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Anotações sobre especificidades fílmicas: roteiro e

2 CORPUS DA PESQUISA: METODOLOGIA E FILMES

3.3 Anotações sobre especificidades fílmicas: roteiro e

A pesquisa de Puccini (2009) está entre as que promovem maior aproximação com o tema do roteiro no filme documentário e foi uma das perspectivas referenciadas para análise intrafilme porque a quase totalidade da literatura sobre roteiro discorre sobre as lógicas narrativas do cinema ficcional. De modo geral, esta literatura não se debruça sobre a questão crucial da argumentação. Em capítulo específico sobre o argumento no documentário, o autor atribui ao argumento praticamente o mesmo sentido de sinopse. Após ampla revisão bibliográfica, o autor constata que o argumento é praticamente uma etapa da elaboração do roteiro, diferenciando-se da sinopse do filme apenas pela quantidade de detalhes oferecidos num texto mais curto, a sinopse, e no texto mais longo, o argumento (PUCCINI, 2002).

É fato que a visão técnica do roteiro reduz o argumento e a sinopse ao resumo da história, com início, desenvolvimento e resolução como diz Puccini (2009). Mas ao lançar um olhar mais atento para o caso do argumento, percebe-se que o autor atribui ao roteiro o uso de uma sequência de perguntas – como no lead jornalístico - como saída para a organização das ideias das etapas de criação do roteiro no documentário. Segundo Puccini (2008), é necessário que o argumento responda às seguintes seis questões baseando-se no material levantado na pesquisa: o que, quem, quando, onde, como e por quê. A constatação procede porque o autor atribui condições precisas da demanda do roteiro, como a relação entre o assunto e a curva de tensão dramática, a identificação dos personagens, a situação temporal e espacial dos eventos, as estratégias de abordagem e a justificativa de realização. Para o autor, esta sequência permite que se explore melhor as características do gênero documentário e também

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ajuda para que “a escrita do argumento não seja exatamente um tiro no escuro” (PUCCINI, 2009, p. 38).

De modo geral, o que Puccini (2009) apresenta como elementos internos do argumento são algumas estratégias identificadas como guias de conduta pertinentes à etapa de realização fílmica. São elas: a) os personagens; b) o personagem em situação de conflito; c) o personagem em situação de entrevista; d) a encenação; e) o grupo de personagens; f) o tempo histórico; g) o tempo narrativo; h) o espaço; i) a estrutura discursiva; j) o início, a apresentação do assunto; k) o meio: desenvolvimento do assunto e l) o fim: resolução do assunto (PUCCINI, 2009). Sob o enfoque do argumento, as análises de dois filmes documentários apresentadas pelo autor chamam a atenção. Fala tu (2003) e A pessoa é para o que nasce (2004) são referenciados por sua abordagem centrada da resolução de conflitos, com destaque para o fato de que ambos são documentários de longa-metragem com período de interrupção entre as filmagens, o que justificaria, “por elementos externos àquilo que seria o projeto do filme, o que faz com que o filme possa, a todo momento, ser retomado caso haja novas reviravoltas na vida dessas personagens e com isso nunca encontre seu final (PUCCINI, 2009, p. 58).

Puccini é um dos autores tomados como referência devido ao seu enfoque no documentário, mas como a proposta deste trabalho é encontrar categorias e facetas para organizar os documentários musicais a partir da asserção dos filmes, a padronização das perguntas do lead e a observação das estratégias de conduta parecem dispersar ainda mais o corpus em vez de contribuir para o seu arranjo. De acordo com a teoria da argumentação, as estratégias também necessitam ser hierarquizadas de acordo com o estatuto de premissa, dados, garantia, apoio e refutação. Por esta razão, foi adotada a organização do argumento cinematográfico em eixos genéricos de acordo com Parent-Altier (2004), concentrando assim as estratégias da argumentação a partir destas macro-categorias.

A argumentista Parent-Altier (2004) estabelece o processo criativo de um argumento em quatro eixos: a) o enredo; b) a personagem; c) o conflito e d) a estrutura. Mas se em Puccini os conceitos que compõem o argumento já estão elaborados considerando o gênero documentário, em Parent-Altier (2004) os conceitos estão exclusivamente voltados à problemática do filme de ficção. Mas observando as

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estratégias conforme apresentadas por Puccini (2009), nota-se que todas as suas estratégias ou guias de conduta podem ser distribuídas entre os quatro eixos definidos por Parent-Altier (2004).

O primeiro eixo proposto por Parent-Altier (2004) é o enredo e considera os aspectos da tradição da narração, do seu mito fundador e aspectos complementares. Para a autora, em sua análise focada no filme ficcional, o percurso de uma ideia tem raízes na longa tradição do contar, imbuído do conteúdo da fábula.

Esse conteúdo é tributário da nossa experiência cultural e foi-se construindo ao longo dos séculos em torno de elementos narrativos, díspares, persistentes e recorrentes. Destes elementos são originários os mitos, os arquétipos e estruturas narrativas específicas que sofrem também a influência de diferentes contextos sociais, políticos e econômicos. Os gêneros, por exemplo o western, o melodrama, o filme noir, a comédia musical, fornecem esquemas que, atualmente, são, parte integrante da tradição narrativa”. (PARENT-ALTIER, 2004, p. 39)

Apesar de evocar a questão da tradição com ênfase nos filmes ficcionais, é possível entender que as lógicas narrativas apontadas pela autora também ocorrem no filme de não ficção. Procede o fato citado pela autora da relevância dos gêneros, uma vez que esta acaba se tornando uma referência ao argumentista, pois oferece conexões entre quem elabora o argumento e o público. Apesar de não citar especialmente o documentário como gênero e o musical como subgênero, podemos compreender que a lógica da tradição está bastante presente nos argumentos dos filmes do corpus da pesquisa. Quanto ao mito enquanto fundador da tradição, Parent-Altier (2004) fundamenta seu aporte teórico em Campbell (1987), já canonizado como autor referência para a construção da jornada de personagens arquetípicos, e em Vogler (1992) que “analisou as etapas da viagem do herói em função da escrita contemporânea do argumento” (PARENT-ALTIER, 2004, p. 41).

Estas referências também incidem no cinema documentário musical, com destaque para mais de 50% do corpus desta pesquisa que se debruça sobre um argumento que tematiza um artista. A lógica das doze etapas do caminho do herói comentada é facilmente percebida nestes documentários, bem como em boa parte dos

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filmes sobre bandas e grupos. É o que acontece em filmes como Herbert de Perto (2008), que conta a história do vocalista da banda Paralamas do Sucesso, buscando em sua história de vida o argumento arquetípico do herói que encontra uma carreira, depois a tragédia e por fim o sentido das coisas.

Como outros elementos fundadores da tradição, a argumentista destaca ainda outros elementos, como os arquétipos, os acontecimentos sociopolíticos ou a censura (PARENT-ALTIER, 2004, p. 43). Estes elementos, seguindo as diretrizes da teoria dos usos do argumento de Toulmin (2006), podem ser classificados para a compreensão da argumentação do filme. Os arquétipos, no documentário musical, não são dados com todas suas características logo de início. Apesar do reconhecido protagonista nos filmes de artista, por exemplo, os arquétipos são integrantes implícitos do argumento, portanto podem agir como “garantias” para reforçá-lo. Já no caso dos acontecimentos sociopolíticos, geralmente são “dados”, ou podem também surgir como “qualificadores de dados”, pois tem seu aporte na informação direta de eventos. No caso da censura, há vários documentários musicais brasileiros que a utilizam na composição de sua argumentação, levando sua refutação à sua sentença assertiva. Em Simonal – ninguém sabe o duro que dei (2007), o argumento gira em torno dos efeitos provocados na carreira deste cantor por ter sido acusado de ser informante da ditadura militar e respectivos órgãos de repressão política.

Quanto aos elementos do enredo, Parent-Altier (2004) determina que são: a) a crise, b) o incidente desencadeador, c) o clímax, d) exposição e e) a resolução. Esta estrutura não difere da padronagem que hoje é possível encontrar em manuais de roteiro, como de autoria de Comparato (2009); Mabley e Howard (1999) ou Field (2009). Estes autores apontam a tradição da estrutura narrativa em três atos, com pontos de virada entre eles, sendo o primeiro ato a apresentação da história, o segundo o desenvolvimento do conflito e o terceiro a resolução. Para observação do argumento a partir do enredo a proximidade ou afastamento deste modelo pelo filme documentário analisado contribui para compreender como ocorrem as garantias. E, mesmo quando a proposta não é narrativa no sentido de contar a história de vida de um personagem, a ausência desta estrutura rígida também serve como recurso de garantia do argumento.

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Segundo Parent-Altier (2004, p. 59) “o enredo e a personagem não são dois elementos dramáticos inimigos, entre os quais se deve escolher a qualquer custo”. No contexto em que isto é dito, serve para destacar que o próximo eixo, o “personagem”, também interdepende do enredo e que há casos em que o argumentista cria primeiramente o enredo, em outros dá a dianteira ao personagem. A complexidade presente nestas escolhas terá implicações na liberdade do personagem ou responsabilidades sobre a construção do contexto histórico e por isso deverá ser observada na análise dos documentários musicais a ênfase no personagem ou no enredo.

Quanto a este aspecto, após a análise dos documentários musicais analisados identificou-se que se mostram um tanto contraditórios. A maioria dos filmes utiliza-se de um personagem-título, mas dificilmente descola sua trajetória de artista das mazelas da vida cotidiana, que os influencia sobremaneira, especialmente por se tratarem de artistas cujo aspecto emocional é constantemente evidenciado, o que inclusive determinou duas das classes analíticas determinadas. Como exemplos, há num filme como Fabricando Tom Zé (2007) destaque para um desentendimento pessoal do músico Tom Zé com Caetano Veloso e Gilberto Gil que seria responsável por um longo hiato na carreira do artista. Esta pesquisa denominou de turbulência este aspecto de convergência entre trajetórias pessoais e profissionais evidente na argumentação de quinze filmes do corpus analisado, como Jards Macalé, um morcego na porta principal (2010) e Argus Montenegro e a Instabilidade do tempo forte (2012).

O personagem, conforme pensado para o filme de ficção por Parent-Altier (2004), deve possuir características pessoais como o contexto histórico, o contexto pessoal e traços de caráter. O protagonista e seu objetivo, o herói decisor e o protagonista sem objetivos são tipologias descritas pela autora no contexto do filme ficcional e que também são percebidos no filme documentário musical. É bastante evidente, nos filmes de artista, que argumentos sobre a jornada do herói são utilizados pontualmente na argumentação para evidenciar asserções sobre o caráter do personagem, seja aquele que leva a sua música no mesmo estilo que leva a sua vida, como em Dorival Caymmi (2000); o músico de ímpetos delirantes como em Lóki (2009) e Raul: o princípio, o fim e o começo (2012) ou o músico em busca do seu objetivo de vida, como em Marcelo Yuka,

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o caminho das setas(2012). Na medida em que estas percepções foram confirmadas por meio da análise da argumentação, foi possível determinar as asserções, dando início ao processo de nomenclatura das categorias de subgênero.

Outra diferença percebida sobre personagem é que no filme de ficção ele é revelado pela ação, o meio e o diálogo (PARENT-ALTIER, 2004). No caso do cinema documentário, há que se considerar a particularidade do personagem em situação de entrevista, a encenação e a voz em narração, recursos que podem operar como sustentação do argumento de acordo com a asserção proposta.

O conflito como força motriz da história também está presente na conceituação que Parent-Altier (2004) faz dos eixos do argumento. O conflito pode ser caracterizado como interno ou externo e se origina quando o protagonista se depara com os obstáculos que carregam valores de verossimilhança e fatores de identificação. A autora utiliza três categorias de resolução de conflito que interferem no esquema narrativo: o que termina de forma satisfatória, o que é resolvido de maneira insatisfatória e o não resolvido. Contudo, estas características ressaltam a importância do roteiro na constituição do argumento conforme sustentado pela argumentação como evento determinante do andamento do filme: “na medida em que o argumentista se baseia no postulado segundo o qual não há drama enquanto o conflito não for definido, este instala- se frequentemente muito cedo e apresenta-se não só como um princípio de enredo, mas também como um impulsionador” (PARENT-ALTIER, 2004, p. 84).

É possível perceber que a força do conflito está presente tanto na lógica do filme de ficção como no documentário. Um documentário como Aboio (2007) discorre sobre um típico canto do nordeste empregado para a condução dos rebanhos e dimensiona um conflito na medida em que mostra que a tradição do canto dos vaqueiros está para se perder, quando revela as condições de vida destes personagens, suas expectativas e vontades. Desta forma, o eixo do conflito não só se apresenta como uma força que move o filme, como dialoga intensamente com as possibilidades formais que resultam na estrutura do filme: “a estrutura dramática é, muito simplesmente, um sistema de gestão do enredo, uma disposição mais ou menos linear de incidentes, episódios e acontecimentos ligados entre si que conduzem a uma resolução do drama” (PARENT- ALTIER, 2004, p. 93).

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A diversidade de resultados que se pode obter em estrutura dramática no cinema documentário já tem seus casos tradicionais consolidados. Como o documentário lida com elementos internos característicos como entrevistas, depoimentos, imagens de arquivo, contextos factuais, autorizações para utilização de imagens, é necessário considerar esta peculiaridade. Mas faz-se necessário lembrar que o recorte cognitivista não aceita os limites intrafilme como única dimensão da análise fílmica. Por esta razão, o foco da análise não recai exclusivamente sobre elementos da narrativa que são tão caros ao filme de ficção, como as elipses, o flashback e a montagem paralela. Mesmo a estrutura em atos, que é uma característica facilmente percebida nos documentários de artistas musicais solicita que sua análise caminhe no sentido de desvendar a sua asserção, sem as limitações atribuídas à ficção.

Para Ramos, “em sua forma de estabelecer asserções sobre o mundo, o documentário caracteriza-se pela presença de procedimentos que o singularizam com relação ao campo ficcional. O documentário, antes de tudo, é definido pela intenção de seu autor de fazer um documentário” (2008, p. 25). O autor apresenta ainda outros elementos próprios à narrativa documentária, como a presença de locução, rara presença de atores profissionais e a intensidade particular da dimensão da tomada (RAMOS, 2008).

Nichols (2005. p. 55), apesar de não ser um autor de aportes da filosofia analítica e ter uma obra localizada nos aportes pós-estruturalistas, também reconhece que “a lógica que organiza o documentário caracteriza o argumento, uma afirmação ou alegação fundamental sobre o mundo histórico”. Esse movimento acaba por desamarrar o documentário das convenções próprias da ficção, pois neste gênero as condições espaço-temporais, por exemplo, são dadas não pela forma da montagem, mas pelas “relações reais e históricas” (NICHOLS, 2005, p. 56). Ainda neste sentido, Ramos (2008) estabelece que

Podemos dizer que a definição de documentário se sustenta sobre duas pernas, estilo e intenção, que estão em estreita interação ao serem lançadas para a fruição espectatorial, que as percebe como próprias de um tipo narrativo que possui determinações particulares: aquelas que são características, em todas as suas dimensões, do

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peso e da consequência que damos aos enunciados que chamamos asserções. (RAMOS, 1008, p. 27)

Partindo destes conceitos, a opção metodológica da pesquisa concentra-se na identificação da asserção dos filmes documentários musicais por meio de uma observação metodológica dos elementos estilísticos que constituem os aspectos da argumentação para, a partir da identificação da asserção dos filmes, categorizá-los para melhor entendimento do fenômeno fílmico em ascensão, em tempos recentes, da produção nacional de documentários musicais.