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Análise das características comuns aos documentários musicais

4. CATEGORIAS DO DOCUMENTÁRIO MUSICAL BRASILEIRO

4.1 Análise das características comuns aos documentários musicais

A opção por um corpus de pesquisa que reúne 61 documentários musicais brasileiros configurou um conjunto de obras bastante hegemônico para análise. Há entre os filmes pesquisados um perfil formal e de proposta narrativa muito similar. Por esta razão, destaco estas características percebidas, pois foram o primeiro aspecto detectado durante a pesquisa e contribuíram inclusive para o recorte do corpus da pesquisa. Entender as generalidades comuns a este subgênero de documentários permitiu o corpus se tornasse mais orgânico.

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Muitos dos filmes documentários brasileiros adotam uma postura didática em sua abordagem temática43. Isto pode ser identificado pelo fato de que a maioria deles apresenta uma preocupação com a explicação do contexto onde ocorre a ação principal ou se dá o percurso de um artista, ritmo ou evento musical. Os filmes procuram mostrar o impacto de uma esfera maior de âmbito político, social e econômico, mesmo quando se referem a grandes eventos. Por exemplo, no filme Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil (2010), os depoimentos procuram reconstituir os bastidores da final do 3º Festival de Música Popular Brasileira promovido pela TV Record naquele ano apenas com depoimentos de pessoas que participaram do evento e seriam, por esta razão, credenciadas a acrescentar informações supostamente pouco conhecidas sobre os fatos testemunhados e supostamente desconhecidos do grande público.

Este aspecto de didatismo também é evidenciado devido à intenção informativa e a opção, em grande parte dos filmes, por uma linearidade narrativa que prioriza a localização temporal dos fatos numa ordem cronológica. Entre os principais argumentos, a história de vida de artistas e a proximidade das testemunhas com os fatos abordados nos filmes forçam um aspecto de resgate de memória, promovendo filmes que em várias ocasiões são moralistas, pretendem revisar fatos que sugerem ter se perdido na cultura musical e rendem-se ao modelo de contar histórias a partir de factualidades, como que desejando um entendimento mais próximo do público com a condição do filme ficcional.

A storytelling, ou seja, a conversão de um tema numa história com narrativa em atos e seus respectivos personagens títulos, entrevistados com pressuposta credibilidade para analisar o assunto exposto ou que testemunharam os fatos e pontos

43 Ramos (2008, p. 35) ao abordar a questão da ética no documentário denomina “os quatro principais sistemas de valores que sustentam a presença do sujeito-da-câmera na tomada e as asserções do documentário sobre o mundo: a) educativo, b) imparcial (em recuo); c) interativo/reflexivo, d) modesto”. Apesar da ética educativa ter suas origens e vinculação como documentário clássico com forte presença de voz over ou locução, o que não se detecta na maioria dos documentários musicais analisados, procede que estes filmes adotam uma certa ética educativa, quando a função da narrativa é a de “veicular asserções que divulguem aspectos funcionais” (p. 35). Também “o campo de valores da ética educativa é formado pelo próprio conteúdo dos valores que veicula, sem que se atine para o estatuto, ou posição, do sujeito que enuncia”. Mesmo com o destaque que o autor dá para o fato de que os filmes das últimas três décadas do séc. XX se importam menos com o valor do conteúdo e mais com a qualidade da posição do sujeito na enunciação desse valor no universo da ética educativa, nos filmes analisados é muito presente a intenção de validar o conteúdo do saber, onde “o debate ético encerra-se, sem se derramar em direção ao questionamento das condições nas quais o saber é construído ou enunciado”. (p. 36)

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de virada é a opção preferida dos realizadores e se apoia em apelos detalhistas como a revelação de segredos e intimidades dos artistas, o cuidado preciosista com a constituição de situações narrativas para inserção de imagens inéditas em constituições de clímax ou determinantes para a comprovação de um argumento.

Em geral, os documentários musicais brasileiros tendem a dotar os sujeitos de seus argumentos de contemporaneidade. São raros os filmes que assumem a presença de um narrador em “voz over” como no documentário clássico e, quando o fazem, mesclam-na à prevalescência da voz do artista ou dos entrevistados, compondo obras multivocais. Não é que não haja exemplo de filmes com narrador. Bananas is my business e A odisséia musical de Gilberto Mendes são exemplos que apresentam esta característica. Mas o recurso mais comum é a voz dos entrevistados que dispensa um narrador oficial e proporciona uma condução por diversas vezes reduntante. Em Dzi Croquetes, nota-se a redundância generalizada, onde vários depoimentos se repetem com os mesmos conteúdos e inclusive com as mesmas falas utilizadas nos depoimentos, como um recurso argumentativo.

Outro aspecto evidente é a tentativa de fidelidade ao estilo musical e do artista em questão, dado que o tema é intrinsecamente performático.44 Shows, apresentações intimistas ou momentos de composição ou improviso sobressaem-se para dotar o filme de sinergia com seu sujeito temático. Há encenação como marcadamente no filme Nelson Gonçalves e em Bananas is my business, mas exemplos como estes são casos isolados. O que ocorre na maior parte das obras é um desprezo generalizado pela encenação em detrimento da presença do artista e suas performances autênticas, priorizando registros de imagens de arquivo ou executados para a câmera do documentarista. Há vários casos como Jorge Mautner- o filho do holocausto e Elza onde a narrativa é amarrada por performances realizadas num espaço cênico criado para o documentário, marcado por performances contemporâneas e com a presença de convidados que também dão seu testemunho verbal no filme.

44 Plantinga (1999) esclarece que “all visual and sonic information taken from the non-ficcion film must be

interpreted in relation to its source and in relation to its conventional use and context”(p. 81). [toda

informação visual e sonora tomada dos filmes não-ficcionais devem ser interpretadas em relação a sua fonte e à convenção de seu uso no contexto]. No caso dos documentários musicais, onde a música é praticamente uma dimensão protagonista da obra, o aspecto sonoro investigado em cada filme permite afirmar que o estilo musical tematizado interfere na proposta fílmica.

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Percebe-se uma intenção recorrente, nos documentários musicais analisados, de dissimular a presença do realizador, de forma a dar a ver uma versão da história como fiel a uma trajetória de vida e obra, ou um recorte dela, incorrendo num esforço psicologista, como se fosse possível que uma reconstituição cinematográfica pudesse não ser contaminada por alguma proposta seletiva ou ideológica do realizador. Até mesmo as transições nostálgicas que permeiam boa parte das obras procuram referências visuais mais convencionais ou sequências prioritariamente fotográficas como ocorre em Jards Macalé – um morcego na porta principal e em Aboio e servem para propiciar um certo “silêncio visual” estratégico para a valorização sonora45.

Ressalto que não é possível determinar um padrão único estilístico para todos os filmes do subgênero musical a partir da asserção. Nesta amostragem estudada é possível categorizar as asserções apresentadas, mas isto não exclui propostas outras que possam eventualmente ocorrer na multiplicidade de títulos com este perfil. Seria muita pretensão delimitar uma categorização pontual que pudesse ser estendida para todos os documentários musicais já realizados no Brasil, ou que estas mesmas categorias pudessem ser determinantes para a sua estilística ad eternum. Mas é certo que, ao categorizar as asserções destes filmes a partir do arsenal teórico proposto, os agrupamentos parecem muito pertinentes a este corpus analítico, pois há enunciados recorrentes na maioria das obras.

45 Destaco que estas observações não foram feitas a priori, mas após a análise dos filmes, não resultando de uma observação genérica conforme critica Plantinga (1999) sobre o fato dos convencionalistas da linguagem que “often assume that to claim a physical resemblance between image, sound, and profilmic

scene diminishes the function of ideology” [frequentemente assumem que para reivindicar uma semelhança

física entre imagem, som e cena no filme diminuem a função da ideologia]. Para o autor “There is no single

ideology function or effect of photography and sound recording in the nonficcion film; both can be superficial or informative, veridical or misleading, dependind on their specific use and context. Theory cannot predict in advance, independent of historical context, the ideological effect of images”. (p. 81) [Não há uma função

ideológica ou efeito de fotografia e gravação de som únicos no filme de não-ficção; tanto pode ser superficial ou informativo, verídico ou enganoso, dependendo da sua utilização e contexto específico. A teoria não pode prever com antecedência, independente do contexto histórico, o efeito ideológico de imagens]. Esta consideração está em sintonia com a proposta da análise realizada, pois não houve um ponto de partida para a pesquisa que determinasse características prévias dos filmes, apenas as similaridades apontadas foram percebidas durante a análise e por isso indicadas, especialmente porque recorrem em vários filmes.

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4.2 Aplicação do modelo analítico assertivo: Bananas is my Business, de Helena Solberg,