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Após análise documental deparamo-nos com uma quantidade de registros escassos sobre a história do CAPS II Leste no decorrer de seus 15 anos Os

profissionais não se vêem como protagonistas de mudanças paradigmáticas. Não

atribuem importância ao registro de suas ações, limitando, deste modo, seu papel de

sujeitos da história! Parece-nos que esta não é uma problemática exclusiva do serviço.

Em 25 de agosto de 2008, em conversa informal, tomamos conhecimento de que os

dados da própria secretaria municipal estavam, até o momento, desatualizados. Na lista

de funcionários do serviço havia o nome de uma profissional que não está mais ali há

certo tempo, e o nome de uma profissional que trabalha há três anos no CAPS II- Leste

não constava nesta lista!

Os estatutos dos estagiários são também diversos: alguns recebem bolsa de estágio e têm vínculo formal com a secretaria municipal, outros estão realizando o estágio curricular, necessário para conclusão de curso superior, não recebendo qualquer remuneração e ainda há aqueles que já passaram pelo serviço, porém, ainda o freqüentam com certa regularidade, assegurando horas de trabalho voluntário.

A insuficiente sistematização das ações é sentida tanto pelos profissionais quanto pelos usuários. Veja a citação registrada em diário de campo: “Senti como da outra vez. Algo solto, sem objetivo, com pouco tempo, pouco material para estimular a criatividade”. Outro usuário assim se posicionou: “Tô achando que as oficinas estão meio soltas, não é?”...

A ausência de uma sistemática de trabalho bem definida pode resultar em problemas, a exemplo do que presenciei certo dia. Estava com os usuários aguardando uma oficina (atividade) que deveria começar... esperamos, esperamos... Os usuários começaram a ficar inquietos, questionando-me se haveria alguma atividade. O responsável por tal atividade foi encontrado conversando com uma usuária, tendo esquecido que havia sido escalado para aquela oficina. Apressadamente encaminhou-se para a sala ao encontro do grupo. A fala de uma de nossas entrevistadas é bastante reveladora neste sentido:

Eu vejo a equipe muito comprometida, daquela que está sempre procurando acertar, mas, assim, ao entrar aqui depois de toda essa acolhida calorosa eu fui me deparando com as dificuldades também da equipe eu penso muitas vezes é uma equipe assim que ainda tem dificuldades para trabalhar com saúde mental que precisaria de

uma maior capacitação, que precisaria está discutindo mais teoricamente, o que é que é mesmo a psicose, que eles dizem muito, que quer saber mais, mas eu não vejo muitas vezes o movimento de ir atrás desse saber, então isso às vezes emperra muito o trabalho, porque às vezes eu vejo assim as pessoas estão no trabalho se colocando de uma forma muito pessoal e não como terapeuta e eu acho que isso atrapalha o trabalho de um CAPS (grifos nossos).

Em algumas ocasiões, durante o processo de pesquisa, nos questionamos sobre as dificuldades relatadas, sobre a questão do quadro reduzido de profissionais. Indagamo-nos: em que medida se trata da quantidade de profissionais, ou não seria mais apropriado referirmo-nos a limitações quanto à formação acadêmica necessária para as atividades previstas em tal tipo de serviço.

Considerando a complexidade de intervenção no campo da saúde mental, as demandas são as mais variadas. Encontramos, desde encaminhamentos no âmbito do serviço social, da psicoterapia, solicitação de consulta com o psiquiatra, mas ainda possibilidades de pintar um quadro ou quaisquer atividades relacionadas ao artesanato. Os limites e as possibilidades de intervenções surgem nas falas de nossos entrevistados:

Eu acho que o CAPS deveria ter uma equipe clínica mínima e bastante oficineiros77! O ideal eu acho que a gente deveria poder contratar

artistas, para passar um semestre, esse semestre você vai dar aula de música, pintura. Então você vê! Não é que a equipe técnica não seja capaz, não a gente faz! Não! A gente faz! Mas, a gente faz sem muita técnica! A gente faz muito, vamos dizer assim, aprendendo e fazendo. E às vezes eu me pergunto até quando a gente vai sustentar isso? Né? Quando na verdade a gente pensa, vamos dizer assim. Está mais do que claro que o CAPS tem que ter vida e ter vida nas artes! (Coord. Municipal de Saúde Mental).

77Termo atribuído aqueles responsáveis pelas oficinas terapêuticas, e estas designam as atividades que

Poderíamos imaginar também a possibilidade da secretaria de saúde dispor de um quadro de “oficineiros” que transitassem pelos diversos serviços substitutivos propondo atividades variadas de forma rotativa e sistemática. A presença de um “arte educador” não substitui aquela dos profissionais previstos na portaria 336, estes devem trabalhar conjuntamente a fim de atingir o objetivo proposto. Contudo, na realidade empírica pesquisada defrontamo-nos a todo instante com as dificuldades de atuação da equipe interdisciplinar, seguindo a perspectiva da atenção psicossocial. O relato abaixo é bastante significativo:

Não é só estar aqui dentro que está fazendo alguma coisa, o hospital já fazia isso! São muitas possibilidades, mas, depende do técnico, porque a gente não discuti a direção da oficina coletivamente, isso eu tento fazer. A gente entrega a oficina a quem vai fazer e não discuti como poderia ser a direção daquela oficina, qual o objetivo que ela deveria ter... Como a gente poderia fazer mais rica em função de ser terapêutica, para ser terapêutica o sujeito tem está se movimentando de alguma forma... Então a gente peca muito nisso (Técnica do CAPS II- Leste).

A dificuldade em encontrar pessoal disposto e com identificação para trabalhar com saúde mental constitui outro aspecto a considerar com relação aos recursos humanos. Fato revelado nas falas de nossas entrevistadas.

“Por isso que eu digo, eu acho que essa questão de perfil” (Coord. Do CAPS II- Leste).

É questão de identificação de cada um minha gente! Porque é de cada um, não porque você é mais capaz! Aquela coisa que bate, que você namora, você gosta, sabe? Que você se sente bem, apesar de tudo você se sente bem! Então veja bem quais as dificuldades? Recrutar pessoas, não é todo mundo com perfil para saúde mental, alguns dizem ah vai lá é doído qualquer um pode atender! Não, não é assim, não é todo mundo que pode atender, acho que tem que ser um profissional

que tenha estrada, que tenha perfil que consiga suportar, não é qualquer um! A loucura não é para qualquer um não gente! (Coord. Municipal de Saúde Mental).

Apesar da escassez de pessoal e grande insatisfação com a questão salarial não percebemos nenhum tipo de movimento organizado em prol dessas questões que constituem direito do trabalhador. Em entrevista obtivemos falas com tons de desabafo:

Eu acho péssima, faz vinte anos que eu estou no serviço público do município e sempre me sinto mal paga, eu me sinto, eu assumo que aquilo é o meu salário e faço meu trabalho apesar daquele salário, porque eu tenho compromisso com o que eu faço, mas, assim eu acho que a gente é muito mal remunerado. A gente deveria ter mesmo uma gratificação específica pelas condições mesmo de trabalho, agente vê que tem um diferencial. Teve parte da minha vida que eu militei mais lá no serviço (Unidade Básica de Saúde - USB), na saúde mesmo e depois eu mesmo me afastei mais mesmo depois que eu me afastei as informações circulavam, eu tinha a oportunidade de saber o que estava acontecendo, uma assembléia e eu escolhia eu ir ou não! Aqui no CAPS eu sinto que a gente tem assim um distanciamento muito grande, a gente não conversa sobre as condições de saúde, as condições de trabalho, as condições salariais, a gente não exige assim, no sentido de cobrar dos gestores (Técnica do CAPS II- Leste).

Naquela época havia muito uma certa, eu falo por mim havia um certo contágio que hoje eu não tenho mais. De empolgação hoje eu estou menos empolgada, mais reflexiva, mais crítica e vamos dizer assim perdi a ilusão! (Coord. Municipal de Saúde Mental).

Arriscamos afirmar que a atual fase em que se encontra a reforma psiquiátrica em nossa cidade deve-se em parte à desmobilização e apatia dos seus principais protagonistas: profissionais, usuários, familiares e toda sociedade. Todo referencial do movimento de luta

antimanicomial parece ter se desintegrado pelo tempo e desgastado, parece esquecido. Por que é tão difícil acreditar na possibilidade de uma sociedade sem manicômios?

As falas dos três técnicos entrevistados deixam implícita a valorização da “clínica”, da parte da atenção assegurada pelos psiquiatras e psicólogos em detrimento da ação social mais ampla que acentue os aspectos relativos à saúde e ao necessário enriquecimento das relações sociais dos usuários como suporte básico da melhoria da condição de cada um. Tal posicionamento pode indicar, por um lado, que ainda existe um “ranço” ou resquícios das práticas e saberes anteriores à reforma na cultura dos profissionais e, por outro, que mudanças culturais mais profundas demandam maior tempo e maiores investimentos. Considerando o peso da demanda cotidiana, a superlotação dos serviços, o “caráter de urgência” que tais serviços assumem, a despeito dos objetivos que motivaram sua implantação, podemos compreender que investir em mudanças mais substanciais finda por não constituir um objetivo maior perseguido pela equipe, ou quando sim, finda por se perder ao longo do caminho e do árduo cotidiano. A seguir apresentamos falas que revelam a ênfase na clínica:

Mas por outro lado, não é defendendo o Psi não gente! Nem é psicologizado o atendimento não! Mas veja bem eu acho que um serviço, eu acho que essa clínica ela é fundamental, a clínica você não pode negar a clínica, ela por se só faz presente! Se você não ver você se esparrama, você escorrega como quem escorrega em uma bananeira, você cai no chão de quatro e fica difícil levantar! Se você não reconhece essa clinica, Se você não identifica essa clínica. Se você não se debruça sobre ela, eu acho que é uma situação bastante complicada! Eu acho que isso aquela coisa da reforma psiquiátrica de tudo pelo social, social, não é que esses espaços são importantes sim! Mais a loucura vai estar lá presente ela vai existir! E você vai ter que saber como lidar! E a clínica é que te dar esse suporte! (Coord. Municipal de Saúde Mental).

“A clínica é soberana! Sem ela não haveria reforma!” (Representante do Ministério da Saúde, responsável pela supervisão dada ao CAPS).

A crença e super valorização dos saberes “Psi” parecem enraizadas também nos usuários. Fato retratado em um trecho do diário de campo:

Um usuário me perguntou se eu era psicóloga. Disse que não... Outro comentou: “Ela ajuda tanto a gente que a gente pensa né?”. Gostei por sentir que de alguma forma estou contribuindo com o trabalho do CAPS, porém, fico triste por desconhecerem o serviço social, mas como exigir isso se esse (o serviço social) inexiste no serviço? Como reconhecer o inexistente?

Em outra ocasião, em uma reunião de passagem a administradora do serviço passou um informe sobre uma reunião que aconteceu com a SAMU e os serviços de atenção básica em saúde mental. Convocando a psicóloga, a psiquiatra e a enfermeira. Afirmou que seria necessária principalmente a presença da psiquiatra. Na opinião da administradora essas três áreas deliberam mais, assim justificou a necessidade da presença destes profissionais em tal reunião.

Talvez por tudo que foi exposto, o social seja tão ausente no centro de atenção psicossocial pesquisado. Porém, não elimina as demandas sociais que batem à porta do CAPS todos os dias. Chegam ao CAPS demandas de diversas ordens. Marcou-me o caso de uma usuária que freqüentava o serviço, no entanto, só estava ali por total ausência da família, e porque o CAPS e o João Machado fizeram um acordo. O CAPS iria tentar uma intervenção junto à usuária que faz uso abusivo de álcool, questão agravada pela sua situação de moradora de rua. No entanto, caso não obtivesse sucesso a mesma iria ser internada! Achei muito estranho este tipo de fluxo! O CAPS encaminhando para o hospital?! Porque acontece? A presença de um assistente social no encaminhamento de uma situação como essa não faria diferença? É bom ressaltar que a mesma não tinha indicação médica para uso de nenhum tipo de medicação! Posteriormente, ficamos sabendo que a “usuária” foi internada no hospital João Machado. Os ganhos obtidos durante aquele pouco tempo no CAPS serão anulados provavelmente pela sua estadia no hospital psiquiátrico. Certamente, hoje, ela “necessite” de medicação... Irônico, não é? É duro mas, até os nossos dias, a frase do poeta permanece muito contemporânea: “E vimos em um mundo doente!”

Incomoda-nos profundamente a execução de uma proposta de desinstitucionalização, na qual o objetivo central é a “reinserção social”, sem contar com a presença de um profissional de serviço social. Essa é a atual realidade do CAPS II- Leste!

Desconhecimento de alguns, com relação à proposta de reforma psiquiátrica,