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De acordo com William H. Schneider, pouco tem sido estudado sobre a eugenia na França, devido à aplicação de um conceito muito estreito que, por longo tempo, fez com que esta aparecesse como um fenômeno tipicamente anglo-saxão, associado com a aceitação imediata da herança mendeliana ou a fortes preconceitos de raça ou de classe. Por isso, esse autor propos uma visão mais ampla e inclusiva, onde a eugenia é relacionada com um contexto histórico-social fortemente impregnado pela percepção de que a sociedade

                                                                                                               

estava num estado de declínio e degeneração, para cuja solução foram propostos meios científicos.65

De fato, havia a preocupação pela saúde e o estado físico da população, associada a um aumento aparente no número de criminosos, alcoólatras, casos de tuberculose e de doenças venéreas e à diminuição da natalidade.66 Assim, as tentativas de solução foram organizadas ao redor de dois eixos, a natalidade e a higiene social, e que foram instrumentadas pelos professores da Faculdade de Medicina de Paris, onde estudou Martiny no período em questão.

No contexto desta pesquisa, interessa-nos em particular a abordagem da natalidade, no projeto conhecido como “puericultura”, montado por Adolphe Pinard (1844-1934), professor de obstetrícia na Faculdade de Medicina de Paris. Puericultura significava para ele, “o conhecimento relativo à reprodução, conservação e melhoramento da espécie humana”67. Na época

em que Martiny realizou seus estudos de graduação, a tendência eugênica francesa tendia a ser positiva, vale dizer, enfatizava as medidas de higiene social, especialmente focadas no alcoolismo, a tuberculose e as doenças

                                                                                                               

65 Schneider, “Eugenics Movement in France”, 69.

66 Um estudo conduzido por Brocca entre 1866 e 1867 evidenciou diminuição de

características mensuráveis, como a estatura, na população de soldados e escolares franceses. Por outro lado, a França havia perdido sua reputação como potência militar no Continente na Guerra Franco-Prussiana de 1870-1; Ibid, 70.

67 Ibid, 72. Sobre Pinard, vide também Bashford, & Levine, Oxford Handbook of the History of Eugenics, 336.

venéreas, ao invés das supressivas, como o controle pré-matrimonial e a esterilização.68

Outro foco de interesse particular são o Rockefeller Institute e seu emissário na França, Alexis Carrel (1873-1844), Premio Nobel de Fisiologia, porquanto tiveram grande influência na carreira de Martiny.

Alexis-Marie-Joseph-Auguste Carrel nasceu em Lyon e completou seus estudos de medicina na Université de Lyon. Embora houvesse precocemente manifestado uma habilidade cirúrgica, não conseguiu obter os títulos de que necessitava a fim de prosseguir seus estudos, por falta de mentor (patron

procteteur) que o auxiliasse, nem passar nos chamados concours.

Segundo sua autobiografia, Carrel sofria de uma crise de identidade, não exclusiva a ele, pelo fato de ter sido criado em um ambiente católico, embora ele próprio não fosse praticante, dentro do universo acadêmico. Associado a esses fatores, cresceu em Carrel um interesse a respeito das curas milagrosas, o que era bastante comum no fim do século XIX na França. Em 1901, quando foi reprovado em seu primeiro concours, escreveu um tratado a respeito das curas da Virgem de Lourdes e, em 1902, voluntariou-se a acompanhar um grupo de peregrinos doentes ao santuário.69

                                                                                                               

68 Schneider, 76. No entanto, a eugenia negativa voltaria ao centro do palco na década de ’20,

em virtude de fatores como a depressão econômica, a influência da Igreja católica e dos movimentos eugênicos nos EUA e na Alemanha nazista; Ibid, 84.

69 Os dados nesta secção foram tomados da obra God’s Eugenicist: Alexis Carrel and the Sociobiology of Decline, de Andrés H. Reggiani. Esta biografia mostra a carreira de Alexis

Carrel como médico cirurgião além de seu envolvimento com movimentos políticos na França e nos EUA relacionados à eugenia.

Lourdes era na época, não somente o local onde aparecera a uma jovem a imagem de Nossa Senhora (1845) a uma jovem pastora, mas também um símbolo do conflito entre a Igreja Católica e a elite anticlerical na França. Devido às diversas atribuições de curas no santuário, este era o único local da Igreja Católica que possuía um centro médico de “verificações de cura” (Bureau de constatations médicales) de reputação internacional. Isso porque Jean-Martin Charcot (1825-1893), em seus trabalhos sobre a histeria, havia associado os efeitos da fé com sintomas histéricos. Além disso, as péssimas condições de higiene do santuário eram frequentemente apontadas em detrimento das suas curas milagrosas. Porém, os serviços médicos do santuário continuavam a atrair a atenção crescente de médicos de grande reputação da França e regiões vizinhas.

Carrel visita Lourdes dentro deste contexto, voltando seu interesse principal ao que era chamado de cicatrisations ultra-rapides, que o intrigavam. Acompanhou em seu grupo de pacientes peregrinos, especialmente, o caso de uma jovem chamada Marie Bailly, com tuberculose, cujo quadro clínico registrou antes da visita. Após os banhos nas águas quentes, Carrel pode constatar o “milagroso” desaparecimento total dos sintomas (fato atestado por dois outros médicos), na mesma tarde em que chegou, configurando uma cura súbita. Bailly mencionou a um jornal local o nome de Carrel como o da testemunha principal da “cura milagrosa”. Embora ele negasse, por medo às possíveis repercussões sobre sua reputação, os receios confirmaram-se e o episódio chegou ao conhecimento de seus colegas em Lyon, que o

qualificaram como impostor. Isso marcou o fim de toda possibilidade acadêmica e empregatícia para Carrel.

Carrel tomou a decisão de migrar a Montréal. Ali desenvolveu uma técnica de sutura dos vasos sanguíneos que despertou o interesse dos médicos e acadêmicos norte-americanos, sendo convidado a lecionar na Universidade de Illinois. Em 1905, foi convidado a desenvolver sua técnica de “triangulação” no Johns Hopkins Hospital e, em 1906, Simon Flexner (1863- 1946) ofereceu a ele uma posição no Rockefeller Institute for Medical

Research em Nova Iorque. No Instituto, Carrel encontrou o ambiente propício

para sua pesquisa. Em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, graças a seu trabalho em cirurgia vascular e transplante de órgãos.

Na década de 30, realizou trabalhos de pesquisa em circulação extracorpórea, conjuntamente com Charles Lindbergh (1902-1974). Além do interesse em técnicas cirúrgicas, Lindbergh e Carrel compartilhavam os mesmos interesses políticos. Em 1935, Carrel lançou sua obra literária mais famosa, L’homme, cet unconnu, cujas ideias eugenistas despertaram o interesse de muitos cientistas e acadêmicos nos EUA, tornando seu autor uma verdadeira celebridade literária. No entanto, o ponto de vista político de Carrel estava em dissonância com o clima liberal prevalente entre os cientistas dos EUA em sua época. Dizia que estes ideais democráticos eram os responsáveis pela catástrofe contemporânea, referindo-se ao clima pré- guerra. Conforme a Europa se aproximava da guerra, Carrel impunha sua

visão fascista, chegando mesmo a glorificar Hitler no prefácio de L’homme,

cet inconnu, editado em 1939.

Em 1939, após o fechamento de seu laboratório no Rockefeller Institute, Carrel voltou para a França, onde tronou-se assessor técnico do Secrétariat

d’état de la famille et de la santé. No entanto, desencorajado pelo clima liberal

que permeava o governo francês, voltou aos Estados Unidos para só regressar à França em 1941, já sob o governo de Pétain, onde achou espaço propício para que suas ideias fossem desenvolvidas.

A Fondation Française pour l’Etude des Problèmes Humains (FFEPH) foi o centro onde Carrel pode colocar em prática seus planos para a medicina preventiva, através de conceitos como os de biotipologia, eugenia, puericultura e higiene industrial. Fundada em 1941, tinha como objetivo aperfeiçoar as condições fisiológicas, mentais e sociais da população francesa. Os trabalhos da Fundação foram publicados nos Cahiers, nos quais Carrel e seus colaboradores descreviam as características dos estudos lá realizados. Nesse contexto, cabe destacar o uso frequente de expressões tais como “fator humano”, “síntese”, “pessoa real”, verdadeiras “senhas” das ideias da época, como é discutido abaixo.

Figura 7: Alexis Carrel e Charles Lindbergh no Rockefeller Institute, 1935.70

No início de 1944, Carrel estava já afastado da Fondation por problemas pessoais com a nova diretoria. Faleceu em Paris, em novembro deste mesmo ano, enquanto o governo liberal o denunciava por seus atos durante o governo de Vichy.

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