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MARTINY: NEO-HIPOCRATISMO, EUGENIA E BIOTIPOLOGIA

2.4 Hereges entre os ortodoxos

Em 1949 foi publicada, na França, uma obra organizada por Alexis Carrel intitulada Médecine officielle et Médecines hérétiques.142 Os diversos capítulos foram compostos pelos maiores nomes da medicina holística da época, entre os quais Martiny, que desse modo, permite-nos um olhar particular nas ideias comuns a esse grupo, assim como nos seus interesses diferenciais.

                                                                                                               

140 Keel, Avènement de la médecine, 414. 141 Essai, 422.

142 Carrel, org. Médecine officielle et médecines hérétiques; doravante referido como Hérétiques.

No capítulo introdutório, redigido pelo próprio Carrel, há uma apresentação de suas ideias acerca do mundo em que vive e sobre as “funções futuras da medicina”. Ele iniciou mostrando uma preocupação com a situação da saúde do ser humano de seu tempo, de maneira bastante pessimista, visto que, segundo ele, a eliminação das doenças infecciosas não suprimiria o adoecimento moral e psicológico nas sociedades “civilizadas”, exemplificando com a “fragilidade nervosa”, a “corrupção moral” e a “loucura”. Concluia, por fim, “nossa raça perde a coragem de viver”. 143 Perguntou-se, então, se a medicina poderia ajudar a mudar essa situação deplorável, e propôs três métodos de intervenção para sanar os males da sociedade moderna.

O primeiro método diz respeito à individualização nos estudos sobre o ser humano, pois, em última instância, “ele é um objeto único no universo”144.

Além disso, propôs estudos sobre a moral e o caráter, bem como sobre a clarividência e a telepatia. Carrel mencionou a existência, em Paris, de um instituto dedicado aos fenômenos metapsíquicos.

O segundo método proposto, que confirma a análise realizada ao longo da presente pesquisa, é a valorização dos estudos sobre biotipologia e a eugenia de maneira igualitária para alcançar uma sociedade “mais saudável”:

“É preciso dar mais importância à tipologia humana como já fez Nicola Pende, na Itália. E, igualmente, à eugenia e à                                                                                                                

143 Carrel, “Role future de la médecine”. 144 Ibid, 4.

modelagem do homem pelos fatores físicos, morais, intelectuais, estéticos e religiosos do meio. Enfim, ao estudo da deterioração mental e da criminalidade.”

O terceiro método proposto por Carrel foi a realização daquele que seria o instrumento ideal para a solidificação de uma sociedade saudável em “todos os aspectos do conhecimento humano”. A criação do Institut de

l’Homme (Instituto do Homem) pode-se dizer que sempre foi um sonho de

Carrel. Essa instituição teria como objetivos primeiros: “definir os princípios da formação fisiológica e espiritual do indivíduo”, “estudar as condições sociais e mentais necessárias à vida de cada indivíduo” e, finalmente, produzir estudos para efetuar “a propagação dos melhores elementos da raça”.145

Carrel finalizou o capítulo afirmando que esse conhecimento podia proteger os indivíduos contra as doenças orgânicas e contra a deterioração mental produzidas pela civilização industrial. Ao mesmo tempo, a adoção desses métodos poderia trazer equilíbrio às atividades humanas, fazendo com que cada indivíduo se tornasse “um bom elemento” dentro da raça e da sociedade em que vive:

“Hoje, graças à eugenia e a uma sábia utilização dos fatores físicos, químicos, fisiológicos e mentais que agem sobre a formação do indivíduo, este sonho tornou-se realizável. A medicina pode ajudar na realização das tendências hereditárias de cada um.

No plasma germinativo das raças que ocupam a Europa Ocidental há, ainda, imensas potencialidades. Estas raças deram prova de sua força criativa. Seu gênio é de uma diversidade                                                                                                                

prodigiosa. Ele é expresso por César, por Carlo Magno e por Napoleão. Mas, também, por Dante, Ruysbroeck, o admirável, Newton, Pasteur. A gênese dos grandes homens é ainda desconhecida. Não seria preciso procurá-la, desde já, para a construção de indivíduos de uma estatura intelectual e espiritual mais alta?”.146

Assim, finalizou afirmando que a “qualidade de vida é mais importante que a vida em si”147.

O capítulo redigido por Rémy Colin,148 intitulado ”Existe-il une doctrine

officielle?” (Existe uma doutrina oficial?) lidava com os conflitos entre os

métodos tradicionais na medicina e o surgimento de técnicas novas naquele momento, como por exemplo, a psicossomática, a biotipologia e a psicanálise. Já aquele composto por Auguste Lumière149 discutia a retomada da medicina humoral no século XX.150 O médico homeopata Léon Vannier,151 em “La

tradition scientifique de l’homéopathie”, por sua vez, tratou dos princípios da

homeopatia e de seu reconhecimento como sistema terapêutico eficaz.

                                                                                                               

146 Ibid. 147 Ibid, 9.

148 Rémy Colin (1880-1957), médico que praticava o que poderíamos qualificar como uma

“medicina psicológica”, era professor de histologia na Faculdade de Medicina de Nancy; suas obras incluem textos sobre a “metafísica da vida”; vide http://www.professeurs-medecine- nancy.fr/Collin_R.htm Acesso em 11/08/11.

149 Auguste (1862-1954) e seu irmão Louis Lumière são universalmente conhecidos pelo

desenvolvimento do cinematógrafo. Além disso, Auguste montou um laboratório de pesquisas fisiológicas e farmacológicas, em Lyon, visando a fabricação de novos medicamentos; publicou, também, textos nas áreas de biologia e de medicina; vide Sapp, Evolution by Association, 104.

150 Lumière, “La Médecine humorale et ses résultats”.

151 Léon Vannier, (1880-1963), foi uma das maiores autoridades da homeopatia francesa

A defesa das teses da medicina naturalista, acerca de que o ser humano deveria voltar às suas origens primordiais e ao contato com a natureza e seus elementos, é o conteúdo da contribuição de Joseph Poucel.152 Outro autor muito conhecido no ambiente das chamadas medicinas

alternativas é o médico George Soulié de Morant.153 Seu capítulo nesta obra discorre sobre a acupuntura, a “energia vital”, e a “eletricidade cósmica”.154

Pouco conhecido na atualidade, René Allendy (1889-1942) foi uma das figuras centrais no palco da medicina holista francesa na primeira metade do século XX. 155 No contexto de Hérétiques, discorreu sobre “agentes imponderáveis” que, no caso, deviam ser entendidos como elementos místicos e espirituais que podiam interferir no exercício da medicina.

Como esperável, o capítulo de Martiny está dedicado ao neo- hipocratismo.156 Além de apresentar um breve histórico do movimento neo-

hipocrático e sua situação contemporânea na França, retomou alguns dos pontos centrais do seu manifesto programático, diferenciação entre “experimento” e “experiência” (a ser enfatizada à custa do primeiro), a oposição “análise versus síntese” em medicina, etc. - como justificativa para o

                                                                                                               

152 Joseph Poucel 1881-1971), grande representante do movimento naturista na França,

nesse capítulo discorre sobre sua experiência na prática da medicina, baseada na prevenção de intoxicações com álcool e tabaco, a exposição do corpo nu ao ambiente (“o ar”) e à água (hidroterapia), alimentação vegetariana etc.

153 George Soulié de Morant (1878-1955) é reconhecido como o introdutor da Medicina

Tradicional Chinesa na França e, consequentemente, a acupuntura no Ocidente; vide Lutaif, “George Soulié de Morant”

154 “Acuponcture, énergie vitale et électricité cosmique”. 155 Vide Weisz, 73.

que considerou ser a necessidade de retornar “ao plátano de Cós”157.

Acentuando, entre outros conceitos, a utilidade terapêutica da vis medicatrix

naturae, a importância dos fatores ambientais, dietéticos, a atividade física e a

higiene mental – os “non naturales” – o “neo-hipocratismo” serviu a Martiny para fundamentar sua teoria dos biótipos.

É nesse contexto que encontramos comprovação documental da hipótese desenvolvida ao longo da presente obra. Em 1945, Martiny, aparentemente, não encontrou obstáculos de qualquer natureza para enunciar explicitamente a relação entre biótipos e raças humanas. Em função do estado da discussão sobre as possíveis relações entre o movimento médico holista francês, a eugenia e as teorias racistas, vale a pena citar por extenso:

“Estes quatro biótipos básicos podem ser ligados a uma ordem cronológica da evolução racial. Pode-se, de fato, admitir que, graças ao atavismo e apesar das pluralidades da mestiçagem, os fenótipos de aparência o bastante pura lembram os genótipos fundamentais.

Assim: 1o O endodérmico com o corpo inclinado para frente, a nuca curvada, o queixo recuado, pode estar ligado aos antropoides e aos negroides, ainda inteiramente polarizados sobre uma vida nutritiva essencialmente vegetariana.

2o O mesodérmico, ainda curto na perna, mas cuja atitude é em linha reta, no qual o queixo se endireita, no qual o nariz se desenha e se curva, pode estar ligado aos primeiros homens, conquistadores e caçadores, nômades e carnívoros.

                                                                                                               

3o O blastodérmico, no qual os membros se alongam, o ângulo facial se redesenha, e a testa se torna irregular, pode sem dúvida estar ligado aos primeiros organizadores de uma vida de relação, em um momento coletivo e social.

4o O ectodérmico, que cai ligeiramente sobre sua atitude ereta, que eleva sua fronte e torna côncava a sua nuca, completando assim o desenvolvimento da cabeça, pode estar ligado aos primeiros homens civilizados enfraquecidos, os quais, já com a posse do mundo, tornam-se passivos e com puro

pensamento.”158

Merecem ser ressaltadas nessa construção não somente as características de maior ou menor aptidão física e mental das raças respectivas, mas o conceito de uma gradativa evolução racial, levando de raças meramente “vegetativas” – antropoides e negroides – àquelas consideradas socialmente mais desenvolvidas e intelectualizadas.

                                                                                                               

158 Martiny, “Nouvel Hippocratisme”, 149. No entanto, admite que cabe a possibilidade de um

entoblástico vir a ser um homem de “muito grande valor, um super-homem mesmo, como parece ter sido São Tomás de Aquino”, enquanto que o entoblástico, um indivíduo de intelecto obtuso.

3. CONCLUSÕES:

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