informações sobre as vivências trans (visando alcançar as/os profissionais de saúde, bem como outras pessoas trans, em especial, homens trans) e à ampliação do acesso integral aos serviços de saúde.