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MARTINY: NEO-HIPOCRATISMO, EUGENIA E BIOTIPOLOGIA

2.2 Folhetos embrionários e biotipologia

Dentre os diversos tópicos abordados por Martiny no Essai, nos interessa discutir, aqui, em profundidade, suas ideias embriológicas e as supostas correlações que traçou entre elas e as biotipológicas, lembrando que essa vinculação constituiu a pergunta inicial que embasou a presente pesquisa. Por sua vez, Martiny colocou a questão que despertava seus

                                                                                                               

97 Ibid, 63. 98 Ibid, 62. 99 Ibid, 37.

desvelos no início do capítulo dedicado à biotipogênese: “Através de qual processo misterioso um indivíduo nasce com um certo biótipo antes do que com outro?”100

Depois de um reconhecimento ambíguo de outros estudiosos, como, por exemplo, Sheldon, por terem “pressentido” a importância das questões embriológicas na biotipogênese, Martiny afirmou que suas conclusões eram o resultado de “observações conduzidas ao longo de 20 anos”. Mas, atenção: essas observações referiam-se a “milhares de biótipos euplásicos de ambos os sexos” quanto a sua forma corporal e não ao estudo de milhares de embriões, como seria esperável, já que sua afirmação era taxativa: “as formas corporais constitucionais derivam automaticamente seja da predominância de um dos três tecidos primordiais embrionários, seja de seu justo equilíbrio”.101 Essa afirmação foi reforçada pela seguinte: “Não se trata aqui de hipóteses impossíveis de controlar, nem de teorias metafísicas. Mas os cálculos estatísticos facilmente estabelecerão as intersecções”102.

A priori e sem qualquer recurso ao estudo comparativo de embriões e

biotipologias corporais, assumiu (porém, afirmando como “fato”) que, dado que o embrião tem três folhetos – o endoderme (chamado por ele de entoblasto), o mesoderme (mesoblasto) e o ectoderme (ectoblasto) e dado que há formas corporais diferentes, estas se deviam ao excesso e defeito relativo em cada biótipo de algum dos “tecidos primordiais”, aos quais deve                                                                                                                

100 Ibid, 91. 101 Ibid, 91-2.

102 Ibid, 92. Note-se aqui a estrutura da argumentação típica de Martiny: afirma um “fato” cuja

ser acrescentado um quarto tipo, o normal.103 A distribuição se daria como

representado na Tabela 2 e na Figura 8.

Tabela 2. Correlação entre biótipos e folhetos embrionários

Tipo constitucional

Entoblasto Mesoblasto Ectoblasto

Entoblástico Aumentado Normal ou

diminuído

Muito diminuído

Mesoblástico Normal Aumentado Diminuído

Cordoblástico Normal Normal Normal

Ectoblástico Regressão: carência evolutiva Regressão: carência evolutiva Aumentado

Figura 8: Biótipos de acordo com Martiny.104

                                                                                                               

103 Ibid, 93. 104 Ibid, 107-108.

Não é supérfluo insistir, mais uma vez, em que Martiny não apresentou qualquer evidência experimental que sustentasse a possibilidade de excesso, deficiência ou “regressão” com “carência evolutiva” de qualquer folheto embrionário. Tratou-se de meras suposições baseadas na descrição de quatro biótipos e três folhetos embrionários somados ao tipo “normal”:

“A prova que nos foi possível realizar pela simples (experiência) clínica, foi trazida pela importância absoluta e relativa dos principais órgãos e suas funções. Segundo uma correlação positiva multidimensional, que por ela mesma não pode ser acidental, descobriu-se que em seu domínio ou deficiência, órgãos humanos são agrupados de acordo com três fontes de tecido

primordial.”105

Assim, o restante do capítulo sobre biotipogênese foi dedicado à discussão do finalismo teleológico da evolução, a uma descrição do desenvolvimento embrionário, às linhas de força (eixos de simetria) do embrião e aos derivados orgânicos de cada folheto embrionário - dos quais deduzirá, no capítulo seguinte, dedicado à descrição dos biótipos, os predomínios e carências orgânicos relativos.

Como de habitual, Martiny começou afirmando fortemente um “fato” que jamais foi comprovado, no caso, “A biotipogênese, ao se apoiar na embriologia, permite, portanto, considerar 4 biótipos genéticos, verdadeiras constituições de base [...]”. Essas constituições eram “o fruto da observação imparcial de numerosos autores ao longo do tempo”, enquanto que “a

                                                                                                               

classificação embriológica que nós adotamos hoje nunca havia sido aprofundada antes de nós”.106

A descrição dos tipos de Martiny foi feita de acordo com os critérios que o mesmo elegeu e, esquematicamente, foram divididos em setores, para facilitaram as caracterizações: altura, peso, aspecto geral, massa/tônus muscular, crânio, face, sistema endócrino e psiquismo. Para os fins do presente trabalho, a descrição dos tipos não é tão importante como as explicações putativas dadas, sua fundamentação e suas correlações potenciais. Vejamos o caso da constituição entoblástica.107

De acordo com Martiny, ela se caracterizava pela sobrecarga do sistema linfático, devida à impossibilidade de reabsorver as proteínas na circulação distal que, desse modo, passavam a circular pelos vasos linfáticos que as retornam à circulação sanguínea. Devido à insuficiência concomitante do mesoblasto, que originava os vasos linfáticos, a circulação nesse sistema é muito lenta, agravando o estado de “hidrofilia celular constitucional”. A isso associaram-se hiperinsulinismo, hipopituitarismo global e hipotireoidismo constitucional.

Mais uma vez, deve-se ressaltar o fato de que essas afirmações não foram acompanhadas de estudos populacionais estatísticos de medições hemodinâmicas e hormonais, nem de estudos histológicos. Não se trata nem sequer de deduções fisiológicas, mas de lucubrações a partir de correlações                                                                                                                

106 Ibid, 107. 107 Ibid, 110 et seq.

hipotéticas entre uma série de tipos biométricos e dados fornecidos pela pesquisa fisiológica e bioquímica da época. Com consequências altamente perigosas, porquanto Martiny concluia, ainda no caso do biótipo entoblástico, além das suscetibilidades particulares às moléstias contagiosas e às intoxicações ocupacionais, que:

“[constitui] o ponto de partida da Evolução Cronológica Ascendente, é hipo evoluído, pseudo-infantil [...]”108, são indivíduos calmos, sonolentos, apáticos e sedentários [...] é um hipogenital e um hiperdigestivo, mais glutão do que sensual [...] pouco combativo, de natureza passiva, tranquila, com uma bondade em parte devida ao abandono, e em parte à recusa [...] perfeita adaptação a trabalhos sem variedade.”109

Os biótipos constitucionais sofrem modificações em função do espaço (estáticas) e do tempo (cinemáticas). Os fatores estáticos apresentam uma cronologia de evolução hierárquica, desde os elementos entoblásticos (hipo- evoluídos) aos ectoblásticos (hiper-evoluídos), passando sucessivamente, pelos mesoblásticos e cordoblásticos (normais), que se manifestam, especificamente, em três áreas: filogenética (particularmente aplicada à evolução humana), racial e sexual.110 Naturalmente, Martiny afirmava que “O problema da imigração [...] é um outro exemplo da grande importância da biotipologia”, enquanto que sua relação com os sexos “também é de grande valor teórico e prático [...] nas questões do trabalho feminino e das relações

                                                                                                               

108 Ibid, 113. 109 Ibid, 115. 110 Ibid, 137.

sexuais”. 111 Assim, devotou intensa atenção à descrição biotipológica das

raças e dos sexos.

Os fatores cinemáticos se referem, essencialmente, ao temperamento: os mesmos quatro biótipos, agora variáveis e relacionados com a idade e o calendário (anos, meses, dias, “o instante que passa”112), o que virtualmente,

representava um retorno à teoria tradicional das compleições, sob o disfarce de ciência contemporânea. Por exemplo,

“No inverno, Kendall tem mostrado que a glândula tireoide contém menos tiroxina, esta deficiência acentua o entoblastismo. Na primavera, o mesoblastismo se manifestará através do despertar da genitalidade, da atividade muscular, um aumento das hemácias e da taxa de hemoglobina.”113

Essa série inclui, ainda, outros aspectos ambientais (“mesológicos”), incluindo agentes astronômicos (o sol, as fases da lua, os planetas), meteoro- climáticos (clima, umidade ambiental, estado elétrico, regime dos ventos), físicos (magnetismo terrestre, orientação nos pontos cardinais, impressões sensoriais), psíquicos, alimentares, tóxicos, infecciosos e sociais. Virtualmente, trata-se dos “non naturales” da medicina galênica, reinterpretados de acordo com seu potencial “endoblastizante”, “mesoblastizante”, “cordoblastizante” ou “ectoblastizante”.114                                                                                                                 111 Ibid, 138. 112 Ibid, 183. 113 Ibid, 184. 114 Ibid, 194 et seq.

Neste ponto, Martiny oferece um resumo da ideia toda:

“[...] uma grande Lei opera, que podemos chamar de Hierarquia Cronológica Ascendente [...] 1º Não importa quais sejam as escalas de magnitude do tempo e do espaço sobre as que operam os fenômenos vitais, um processo comum opera em seu desdobramento; 2º Depois de um estágio inicial passivo [...] a matéria vital, como consequência de um impulso interno combinado com uma ação exterior, se desloca [...] na direção de um novo equilíbrio. Esse deslocamento suscita uma coerência nova que é um ganho e representa um estágio ascendente hierárquica e cronologicamente diferenciado. Essa lei encontra sua cristalização nas quatro grandes constituições, segundo o ordenamento endo-, meso-, cordo- ectoblástico. Ela anima com seu ritmo próprio a grande Evolução filogenética, a Ontogênese do embrião, as idades dos seres vivos, os ciclos biológicos anual, mensal e diário. Ela condiciona a adaptação progressiva ou instantânea às influências mesológicas. Um mundo esclarecido por esta grande síntese mecânica se abre diante das ciências biotipológicas.”115

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