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“Danem-se, eu não sou um índio, sou um aymara. Mas você me fez um índio e como índio lutarei pela libertação”.

(Fausto Reinaga, aymara intelectual e ativista)

A colonialidade buscou apagar as possibilidades de existência sob o pressuposto da humanização de “seres selvagens” (nas Américas, representados pelas populações negra escravizada e indígena). Esse processo se baseou na catequização, na organização dos povos a partir da nucleação familiar, na heterossexualização das relações, na racialização geopolítica que situava a população europeia como baluarte da evolução das espécies e a escrita como via de reconhecimento das habilidades intelectuais (LUGONES, 2015; MIGNOLO, 2003; BERNARDINO-COSTA, GROSFOGUEL, 2016).

Joaze Bernadino-Costa e Ramón Grosfoguel atentam que “o colonialismo foi a condição sine qua non de formação não apenas da Europa, mas da própria modernidade” (BERNARDINO-COSTA, GROSFOGUEL, 2016, p. 17). Esta assertiva tem sido a mais fortemente destacada nas produções de autoras/es decoloniais, que apresentam a impossibilidade de constituição da modernidade sem o colonialismo e todos os processos dele decorrentes. Os apagamentos das histórias locais, a proposta de expansão europeia, o sequestro violento (e o início do projeto genocida) de diversos povos africanos em diáspora, o extermínio

dos vários povos originários do, então, território americano. O primeiro grande projeto de impacto global sobre a vida dos povos que ganha o nome de Modernidade foi iniciado no século XVI, se a visada for localizar a história da América Latina, ou século XV, considerando que este processo se inicia no continente africano, não o século XIX.

O projeto colonial, mais que sustentar as características e objetivos europeus, visou o apagamento de quaisquer outras características que fugissem ao seu modelo, produzindo ideias para justificar sua dominação sobre outros povos. Isto impactou as possibilidades dos subalternos, ou terceiro mundistas, de falarem de si ou de suas organizações caso elas não se relacionassem com as classificações europeias e fez destas as instituições qualificadas a definirem o que representam esses tantos outros não-europeus. A episteme decolonial é, pois, politicamente, localizada: uma epistemologia do Sul. Tal perspectiva garantiu voz às falas colonizadas pelo saber das epistemologias do Norte, marcadamente, as europeias e norte- americanas. Neste sentido, a decolonialidade pressupõe que

[...] o Terceiro Mundo produz não apenas ‘culturas’ a serem estudadas por antropólogos e etno-historiadores, mas também intelectuais que geram teorias e refletem sobre sua própria história e cultura (MIGNOLO, 1993, p. 129-131, apud MIGNOLO, 2003, 26).

A proposta decolonial visa a desobediência epistêmica. Não significa abdicar de todo o conhecimento já produzido até então, uma vez que este tem produzido incômodos e incitado o engajamento para construir outras possibilidades interpretativas, políticas e críticas das sociedades. A desobediência epistêmica consiste em desprender-se de saberes coloniais que afastam grupos historicamente oprimidos de produzirem os saberes que lhes importam para produzir as mudanças que desejam (QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2008).

Sem tomar essa medida e iniciar esse movimento, não será possível o desencadeamento epistêmico e, portanto, permaneceremos no domínio da oposição interna aos conceitos modernos e eurocentrados, enraizados nas categorias de conceitos gregos e latinos e nas experiências e subjetividades formadas dessas bases, tanto teológicas quanto seculares (MIGNOLO, 2008, p. 288).

Para o debate sobre gênero, a opção decolonial permite, mais que ver nele as questões raciais ou, nas questões raciais, o que tem de gênero, localizar o descompasso que a categoria gênero produz quando pensado como instância historicamente racializada. Não significa aumentar o foco para ver a questão racial, mas demarcar que a desvantagem nas lutas de populações negras e brancas é histórica e constantemente atualizada. O que faz determinadas pautas tomarem rumos tão distintos num mesmo momento de luta que prima por uma

mobilização global continuam sendo as marcas da colonialidade que produziram privilégios para a população branca em relação à população negra.

María Lugones (2015) lembra que os povos indígenas das Américas e as/os africanas/os escravizadas/os eram classificadas/os como não humanos e selvagens. O projeto colonizador retirava dos povos dominados a humanidade e, portanto, a civilidade – ainda que não houvesse simetria de gênero dentro do próprio grupo dominante:

Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas – como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/agente, apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão, um ser de mente e razão. A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento, mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual, sua passividade, e por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu burguês (LUGONES, 2015, p. 936).

Lugones expõe que a exploração promovida pela escravidão e pelo modelo econômico capitalista repercutiu num “sistema moderno colonial de gênero” (LUGONES, 2015, p. 936), marcado pela dicotomia e pela proposta de civilização que teve na conversão cristã sua principal ferramenta. Nesse espaço, o homem era “o ser humano por excelência” (idem, p. 397). Entretanto, cabe frisar: a dicotomia entre macho-colonizador, lido como homem, e fêmea- colonizadora, lida como mulher, repercutia no reconhecimento dele como humano e dela como inversão humana do homem, ou seja, não havia relações equitativas nas posições ocupadas por homens e mulheres brancas.

A ideia de múltiplas masculinidades representa um cenário de constantes disputas. Se a masculinidade hegemônica/colonial em vigor não foi, até então, derrubada para que outro modelo formasse a estrutura que organiza relações é porque existe um conjunto de masculinidades que sustentam a hegemonia vigente, como bem apontou Connell (1995). São conhecidas as características da masculinidade hegemônica, ela tem nome e expressão, diferente das demais masculinidades. Apontar as novas masculinidades e torna-las identidades em política – e não políticas de identidade – produz, como efeito, disputas no campo da descolonização/mudança da hegemonia.

Uma das realizações da razão imperial foi a de afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero), e de expeli-los para fora da esfera normativa do ‘real’. (MIGNOLO, 2008, 291).

Descolonizar marca, então, um processo de desuniversalizar ideias, conceitos, pensamentos, noções e as vidas. Desfazer projetos globais a favor das diversidades locais. Não extinguir aquilo que faz com que a vida de cada pessoa tenha sentido em troca de uma versão universal. Connell e Pearse (2015) apresentam singular recorte da entrevista de Vivienne Ndatshe com Msana8, que demonstra a necessidade de compreender as realidades locais por si mesmas:

Ubudoda é ajudar as pessoas. Se os filhos de alguém não têm livros, não podem pagar

as taxas escolares ou algo assim, então você deve ajudar essas crianças enquanto o pai delas não consegue. Ou então, se alguém morre, você deve ir conversar com as pessoas de lá. Ou, se alguém é pobre – não tem bois –, então você leva seus próprios bois pra arar o campo dele. Isso é ubudoda, aquele que ajuda as pessoas. [A entrevistadora escreve:] Eu... perguntei se não havia algum tipo de “ser homem” que se expressava também na força e em brigas. Msana me respondeu prontamente: “Não, isso não é ‘ser homem’. Uma pessoa assim é chamada de assassino” (MOODIE, 1994, p. 38 apud CONNELL, 2015, p. 61).