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Dizíamos acima, que algumas expressões podem ser consideradas palavras-chave da medicina francesa nas primeiras décadas do século XX,                                                                                                                

que apontam, diretamente, para o surgimento e a ampla difusão das biotipologias nesse período. O próprio Martiny indicou, para justificar a “ciência da biotipologia”, a necessidade de se abordar os seres humanos de maneira integral ou “sintética”. Vale dizer: reconhecia o valor da abordagem analítica das ciências contemporâneas, mas afirmava enfaticamente que: “não há doenças, mas doentes” e “o homem está feito de todas essas unidades biológicas reunidas e também tem uma personalidade, que só pode ser definida de acordo com o valor específico do ser como um todo”71.

A questão do que se conhece como “holismo médico”72 tem sido amplamente estudada em alguns contextos, como o alemão, onde o conflito “máquina versus organismo” foi um tema explicitamente discutido pela sociedade em geral e os estudiosos em particular, chegando a formar parte do discurso oficial do nazismo.73 No entanto, tem sido, ainda, pouco abordada

no contexto francês.

Na França, aponta George Weisz, 74 o termo “holismo” não se popularizou até a década de 1960, e até então, eram utilizados termos afins, como “síntese”, “humanismo médico” e “neo-hipocratismo”. É neste contexto que se encontram circunscritas as idéias e atividades de Martiny.

                                                                                                               

71 Martiny, Essai de biotypologie, 13-4.

72 O termo “holismo” foi cunhado pelo então presidente da África do Sul, Jan Smuts em sua

obra Holism and Evolution, de 1926, na qual discorria sobre a tendência integralizadora do universo. Apesar disto, Smuts foi um grande defensor da separação das raças num movimento conhecido mundialmente chamado Apartheid. Vide Otto, & Bubandt, Experiments

in Holism, 252 - 4.

73 Vide Harrintgon, Reenchanted Science; Fortes, “Homeopathy and National Socialism”. 74 Weisz, “Moment of Synthesis”, 68.

De acordo com Fritz Stern, no contexto do pessimismo do período de entreguerras, cientistas tais como Carrel, Rémy Collin (professor de histologia e autor de Physique et metaphysique de la vie, 1925) e Louis de Broglie (vencedor do Prêmio Nobel de Física de 1929) misturavam temas científicos com filosofia, surgindo então, um panorama mais amplo que foi denominado “holismo”. Segundo o próprio autor, este é um termo bastante elusivo e servia para denominar a medicina dita “alternativa”, variando desde o estudo das constituições, a biotipologia, o neo-hipocratismo e a psicobiologia, à homeopatia e os tratamentos fitoterápicos.

O que unia todas estas subdivisões terapêuticas era o fato de postularem que o ser humano não deveria ser observado em seções ou partes, como era próprio da medicina convencional, que tendia às subespecializações e ao aumento crescente dos exames laboratoriais na investigação do processo patológico. Tanto nos EUA, quanto na Europa havia a ideia de que a relação médico-paciente deveria ser diferente, mais próxima, e assim, procurou-se redesenhá-la.75 Esta visão já havia sido desenvolvida por Carrel durante seu período no Rockefeller Institute ao mesmo tempo em que mantinha contato com holistas franceses de Lyon, como René Allendy (1889-1942), Pierre Delore (1896-1960) e Paul Desfosses.76

Weisz descreveu duas linhas de força no desenvolvimento do holismo médico francês que nos ajudam a enquadrar o nosso objeto de estudo. Por

                                                                                                               

75 Reggiani, 61.

76 Paul Desfosses era médico, cirurgião e editor de La Presse Médicale; vide Freire,

um lado, havia a chamada linha “pragmática”, constituída por cientistas que formavam parte do establishment médico convencional, com a diferença de que abordavam as questões da saúde humana de uma perspectiva sistêmica e contextualizada. Vale dizer, tratava-se de médicos e cientistas dedicados à atividade clínica e à pesquisa que, dessa maneira, produziram um corpo importante de evidências que embasava as abordagens não reducionistas do ser humano. Esse viés se viu reforçado pelo fato de que alguns dos campos privilegiados de estudo eram ramos marcadamente sistêmicos da ciência médica, a saber, a endocrinologia, a neurofisiologia e a imunologia. Essa linha levou à produção de um conceito chave da medicina francesa, o conceito de terreno, intimamente vinculado às noções de constituição e de temperamento, que se tornou o denominador comum de todos aqueles que, de alguma maneira, se opunham ao reducionismo biomédico.77

A outra linha era, marcadamente, ideológica e se autodelimitava completamente da medicina dita oficial. Composta por diversos grupos (naturopatas, vitalistas, humanistas cristãos78) era amplamente dominada pelos homeopatas. Esses grupos serviam-se das pesquisas produzidas pelos “pragmáticos” para fundamentar suas ideias holistas a priori. Como veremos, Martiny representou um caso exemplar desta linha de holistas.

                                                                                                               

77 O conceito de “terreno” também ocupou um lugar proeminente na bacteriologia francesa da

época. Assim, se debate a importância relativa dos microrganismos e da suscetibilidade individual e populacional ao contagio. Weisz, em 78, destaca que a noção de “terreno” foi incorporada, inclusiva, pela abordagem pasteuriana.

78 Na opinião de Weisz, 81-2, 85; embora também houvesse elementos eugênicos, com a

grande exceção de Carrel, não tiveram grande representação no holismo francês. No entanto, a associação de Martiny com Pende é suficiente para lançar sombras de dúvida sobre essa afirmação.

A conjunção de ambas as linhas teve como um dos seus resultados uma atividade febril para tipificar os “terrenos”, levando a uma verdadeira explosão de propostas de classificação de constituições e temperamentos (Tabela 1).

Nesse contexto, a figura de Hipócrates tornou-se o emblema da medicina holista e humanista e o “neo-hipocratismo” emergiu como movimento oficial em 1933.79 Esse movimento estava constituído por homeopatas como Allendy, Maurice Fortier-Bernoville (1896-1939) e Martiny, que vinham procurando formular uma forma de homeopatia cientificamente aceitável e mais próxima da medicina convencional. Por outro lado, o manifesto do neo-hipocratismo foi inspirado nos trabalhos do britânico Alexander P. Cawadias (n. 1884), e prescrevia: 1) a primazia da clínica sobre o laboratório; 2) uma concepção mais dinâmica da doença, baseada na constituição (morfologia), o temperamento (fisiologia) e o caráter (psicologia); e 3) um tratamento que visasse ajudar o corpo em sua reação contra a doença.80

                                                                                                               

79 Nesse retorno ao passado, adquirem posição de destaque os historiadores da medicina;

assim, Maxime Laignel-Lavastine e Arturo Castiglioni passam a lecionar na Academia de Medicina; Weisz, 82.

CAPÍTULO 2

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