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MARTINY: NEO-HIPOCRATISMO, EUGENIA E BIOTIPOLOGIA

2.1 Análise do Essai de biotypologie

Lembramos que já foi mencionado no capítulo introdutório do Essai a conceitualização a biotipologia e traçada a sua suposta linhagem histórica. A obra seguiu sucessivamente, com os seguintes tópicos: 1) Biometria e seus princípios; 2) A gênese dos biótipos (biotipogênese); 3) A descrição dos biótipos (constituições); 4) Os fatores estáticos e dinâmicos que modificam as                                                                                                                

89 http://nobelprize.org/nobel_prizes/medicine/laureates/1913/richet-bio.html Acesso em

01/08/11.

90 Koupernik, “Eugénisme et psychiatrie”. 91 Martiny, Essai, 91.

constituições biotiopológicas; 5) Os biótipos globais, resultantes da constituição de base e as modificações estáticas e dinâmicas; 6) As diversas aplicações da biotipologia.

Antes de nos aprofundarmos na discussão dos tópicos mais relevantes do Essai, convém advertir que, desde o início, que Martiny caracterizou a biotipologia como uma “ciência do futuro”. Ou seja, admitia não estar em condições de apontar nem uma única aplicação concreta do conceito biotipológico a qualquer área específica, mas sistematicamente prometia que tudo seria comprovado... no futuro!

Outra forte característica no texto é o uso profícuo que Martiny fez da literatura disponível na época, como suposta fundamentação da legitimidade científica da biotipologia. Em particular, manifestou predileção pelos temas mais discutidos na época, como o estudo do metabolismo, a endocrinologia, a neurologia e a bioquímica. Como exemplo, podemos citar a menção ao “diagrama do equilíbrio neuroquímico regulador da personalidade individual” formulado por Pende:

“Ele considera duas constelações, uma parassimpática anabólica, a outra ortossimpática catabólica. A primeira, sob o signo da acetilcolina, favorece o desenvolvimento do sistema vegetativo e reprodutivo, o anabolismo dos glucídios, lipídios, protídeos, da água, dos íons de potássio e de sódio, do fósforo, das vitaminas A, C e E, dos grupos B, D, da secreção de insulina, da cortina [cortisol], da testosterona, da progesterona, do timo, de certos hormônios da hipófise anterior e posterior. Essa constelação

estimula a tonicidade e a contratilidade dos músculos lisos e estriados, mas torna mais lentos o coração e os processos neuropsíquicos.”92

A descrição da “constelação” oposta é imediatamente seguida, sem ilação aparente, por uma discussão dos “progressos da radio-espectrografia” acerca da arquitetura das correntes que formam as proteínas, da qual, imediatamente, deve deduzir-se seu “valor dentro da especificidade biológica e, consequentemente, biotipológica”93. Vejamos um exemplo típico de argumentação:

“Se a molécula [proteica] mais ou menos anidra apresentar um estado cristalizado, quando se dissocia, tende, de acordo com Svedberg, a uma forma globular. Assim, ela se opõe à esclero- proteína absolutamente insolúvel de longas correntes polipeptídicas bem evidenciadas por Atsbury. Talvez há mais do que um parecido nesta similaridade com os extremos da longitípia e a brevitípia do biótipo e da molécula, provavelmente há é uma correspondência”94.

Embora esse tipo de raciocínio não fosse alheio ao desenvolvimento da ciência, já desde a primeira modernidade era pressuposto essencial a necessidade de se ligar o fenômeno visível ao invisível subjacente. Talvez esse tenha sido o maior desafio a ser enfrentado, porém as pessoas dedicadas à ciência procuraram responder a ele.95 Enquanto a pesquisa                                                                                                                

92 Martiny, Essai, 68. 93 Ibid, 69.

94 Ibid.

95 Nas próprias origens da ciência moderna, ninguém menos que Robert Boyle seria criticado

apontava para o estudo da matéria e das partículas até se chegar ao que, já na época de Martiny, tornaria-se propriamente a bioquímica, este se esquivou ao esforço e ao invés de propor um programa sólido de pesquisa, limitou-se a enunciar possíveis analogias. Assim, pode-se observar que Martiny infringiu os próprios pressupostos da ciência enquanto ciência.

Em outro momento, quando se propôs a explicar a origem dos organismos e das formas vivas, ainda que declarasse não querer associar a origem das reações químicas às quais se submete o embrião, em seu desenvolvimento, a qualquer teoria espiritualista, afirma:

“Mas se dermos ao acaso o sentido puro que lhe atribui P. Vendrier, podemos dizer que o surgimento da vida foi de improviso, como se vinda de um outro mundo. Por este último termo não se deve entender [a vida] como um componente estelar, mas do extra- cosmos. Por sorte, não à nossa ignorância ou à nossa incapacidade de prever, mas à uma violação da causalidade. Como observou Broglie, a física atômica contemporânea, abandonando a noção de Heisenberg, foi direcionando-se para essa noção específica de acaso.”96

Essa colagem desordenada de dados obtidos da literatura científica, utilizada para fundamentar possíveis analogias “ainda elementares, muito incompletas” a serem confirmadas “no futuro”, constituiu o conteúdo das quase 500 páginas da obra. Por isso, convém ter em mente, na leitura e análise, que o objetivo explícito de Martiny foi uma síntese dos dados                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              

experimentos e conclusões teóricas. Vide Alfonso-Goldfarb, Da Alquimia à Química, 194 et seq.

díspares fornecidos pelas diversas ciências e que, a ferramenta lógica de que se valeu fundamentalmente, se não exclusivamente, foi a analogia.

Finalmente, também deve ser ressaltado que, virtualmente, todo projeto biotipológico assumia a existência de um tipo “normal”, a respeito do qual todos os outros representam desvios, no sentido do excesso ou do defeito (“hiperevoluídos” ou “hipoevoluídos”).97 Consequentemente, Martiny não teve ressalvas, mas, ao contrário, considera como um “método de trabalho excessivamente interessante” a técnica de superposição fotográfica desenvolvida por Galton (e Pearson) para a determinação do tipo médio.98 As conotações eugênicas não poderiam ser mais claras e, assim, Martiny pode observar, por exemplo, que “a biometria da base hereditária individual, capítulo mal discutido nesta obra, constitui o fundamento futuro de uma eugenia racional”99.

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