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Filosofia Analítica e Documentário

2 CORPUS DA PESQUISA: METODOLOGIA E FILMES

3.1 Filosofia Analítica e Documentário

O debate em torno das teorias analítico-cognitivistas é dicotômico e tem a sua centralidade no fato de que combate as grandes teorias e ao mesmo tempo não intenciona ser uma nova grande teoria. Não só o artigo de Plantinga (2002), que rebate as afirmações sobre um possível apego excessivamente lógico aos métodos científicos, é uma pista de como este recorte teórico é ainda desconhecido, mas também Ramos (2005) evidencia este embate, citando sua forte oposição ao pensamento francofônico. Neste sentido, filósofos analítico-cognitivistas desapegam-se de temas caros à tradição da teoria cinematográfica consolidados a partir da década de 70 como “a questão da autoria, o dispositivo cinematográfico, a centralidade perspectiva, a articulação da sutura, a identificação do espectador, o questionamento do estrutralismo semiológico, a discussão dos gêneros, a crítica ao realismo baziniano, a nova análise fílmica”. (RAMOS, 2004, p.13)

Segundo Ramos (2005), a psicologia cognitiva toma espaço na análise fílmica a partir do final do século XX em detrimento da psicanálise, que fundamentava a base epistemológica da teoria do cinema. Sobre a amplitude do recorte teórico cognitivista, o autor ressalta que se concentra nos estados Unidos e Inglaterra, com pouca repercussão na Austrália e países nórdicos e “expressão quase nula nos países latinos” (2005, p. 13). Em sua caracterização do tema, o autor destaca o aspecto de presunção muitas vezes atribuído a esta corrente analítica pelo seu apego lógico, mas acrescenta que “merece o crédito de haver mostrado que também a excessiva modéstia epistemológica é uma forma de arrogância” (RAMOS, 2005, p. 14).

Teóricos como Bordwell e Carroll também se pronunciam em relação ao tema. Planting sugere que “enquanto Bordwell estava desenvolvendo um novo método para os estudos do cinema, Noël Carroll estava ocupado desacreditando as metodologias

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convencionais”34. (PLANTINGA, 2002, p. 17). Este é cenário que Plantinga (2002) apresenta para as décadas e 80 e 90, que vão colocar os nomes de Bordwell e Carrol à frente do debate sobre o cognitivismo e que vai culminar com uma importante coletânea35 de textos sobre as possibilidades além das grandes teorias estabelecidas no campo dos estudos fílmicos. Em seus esforços anti-paradigmáticos, Carroll criticou fortemente as posturas dominantes de base psicanalítica, marxismo althusseriano e semiótica de Barthes.

Depois de discutir sistematicamente contra os principais princípios desta teoria, a conclusão de Carroll era caracteristicamente intransigente. Tal teoria, escreve ele, ‘impediu e reduziu a análise fílmica à repetição de slogans da moda e suposições não examinadas’ (Carroll, 1988, p. 234). Ele argumentou que ela deve ser completamente descartada e devemos começar de novo. Carroll diretamente desafiou a legitimidade da teoria do cinema como ela estava sendo praticada em 1970 e 1980, e de uma maneira que tornou difícil para os teóricos do cinema ignorar.36 (Plantinga, 2002, p. 17)

A visão de Carroll contra a generalidade do cinema não-ficcional continua em texto essencial37 onde argumenta a necessidade de delimitação entre filmes de ficção, não ficção e documentário. Ao propor que se denomine “cinema de asserção pressuposta” ao “conjunto de filmes que os acadêmicos da área de cinema pretendem designar e discutir” (CARROL, in RAMOS, 2005, p. 69), o autor sustenta a superação da

34 “While Bordwell was developing a new method for film study, Noël Carrol was busy discrediting the conventional methodologies”. (PLANTINGA, 2002, p. 17)

35 Referência à obra BORWELL, David; CARROL, Noël. Post-Theory – reconstructing film studies. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1996.

36 “After systematically arguing against the main tenets of this Theory, Carroll's conclusion was characteristically uncompromising. Such theory, he writes, has "[...] impeded research and reduced film analysis to the repetition of fashionable slogans and unexamined assumptions" (Carroll, 1988, p. 234). He argued that it must be completely discarded and we must begin anew. Carroll squarely challenged the legitimacy of film theory as it was being practised in the 1970s and 1980s, and in a way that made it difficult for film theorists to ignore”. (PLANTINGA, 2002, p. 17)

37 CARROL, Noël. Ficção, não-ficção e cinema da asserção pressuposta: uma análise conceitual. In RAMOS, Fernão. Teoria Contemporânea do Cinema. Documentário e narratividade ficcional. Vol. II. SP: Ed. Senac, 2005.

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proposta griersoniana que seria muito específica e, portanto, restritiva. A dicotomia é pertinente à proposta estreita de Grierson versus uma versão ampla e pouco elaborada de filmes de não ficção, o que exclui o documentário como é entendido hoje.

Este “cinema do fato pressuposto”, evidentemente, gera complicações pela extensão do termo mas adere mais precisamente à caracterização do documentário pois segundo seu proponente, aponta um domínio de estudos com maior precisão. Esta percepção leva novamente ao conceito de asserção.

A noção de cinema de asserção pressuposta já não contemplaria, por definição, obras como Arnulf Rainer38, mas tão-somente os

filmes que se engajam no que poderíamos chamar de jogo da asserção, um jogo no qual as questões epistêmicas de objetividade e verdade são incontestavelmente adequadas. (Carroll, in Ramos, 2005, p. 72)

No caso dos documentários musicais, o jogo da asserção se mostra igualmente pertinente, dado o caso citado dos shows. O registro de uma performance musical não é um filme de ficção, mas integra o vasto grupo dos não-ficcionais, da mesma forma que os documentários musicais. Mas estes dois últimos não são a mesma coisa, ou seja, o primeiro tem como asserção o registro, enquanto a intenção do segundo é ser um documentário que problematiza a música. Para Carroll (2005), esta distinção é teoricamente possível, sendo o cinema da asserção pressuposta uma subcategoria do filme não ficcional. De acordo com Ramos, “em caminho também percorrido por Noel Carroll, a emoção ou percepção do espectador pode, no final, ser reduzida a proposições universais, compostas por fundamentos cognitivos a serem analisados em disposição lógico-formal” (2005, p.16).

Outro importante autor do cognitivismo, Plantinga (2002) enaltece a abordagem, sugerindo que deve se tornar axial nos estudos interdisciplinares do cinema.

38 O filme em questão é o experimental Arnulf Reiner – um flicker film (1960) dirigido por Peter Kubelka. A citação decorre da preocupação de Carroll sobre num contexto em que admite que o debate mais importante sobre não-ficção normalmente se debruça sobre os argumentos da objetividade ou realidade. Mas quando o assunto é um filme como este citado, não haveria, para Carroll, sentido em focar as questões de “subjetividade com respeito à realidade”. (in Ramos, 2005, p. 72)

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Ele propõe que as análises se aproximem mais da racionalidade do pensamento e do discurso humano.

Outro autor referencial para estudos contemporâneos do cinema sob o recorte da filosofia analítica é Branigan39, que propõe uma revisão dos conceitos de linguagem dominantes na análise fílmica a partir do legado da semiótica francesa de Christian Metz, fortemente arraigada nas fontes linguísticas. Ele retoma a noção dos jogos de linguagem propondo repensar a teoria do cinema, mas não sem esquecer a relação das leituras fílmicas com a linguagem. Percebe-se isso nas referências do autor a importantes nomes da filosofia como Deleuze, Platão, Barthes e, especialmente, Wittgenstein. O que o autor pretende é uma nova aproximação da teoria do cinema com o objeto de análise, para pensar sobre a linguagem que utilizamos para descrevê-lo. Isso aparece claramente na aplicação que o autor defende para a palavra câmera, por exemplo, que pode ter uma multiplicidade de significados na leitura fílmica.

O jogo de linguagem para Branigan (2006) também tem suas regras, mas desta vez não mais tão herméticas como os linguístas puristas ou os “suturistas” propuseram. Em seu discurso, a teoria do cinema deve perceber o entorno e a contextualização do objeto de estudo. Para o autor, as condições culturais, o recorte histórico e os aportes sociais devem ser considerados na concepção da teoria. Torna-se assim evidente o motivo pelo qual a linguagem para designar os filmes analisados ganha destaque em sua obra. Sua ênfase recai sobre uma abordagem de cunho cognitivo e ele busca em Wittgenstein40 a ancoragem teórica para seu trabalho.

Branigan (2006) destaca que sua busca é pelo resgate da noção de verdade a partir da lógica, daí sua referência tão centrada na obra de Wittgenstein. Neste campo de pensamento a noção de verdade é abandonada junto com a teoria da reflexividade

39 Edward Branigan é diretor de Estudos de Graduação e professor do departamento de Estudos de Cinema na Universidade da Califórnia em Santa Barbara. É autor dos seguintes livros: The Point of view in the

cinema (1984); Narrative comprehension and Film (1992), premiado com o Katherine Singer Kovacs em

Cinema Studies, e Projecting a Camera – Language-games in Film Theory (2006).

40 O filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951) tinha seu foco de compreensão do mundo inteiramente voltado para a lógica. Em sua obra considerou que o mundo deveria ser compreendido pela lógica e que tudo o mais seria excluído: metafísica, estética, ética. Por fim, a própria filosofia também. Dedicou boa parte dos seus estudos à linguagem, pois acreditava que “desconfiar da gramática é o primeiro passo para se filosofar”(STRATHERN, 1997).

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dos pós-estruturalistas. Naufraga a noção do sujeito através da subjetividade e o que os teóricos buscam é uma definição clara e precisa de documentário. Com isto, ele não se distancia do perfil polêmico dos teóricos da filosofia analítica, assumindo a intenção do sujeito.

Branigan (2006) estrutura um pensamento cujo núcleo tem como ponto de partida a exploração máxima do conceito de câmera, que se desenvolve a partir das seguintes proposições: a) a vida da câmera, o que compreende a morte do autor, a impessoalidade da máquina e suas implicações na análise fílmica; b) a câmera-dentro- do-texto, considerando o seu movimento e suas relações com o tempo, a causalidade e a escala, bem como um breve retorno ao tema do ponto de vista41 e a subjetividade; c) o que é a câmera: estudo que designa a transição da máquina para o sujeito e se completa com a ampliação da psique coletiva da sociedade; d) como se desenham os planos, revelando os problemas de linguagem que implicam na ambiguidade de sentidos; e) por fim, quando é uma câmera, onde aborda as questões mais próximas da ficção, do movimento e da linguagem com aporte em Wittgenstein.

A intenção teórica de Branigan quando questiona o termo “câmera” é mostrar que ao mesmo tempo evoca-se o sentido de plano, imagem, fotograma, movimento, filme, motivação, ponto de vista e narração. O autor compõe uma concepção de teoria fílmica a partir de padrões de compreensão que foram apreendidos do comportamento linguístico, ou o que ele nomeia de “jogos de linguagem” e condena a análise fílmica vertical, que somente se prende a aspectos técnicos promovendo o método do “desmantelamento” do filme. A isso ele chama de redução: desmontar em pedaços menores, o quanto mais simples melhor. Sob esse processo, a ideia parece ser descobrir o fundamental, os irreduzíveis constituintes de alguma coisa, o que a tornaria única. Sua crítica centra-se no fato de que em lugar de analisar um conceito, o método de redução busca condições suficientes para o uso próprio do conceito.

41 Sobre o tema ponto de vista, há um único texto de Edward Branigan publicado em língua portuguesa, O plano-ponto-de-vista, pg. 251-270; in RAMOS, Fernão. Teoria contemporânea do cinema. Documentário e narrativa ficcional. Vol II. São Paulo: Editora SENAC, 2005.

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Contrapondo-se a este método analítico vertical, Branigan propõe um método de análise de conexão, de conceito, que seria horizontal. Ele cita Charles Stevenson: “quando pensamos nos pedaços de alguma coisa, exibimos uma atenção ‘dissecativa’ e quando pensamos na coisa como um todo perfeito – quando todas as suas partes estão intactas – podemos exibir uma atenção “sinóptica” que anuncia uma impressão em rede”. Outra referência citada é Strawson: “o que é importante é que algo seja compreendido nos termos de suas conexões, links e relações com um grupo maior de outras coisas”. Branigan acrescenta: “Mais do que dissecar ou quebrar alguma coisa com base em critérios arbitrários, devemos focar em como algo está sendo justaposto com a variedade de situações e contextos. Enquanto a proposta de redução é como uma autópsia, encontrar ‘conexões’ e como fazer geografia: projetando, mapeando, cartografando.

3.2 TEORIA DA INFORMAÇÃO E CATEGORIZAÇÃO: TAXONOMIAS, ONTOLOGIAS