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Aplicação do modelo analítico assertivo: Bananas is my

4. CATEGORIAS DO DOCUMENTÁRIO MUSICAL BRASILEIRO

4.2 Aplicação do modelo analítico assertivo: Bananas is my

Devido à complexidade e extensão da análise do extenso corpus da pesquisa, este documento apresenta a análise detalhada de um filme para demonstrar os procedimentos adotados. No capítulo final são apresentadas, de forma sintética, as análises sobre cada filme que foi submetido a este processo de investigação e as respectivas categorias às quais correspondem. O filme selecionado para exemplificar a aplicação do modelo analítico foi Bananas is my Business (Helena Solberg, 91 min., 1995), devido aos recursos utilizados na sua composição intrafilme, visto que recorre à narração, encenação e refutação além de elementos tradicionais da proposta do documentário, como imagens de acervo e condução de história de vida de forma linear. Este exemplo também possibilita a demonstração dos aspectos da filosofia analítica, como a compreensão da alusão e da intencionalidade.

A retomada do cinema brasileiro a partir de 1995 é marcada logo no seu início pelo primeiro documentário musical do período, Bananas is my Business. Carmen Miranda é a protagonista deste filme produzido pela Juca Filmes, do Rio de Janeiro. O documentário teve público de 15.470 pessoas e rendeu 90 mil reais, de acordo com os dados da Ancine (2012). É um filme dirigido pela brasileira Helena Solberg, que já tinha experiência em filmes documentários quando realizou este filme. Bananas is my business é um documentário sobre a vida da cantora luso-brasileira Carmem Miranda. Relata sua vida com ênfase no período mais importante da sua carreira, transcorrida no Brasil e nos Estados Unidos entre os anos de 1939 e 1950, onde trabalhou no rádio, cinema e televisão. O filme mostra como ela se tornou um símbolo latino-americano da década de 40, com um personagem de figurino exótico.

A primeira etapa da análise mostra como acontece, no filme, o argumento cinematográfico de acordo com os eixos de enredo, personagem, conflito e estrutura. O filme tem um argumento voltado para a personagem, sendo este seu eixo narrativo. O enredo valoriza a carreira da cantora Carmem Miranda, nascida Maria do Carmo em Portugal, filha de imigrantes portugueses no Brasil no início do século XX, morando no Rio de Janeiro. A história resgata o período de sua infância pobre, numa família com seis

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irmãos e os estudos em colégio de freiras que faziam caridade e acolhiam filhos de imigrantes. O trânsito para o sucesso começa com seu interesse pela música e com um primeiro convite para cantar em um evento. Nessa época, sua beleza já fazia com que se destacasse na sociedade, o que gerou um convite de emprego para trabalhar numa loja de chapéus. O primeiro namorado, com quem ficou durante sete anos e para quem escrevia apaixonadas cartas de amor, é peça importante para completar o cenário psicológico da personagem do período. Logo que inicia sua carreira, já com nome mudado para Carmem Miranda, passa a conviver com o preconceito das classes nobres do Rio de Janeiro, que reconhecem apenas vulgaridade nos artistas do rádio e em pessoas que frequentavam este ambiente. É nesta época que conhece muitos compositores e vai aproximar-se do samba, que na época era um estilo próprio de músicos negros, a maioria marginalizados. Artista favorita de Getúlio Vargas e com incrível popularidade no país, Carmem aceita convite para atuar na Broadway e consegue, por meio de influência política, levar sua banda de músicos brasileiros. Mas sua ida aos Estados Unidos faz parte de uma estratégia do governo brasileiro que desejava estabelecer uma política da boa vizinhança por meio do contato cultural e ela aceita este papel. Carmem é estereotipada logo em sua primeira entrevista concedida no novo país, mas alcança grande sucesso em pouco tempo transformando-se no modelo de mulher latino-americana. Seu figurino exótico adaptado da roupa de baiana com um chapéu tutti-frutti torna-se sua marca e já em sua partida havia um sentimento de exagero entre os brasileiros com relação a isso. Após um ano e meio, quando volta ao Brasil, foi vaiada no primeiro show que fez, onde cantou a primeira música em inglês. Na mídia são publicadas críticas sobre Carmem ter voltado americanizada e que a calorosa recepção que recebera dos populares em sua chegada não era digna de um sambista. Ela vai embora decepcionada e fica catorze anos sem voltar ao Brasil. Neste período vai trabalhar em Hollywood e leva sua família para morar com ela. Os norte-americanos tem interesse em aproximar-se culturalmente das populações latino-americanas e apostam na imagem de Carmem por meio de ações junto aos órgãos internacionais de governo, incentivando sua carreira. Mas quando, no final dos anos 40, o governo norte-americano perde o interesse nestas comunidades, já está muito difícil para Carmem livrar-se do personagem. Ela consegue ainda fazer alguns filmes sem a personagem, mas as coisas

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começam a desandar também em seu casamento com um marido irritável e agressivo. Ela entra em grave depressão, faz tratamento de choque e volta ao Brasil com depressão aguda, ficando semanas fechada no hotel. Quando volta para Hollywood, assume uma rotina puxada e passa a usar drogas para dormir. Em sua última aparição pública, em show televisivo de Jimmy Durante, ela chega a cair e diz que perdeu o fôlego. Naquela mesma noite ela morre de parada cardíaca em sua casa.

O argumento aponta seu personagem-herói como decisivo e ao mesmo tempo vítima. Os aspectos históricos, o contexto pessoal e os traços de caráter estão presentes no argumento do filme particularmente por meio dos depoimentos e trechos de entrevistas de arquivo da própria artista. O enredo viabiliza uma estrutura narrativa em atos, em ordem cronológica, com pontos de virada bastante definidos para a psicologia do personagem: o primeiro, quando é convidada para ir aos Estados Unidos, e o segundo quando é vaiada em show que faz na sua volta ao Brasil. Há conflitos externos e internos do personagem, que se debate entre o esforço para mostrar seu talento e a recepção virulenta da crítica. O conflito é apresentado como resolvido de forma não satisfatória. Quanto à estrutura, o filme faz uma proposta circular, começando com a encenação do momento da morte da artista, que é interrompida para o transcorrer do filme e retomada no final.

Na segunda etapa da análise foi aplicado o modelo analítico de Toulmin (2006) para compreensão da argumentação no documentário por meio de dados, qualificadores de dados, garantias, apoio e eventual refutação. Esta observação destaca aspectos intrafilme da obra, portanto, formais. O filme Bananas is my business é conduzido por uma voz over feminina, possivelmente a diretora ou simplesmente uma fã de Carmem Miranda, que aos poucos revela uma clara intenção de promover uma identificação entre público e artista. Esta é a principal característica formal do documentário, que em determinados momentos substitui a voz da locutora pela voz dos depoimentos ou por um outro personagem, encenado, de uma jornalista que interpreta textos críticos sobre Carmem Miranda. É necessário lembrar que há também uma voz over para Carmem. Essa voz faz a leitura das cartas que Carmem escreveu e tem sotaque português como a artista.

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Uma vez que os dados são evidentes e explícitos, a voz over principal faz o papel de trazê-los ao filme, provendo-o de comprovações de acontecimentos passados da vida da personagem. As imagens de arquivo contribuem para caracterizar as informações sobre a artista, portanto operam como qualificadores de dados. Há imagens de acervo pessoal da família como vídeos e fotos, trechos de filmes e shows, recortes de jornais e material de áudio de discos e gravações de áudio. Cabe ressaltar que mesmo que os qualificadores tenham sido forjados, como num exemplo hipotético onde a imagem de um jornal de época não seja exatamente um original, mas produzido para o filme, o recurso também funciona como qualificador de dados. No filme há imagens de recortes de jornal, supostamente da época, que anunciam a morte de Carmem Miranda por parada cardíaca logo no seu início. Na sequência, imagens de um caixão coberto com uma bandeira brasileira corroboram para a qualificação dos dados. Quando são mostradas imagens da calçada da fama em tempos recentes e a voz over não faz menção a isso, há simplesmente a presença de dados. Mas em momento mais adiantado do filme, quando a voz over conduz ao momento em que Carmem Miranda deixa as marcas de seus pés e mãos na calçada da fama e há o depoimento factual da artista, há a qualificação de dados, uma vez que ocorre também em condições explícitas.

A voz over conduz todo o filme e em vários momentos seu conteúdo é deliberadamente assertivo, introduzindo opiniões e subjetividades que dão o tom do discurso fílmico. É intenção, segundo o conteúdo da voz over, mostrar sua admiração pela personagem, inclusive introduzindo fotos suas no sentido de fazer uma comparação entre as duas. Num dos casos, a voz over mostra a imagem de uma menina, refere-se a ela como uma foto da artista quando criança e faz uma relação entre seu cabelo enrolado em sua cabeça e o gesto em suas mãos como uma possível imitação dos gestos de Carmem Miranda. É também a voz over que impõe sentimento de identificação, saudade e incompreensão sobre os fatos da vida da personagem, quem contextualiza as encenações quando necessário, como na ficcionalização da chegada de Carmem à sua cidade natal em Portugal.

A voz over que remete às suas próprias experiências demarca subjetividades em vários outros momentos. Alunas de um colégio de freira são mostradas e há uma foto de uma menina a quem a voz over se refere como ela mesma. No uso de

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sua liberdade estilística para interferir e deixar sua marca na história que conta, a voz over compara sua relação com a escola com uma possível teoria sobre Carmem Miranda: “Talvez ela estivesse cercada por freiras demais e samba de menos, com certeza. Elas estavam tentando fazer de nós, moças bem comportadas”.

Muitos trechos de outros documentários são utilizados, bem como entrevistas concedidas pela artista a diversos veículos de comunicação. Estes elementos pontuam a articulação entre as encenações, as opiniões e refutações da voz over e dos depoimentos, funcionando como ancoragem para que o discurso não perca de vista os aportes do real da história. Neste sentido, estes elementos atuam como dados. É o caso da cena em que Carmem Miranda, durante uma entrevista com um jornalista, diz que possui cabelo – estava sempre preso sob os turbantes ou chapéus de frutas – mas que os americanos pintaram de louro. Ela tira o turbante e mostra o cabelo, como qualificador de dados.

Os depoimentos priorizam a credibilidade de pessoas que conviveram de maneira muito próxima com a artista ou que foram de sua família. Sua prima portuguesa, a irmã que chegou a atuar ao seu lado num filme e morou com ela em Hollywood, os compositores que fizeram músicas para ela, os músicos que tocaram em sua banda, seus ex-namorados e a empregada que trabalhava para ela no dia de sua morte são os nomes que falam sobre a artista. Não há depoimentos que façam refutação sobre a competência da artista, portanto, entre os qualificadores de dados, sendo estes os elementos mais fortes do filme utilizados para sustentação da argumentação.

A garantia atua de forma implícita e é utilizada na argumentação para afirmar que os dados são legítimos. Neste caso, a seleção de trechos dos filmes musicais nos quais a protagonista atuou funciona como garantia da argumentação. A artista foi selecionada em momentos padronizados para este documentário, nos quais aparece cantando e exibindo seus gestos característicos de dança com os braços e seu figurino exótico. Sua expressão é valorizada, pois os planos próximos de outros filmes trazidos em grande quantidade para o documentário garantem a presença da artista em seus melhores e mais expressivos momentos. Para que estes elementos pudessem ter a função de garantia e não trouxessem para o filme a desconfiança sobre o exagero e a bizarrice dos filmes ficcionais musicais nos quais atuou, os dados de eventos e os

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qualificadores de dados como os depoimentos das pessoas próximas e a voz over serviram como amortizadores e facilitadores das garantias. Há também dois depoimentos onde os compositores iniciam uma espécie de improviso, tocando canções que fizeram para Carmem Miranda. Estes momentos são precedidos de explicação verbal (dados e qualificadores de dados) e a situação parece evocar o improviso, que interferem no filme como número musical selecionado e dão garantia à argumentação.

O documentário inicia com a encenação de como teria sido a morte de Carmem Miranda. Com um espelho na mão, Carmem cai em sua casa, vítima de uma parada cardíaca. Esta encenação será retomada no final do filme e dá apoio à argumentação, como toda encenação que ocorre no filme documentário. O apoio serve para validar a garantia e nem sempre é necessário. Neste filme, a encenação foi adotada como parte da proposta estilística da diretora e decorre da sua subjetividade e liberdade poética. Há outros momentos de encenação, como a cena em que Carmem Miranda foge de uma vitrine onde estava exposta e na situação hipotética e fantasiosa quando o filme simula a volta de Carmem Miranda para sua cidade natal, em Portugal.

A partir do segundo ponto de virada do filme, quando Carmem começa a conviver com muitas críticas desfavoráveis ao seu trabalho, o filme adota a encenação de um outro personagem – uma jornalista de rádio - que irá recitar textos críticos, exatamente quando os outros elementos do filme estabelecem a fragilidade de emocional e de saúde da personagem.

A refutação aparece no filme com a intenção de reforçar a asserção de que Carmem Miranda não foi uma arma de sistemas políticos. Um dos recursos utilizados para isso é a voz over que sai em defesa da personagem, rebatendo a opinião de críticos e dando espaço à família e amigos para contar uma versão desconhecida do grande público sobre a artista. O texto da voz over indica a essência da refutação, comentando sobre o fato da artista ter ido para os Estados Unidos, quando muitos consideraram que “Carmem era uma arma do imperialismo americano” e “pessoas terem ficado ressentidas por ela ter partido com frutas na cabeça”. Esta mesma voz tenta humanizar a personagem, mostrando-se ressentida por não poder ir, quando adolescente, junto aos populares, ver o corpo de Carmem Miranda que retornara ao país. Em outro momento, esta voz retoma o assunto político e afirma que “Carmem levou bastante a sério a ideia

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de representar o Brasil. Ela foi ser a embaixatriz da boa vizinhança. Ingenuamente encarou quase como uma missão esse negócio de representar o Brasil no exterior”.

Fotogramas da sequência final do documentário Bananas is my business (1995).

A premissa do final do documentário, que mostra imagens de arquivo do último show de Carmem Miranda opera como “dados” para a construção da argumentação do filme, pois apresenta som e imagem em movimento de um evento passado como comprovação. A voz over opera como qualificadora de dados, pois conduz à conclusão lógica de que a artista trabalhou até o último dia de sua vida, ou ainda, num sentido poético, começou a morrer na frente das câmeras. O efeito de edição que coloca em velocidade lenta é o momento em que a artista teria tido uma parada cardíaca funciona como garantia, enfatizando um evento contido em uma imagem-câmera datada e de arquivo. A repetição do efeito no final da cena quando Carmem Miranda sai e se despede atua como o recurso de argumentação denominado apoio, pois contribui para validar a garantia. A última cena, que repete a ação e o contexto da encenação da morte da artista do início do filme também funciona também como apoio, pois fecha o enredo de forma circular, evocando a ideia de retorno.

A observação do filme aponta que sua asserção caminha no sentido da seguinte proposição: Carmem Miranda não teve uma experiência muito justa com o público e com a crítica dos brasileiros, pois faltou-lhes humildade para respeitar uma grande artista que fez carreira no exterior, passou por situações incríveis de preconceito

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no País e no exterior, teve depressão por conta disso e morreu trabalhando até o último dia de sua vida. O filme humaniza a história de vida da artista e refuta a versão oficial de que Carmem Miranda teria sido uma arma do imperialismo americano.

Com base nesta análise dos aspectos intrafilme é possível estabelecer o enunciado da asserção do filme com alguma segurança metodológica. Como asserção deste filme foi adotada a seguinte frase, que de forma sintética faz uma afirmação: Carmem Miranda teve sua carreira injustamente marcada por uma versão oficial da crítica de que era apenas uma arma do imperialismo norte-americano, o que limitou sua carreira e ofuscou seu talento e raízes musicais brasileiras.

A partir da determinação da asserção, o próximo passo da análise foi a observação comparativa com as outras asserções dos filmes do corpus da pesquisa, de forma a compreender similaridades entre as asserções. Este aspecto é explorado no próximo capítulo, com a descrição das categorias nominativas, facetas e classes que organizam os filmes a partir de suas asserções.