• Nenhum resultado encontrado

MARTINY: NEO-HIPOCRATISMO, EUGENIA E BIOTIPOLOGIA

3. CONCLUSÕES: BIOTIPOLOGIA E CIÊNCIA

Como pode ser constatado, a associação feita por Martiny entre biótipos e folhetos embrionários é puramente analógica, sem qualquer embasamento em trabalho experimental de laboratório. Igualmente, tampouco foram realizadas mensurações objetivas referidas a aspectos endocrinológicos, metabólicos ou bioquímicos. Os únicos dados apresentados por Martiny são antropométricos que, per se, não permitem levar a quaisquer conclusões fisiológicas, patológicas, psicológicas, sociais, ambientais ou pedagógicas referidas a algum dos supostos campos de aplicação da biotipologia. Ao contrário, os trabalhos antropométricos caracterizam marcadamente as abordagens eugenistas de Galton e Pearson ao nazismo, apenas para citar as instâncias mais evidentes.

Nossa análise mostra que Martiny, na verdade, infringiu todos os pressupostos mínimos do que se entende como ciência moderna, ou seja, a tentativa de fundamentar os fenômenos perceptíveis naquilo que é invisível. Ao que tudo indica, a disponibilidade de instrumentos e outros recursos necessários limitou mesmo que relativamente, o desenvolvimento desse objetivo. No entanto, esse argumento não pode ser aplicado no caso de Martiny, quando se leva em conta o grau de sofisticação da pesquisa embriológica desde a década de 1880.159

                                                                                                               

Dada esta situação combinando pistas de elementos eugênicos e bases epistemológicas notavelmente deficitárias, investigamos as possíveis vinculações de Martiny com movimentos eugenistas e/ou explicitamente racistas. Como foi discutido, os poucos estudos referidos à eugenia e ao movimento holista na França, da primeira metade do século XX, tendem a subestimar, senão a negar, essa rede de conexões. Nossa análise da documentação indica as origens claramente eugenistas, com indícios de finalidade racista da construção da biotipologia de Martiny, que talvez deva então, principalmente se tomarmos a obra Hérétiques como referência, ser diferenciado dos demais participantes do movimento holista.

Certamente, depois do final da Segunda Guerra Mundial, esse tipo de discurso passou a ser politicamente incorreto e desapareceu do contexto das chamadas biotipologias. Em particular, procurou-se “limpar” o nome de autores como Pende, cuja associação com o fascismo e o racismo continua atualmente sendo polêmica na Itália.

Assim, não causa surpresa que o próprio Martiny fizesse uma autocrítica explícita. Em 1973 publicou, no Bulletin et Mémoires de la Société

d’Anthropologie de Paris, o artigo “Quelques réflexions critiques sur l’existence des morphotypes humains”, onde reavaliou sua experiência com a

antropometria nos ambulatórios da Câmara de Comércio, discorrendo sobre os resultados de suas observações, questionando se os resultados seriam, realmente, concordantes com o que ele e Pende haviam descrito anteriormente. Indagou a si mesmo como outros autores de sua época se não

teriam realizado seus estudos baseados em um padrão ditado por Galeno e repetido pela tradição galênica através dos tempos:

“De qualquer forma, em 1973, a validade da base dos biótipos é censurável. Não só a sua interpretação é difícil, mas, se existir, é tal que os grupos endoblástico, mesoblástico, cordoblástico, ectoblástico são de uma qualificação muito difícil (aproximativa). No entanto, eles respondem a uma predominância de formas bastante óbvia, pela antroposcopia. Com apenas um relance, podemos diferenciar um cavalo de um puro-sangue. Este é o método que foi aplicado principalmente para os homens no estudo de nossos biótipos.”160

Assim, a teoria das biotipologias foi depurada de todo elemento eugenista e/ou racista, a sua falta de fundamentação empírica foi curiosamente omitida e, apesar de todas as suas contradições, como explicitadas na presenta obra, ela continua a ser apresentada como “ciência provada” em diversos contextos.

                                                                                                               

4. BIBLIOGRAFIA

Alfonso-Goldfarb, Ana M. “Centenário Simão Mathias: Documentos, Métodos e Identidade da História da Ciência.” Circumscribere 4 (2008): 5-9.

______ . O que é História da Ciência? São Paulo: Brasiliense, 2004. ______ . Da Alquimia à Química. São Paulo: Landy, 2001.

Albarracín, Agustín. “El fármaco en el mundo antiguo.” In: Historia del

Medicamento. 6a ed. Org. Diego G. Guillén. Barcelona: Doyma, 1987. Bachelard–Jobard, Catherine. L’eugénisme, la science et le droit. Paris:

Presses Universitaires de France, 2001.

Barnes, Jonathan. The Presocratic Philosophers. Revised edition. New York: Routledge, 1982.

Bashford, Alison, & Phillippa Levine. The Oxford Handbook of the History of

Eugenics. Oxford: Oxford University Press, 2010.

Bernstein, Serge, & Pierre Milza. Histoire de la France au XXe siécle. Paris: Hatier, 2005.

Black, Edwin. A Guerra Contra os Fracos. São Paulo: Girafa, 2003.

Boerhaave, Hermann. Academical Lectures... 2a ed. Londres: W. Innys, 1746- 51.

_________. “Introduction à la pratique clínique.” In: Des maladies des yeux... Paris: Huart & Moreau Fils, 1749.

Braudel, Fernand. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Busk, G. “Observation on a Systematic Mode of Craniometry”. Transactions of

Cairus, Henrique. “Da Natureza do Homem: Corpus Hippocraticum”. História,

Ciência, Saúde - Manguinhos 6 (1999): 39-59.

Carrel, Alexis, & Auguste Lumière, orgs. Médecine officielle et médecines

hérétiques. Paris: Plon, 1945.

Castañeda, Luzia A. “Testando uma teoria de herança: Francis Galton e os experimentos com a pangênese”. In: O Laboratório, a Oficina e o Ateliê: A

Arte de Fazer o Artificial. Org. Ana Maria Alfonso-Goldfarb & Maria Helena

Roxo Beltran, p. 201 - 226. São Paulo: Educ; Fapesp; Comped; Inep, 2002. Clarke, Edwin. ”Paul Broca”. In: Dictionary of Scientific Biography. Org. C.C.

Gillispie, p. 477-478. New York: Scribner, 1990.

Coghlan, Brian L.D., Rudolf L.K. Virchow, & Leon P. Bignold. Virchow’s

Eulogies: Rudolf Virchow in Tribute to His Fellow Scientists. Basel:

Birhausen, 2008.

Coulter, Harris L. Divided Legacy: a History of the Schism in Medical Thought, vol 1. Washington: Wehawken Books, 1975.

Entralgo, P. Laín. Historia de la Medicina. Barcelona: Salvat, 1985.

______. La Historia Clínica: Historia y Teoría del Relato Patografico. Madrid: Tricastela, 1998.

Feinstein, Wiley. The Civilization of the Holocaust in Italy: Poets, Artists,

Saints, Anti-Semites. Madison: Fairleigh Dickinson University Press, 2004.

Ferembach, Dominicque. “Le Docteur Marcel Martiny”. Bulletins et Mémoires

de la Société d’Anthropologie de Paris 10 (1983): 9-11.

Foucault, Michel. O Nascimento da Clínica. 6a ed. São Paulo: Forense Universitária, 2008.

Fortes, Lore. “Homeopathy and National Socialism”. Circumscribere 8 (2010): 12-27.

Franco, Francisco J.B. Constituição e Temperamento: Visão Unicista e

Aplicação Prática. São Paulo: Organon, 2004.

Freire, Maria M. de L. “Mulheres, Mães e Médicos: Discurso Maternalista em Revistas Femininas (Rio de Janeiro e São Paulo, Década de 1920)”. Tese de Doutorado, Fundação Oswaldo Cruz, 2006.

Galeno. Sobre las faculdades naturales. Trad. Tereza Martinez Manzano. Madrid: Gredos, 2003.

Galera, Andrés. “Construindo la fisiologia del delito: El modelo biotipológico

de Nicola Pende”. Triplov.

http://www.triplov.org/hist_fil_ciencia/galera/pende/biotipo.htm Acesso em 01/08/2011

Garcia Ballester, Luis. Galen and Galenism. Londres: Ashgate, 2002.

Gibson, Mary. Born to Crime: Cesare Lombroso and the Origins of Biological

Criminology. Washington: Library of Congress, 2002.

Gould, Stephen Jay. A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Goodman-Gilman, Alfred, org. The Pharmacological Basis of Therapeutics. 9a

ed. New York: Mc GrawHill, 1996.

Greenwell, Dora & Dorothy Greenwell. Lacordaire. Edimburgh: Edmonston and Douglas, 1867.

Hall, Thomas S. Ideas of Life and Matter: Studies in the History of General

Physiology 600BC-1900AD. Chicago: The University of Chicago Press,

1969.

Haller, Albrecht Von. Bibliotheca Anatomica. Vol 1. Tiguri: Orell, Gessner, Fuessli, 1774.

Harrington, Anne. Reenchanted Science: Holism in German Culture from

Wilhelm II to Hitler. Princeton: Princeton University Press, 1996.

Jarcho, Saul W. “Galen’s Six Non-Naturals”. Bulletin of the History of

Medicine 44 (1970): 372-377.

Jaspers, Karl. Psicopatologia Geral. São Paulo: Atheneu, 1973.

Keel, Othmar. L’avènement de la médecine clinique moderne en Europe:

1750-1815. Montreal: Presses de l’Université de Montreal, 2001.

Kevles, Daniel J. In the Name of Eugenics. Berkeley: University of California Press, 1985.

Klee, Ernst. Das Personenlexikon zum Dritten Reich: Wer war Was vor und

nach 1945. Frankfurt: Fischer, 2003.

Klibanski, Robert, Raymond Panofski, Erwin Panofski, & Fritz Saxl. Saturn

and the Melancholy: Studies in the Natural Philosophy, Religion and Art.

New York: Basic Books, 1964.

Kossak-Romanach, Anna. Homeopatia em 1000 Conceitos. São Paulo: Elcid, 1984.

Koupernik, Cyrille. “Eugénisme et psychiatrie”. Annales medico-

psychologiques 159 (2001): 14-18.

Lawrence, Christopher, & George Weisz. Greater than the Parts: Holism in

Lombroso, Cesare. Crime, Its Causes and Remedies. Boston: Horton, 1911. Lutaif, Silvana. "George Soulié de Morant e sua Tradução Ocidental do Saber

Médico Chinês". Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2005.

Martiny, Marcel. Essai de biotypologie humaine. Paris: Peyronnet, 1948. ______. Hippocrate et la Médecine. Paris: Fayard, 1964.

______. “Sur l’interêt de l’anthroposcopie dans l’étude des sportifs.” Bulletins

et Mémoires de La Société d’Anthropologie de Paris 3 (1968): 41-70.

______. “Quelques refléxions critiques”. Bulletins et Mémoires de la Société

d'anthropologie de Paris 10 (1973): 265-271.

Maclean, Ian. Logic, Signs and Nature in the Renaissance: The Case of

Learned Medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

Mohr, G.J., & Gundlach, R.H. “The Relation Between Physique and Performance.” Journal of Experimental Psychology 10 (1927): 117-157. Murphy, Terence D. “Medical Knowledge and Statistical Methods in Early

Nineteenth-century”. Medical History 25 (1981): 301-319.

Naccarati, S. “The Morphologic Aspect of Intelligence.” Archives of

Psychology 45 (1921): 33- 37.

Otto, Ton & Nils Bubandt. Experiments in Holism: Theory and Practice in

Contemporary Anthropology. Weinheim: Wiley-VCH, 2010.

Padula, Ana Elisa M. “Claude Bernard”. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2011.

Paterson, D.G. Physique and Intelect: Century Psychology Series. New York: Century, 1930.

Pearson, Karl. “Relationship of Intelligence to Size and Shape of the Head and Other Mental and Physical Characters.” Biometrika 5 (1906): 105-146. Pende, Nicola. Constitutional Inadequacies. Philadelphia: Lea & Febiger,

1928; Boccia: Salvat, 1947.

__________. Trattato di biotipologia umana: individuale e sociale, con

applicazioni alla medicina preventiva, alla clinica, alla politica biologica, alla sociologia. Milão: Vallardi, 1939.

__________. Trattato di endocrinologia. Milão: Vallardi, 1934.

__________. Scienza dell’ortogenesi. Bergamo: Instituto italiano d'arti grafiche, 1939.

Petersen, William F. “Constitution and Disease.” Physiology Revue 12 (1932): 283-308.

Porter, Roy. The Cambridge History of Medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

Reggiani, Andrés H. God’s Eugenicist: Alexis Carrel and the Sociobiology of

Decline. Oxford: Berghahn Books, 2007.

Reingold, Nathan. “The Case of the Disapearing Laboratory.” American

Quarterly 29 (1977): 79-101.

Robert, Jason R. Embryology, Epigenesis, and Evolution: Taking

Development Seriously. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

Robbins, Stanley L., Ramzi S. Cotran, & Vinay Kumar. Patologia Estrutural e

Funcional. 5a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1994.

Roe, Shirley A. The Natural Philosophy of Albrecht von Haller. New York: Arno Press, 1981.

Rothschuh, Karl. E. History of Phisiology. Trad. Gunther B. Risse. Huntington: Robert E. Krieger, 1973.

Russo, Marisa. “Irritabilidade e Sensibilidade: Fisiologia e Filosofia de Albrecht von Haller”. In: Filosofia e História da Ciência no Cone Sul: 3º

Encontro. Org. Roberto de A. Martins, Lilian A.-C.P., Cibeli C. Silva, &

Juliana M.H. Ferreira. Campinas: AFHIC, 2004.

Sagrado, Maria V. Manual de técnicas somatotipológicas. México: Editora UNAM, 1991.

Salles, Sandra A.C. “O Perfil do Médico Homeopata”. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2001.

Sapp, Jan. Evolution by Association: A History of Symbiosis. New York: Oxford University Press, 1994.

Schneider, William. “The Eugenics Movement in France, 1890-1940”. In: The

Wellborn Science: Eugenics in Germany, France, Brazil and Russia. Ed.

Mark B. Adams. Oxford: Oxford University Press, 1990.

Sennert, Daniel. The Institutions or fundamentals of the whole art, both or

phisick and chiurgery. London: Lodowick Lloyd, 1656.

__________. Nine Books of Physick and Chirurgery. London: L. Lloyd, 1656. Sharp, Daryl. Personality Types: Jung's Model of Typology. Toronto: Inner

City Books, 1987.

Sheldon, William H. “Morphological Types and Mental Ability.” Journal of

Personality Research 6, no. 1 (1927): 447-451.

______. Atlas of Men. New York: Harper, 1954.

Siraisi, Nancy G. Medieval and Early Renaissance Medicine: An Introduction

Stockard, C. R. The Physical Basis of Personality. New York: Norton, 1931. Taton, René. ”Francis Galton”. In: Dictionary of Scientific Biography. Org. C.C.

Gillispie, p. 265-266. New York: Scribner, 1990.

Temkin, Owsei. Galenism: Rise and Decline. Ithaca: Cornell University Press, 1973.

Trento, Ângelo. Do Outro Lado do Atlântico: Um Século de Imigração Italiana

no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1989.

Turinese, Luigi. Modelli psicosomatici: un approcio categoriale alla clinica. Milano: Elsevier, 2009.

Vannier, Léon, & Jean Poirer. Tratado de Matéria Médica Homeopática. São Paulo: Andrei, 1987.

Vertinsky, Patricia. “Physique as Destiny: William H. Sheldon, Barbara Honeyman and the Struggle of Hegemony in the Science of Somatotyping.”

Canadian Bulletin of Medical History 24, no. 2 (2007): 291-316.

Waisse-Priven, Silvia. Hahnemann: Um Médico de seu Tempo. São Paulo: Educ; Fapesp, 2005.

______. d & D: duplo Dilema. Du Bois-Reymond & Driesch, ou a vitalidade do

Vitalismo. São Paulo: Educ; Fapesp, 2009.

______, & Ana M. Alfonso-Goldfarb. “Mathematics ab ovo: Driesch and Entwicklungsmechanik.” History and Philosophy of the Life Sciences 31 (2009): 35-54.

Weisz, George. “Moment of Synthesis: Medical Holism in France between the Wars”. In Greater than the Parts: Holism in Biomedicine, 1920-1950. Ed. Christopher Lawrence, & George Weisz. New York: Oxford University Press, 1998.

Withington, Edward. Medical History from the Earliest Times. London:

Scientific Press, 1894.

Young, Robert M. ”Gall, Franz Joseph”. In: Dictionary of Scientific Biography, org. C.C. Gillispie, 250-256. New York: Scribner, 1990.

Yamamura, Ysao. Acupuntura Tradicional: A Arte de Inserir. 2a ed. São Paulo: Roca Biomedicina, 2004.

Zancarini-Fournel, Michelle. Le genre du sport. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2006.

Documentos relacionados