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Afetados pela lógica da midiatização, as organizações midiáticas também precisam se reinventar e abandonar a clássica posição mediadora dos outros campos e midiatizar elementos da própria cultura no intuito de capturar o outro (alteridade) em vista de garantir a sua existência e a sua perenidade. Os discursos midiáticos já não seguem mais a lógica da objetividade e da opacidade enunciativa, tão caras ao jornalismo. Pelo contrário, privilegiam a autorreferencialidade enunciativa, assumem uma espécie de epifania, exibindo suas marcas de excelência, chamando atenção nas suas formas de pensar e agir. A Folha de S. Paulo constrói esta narrativa autorreferencial ao expor elementos na sua biografia, virtudes, escolhas e estilos.

No dizer de Fausto Neto (2006), a autorreferencialidade estabelece um contrato de comunicação no qual novos valores são lançados e postos em oferta na tentativa de ganhar a confiança do outro. Antes, na sociedade dos meios, as organizações midiáticas buscavam legitimidade pelo trabalho de construção da realidade assentada em critérios de objetividade, imparcialidade e verdade que exigiam um apagamento de suas marcas. Hoje, na sociedade midiatizada, já não basta mais à mídia levar o leitor até a cena do acontecimento, nem só ouvir testemunhas para manter a sua imparcialidade, é preciso se incluir no processo de construção da realidade, mostrar-se pela construção de uma nova espécie de making-off, de uma biografia autorizada, abrir espaço dentro do próprio produto (notícia) para falar de si, descrevendo seus modos de ser e de fazer.

Com base na pesquisa de Fausto Neto (2008), observa-se a construção da ‘analítica da midiatização’, processo que, segundo o autor, resulta da evolução de processos midiáticos que se instauram nas sociedades industriais. Tais processos constroem a mídia como instância organizadora dos demais campos sociais. Como explica Fausto Neto (2008), existe

[...] certa centralidade das mídias, mas enquanto um «lugar mediador» na medida em que estas se colocam como um ponto de articulação entre partes da sociedade, dependendo num grau maior ou menor, de outras dinâmicas de campos e de suas práticas sociais (FAUSTO NETO, 2008, p. 91).

Então, a mídia assume a tarefa de produzir inteligibilidades enquanto espaço de interação entre os públicos. Ela perde o lugar de auxiliar e “passam a se constituir uma referência engendradora no modo de ser da própria sociedade, e nos processos e interação entre as instituições e os atores sociais” (FAUSTO NETO, 2008, p. 93). O conceito de cultura da mídia parte dessa reflexão e, compreende que a sociedade e seus campos sociais encontram-se “atravessados” pela mídia, por seus pressupostos e lógicas.

A partir das mudanças vivenciadas com a transformação da sociedade dos meios em sociedade midiatizada, surge, de acordo com Fausto Neto (2008), uma nova ambiência em que as interações sociais são atravessadas por novas modalidades do trabalho de sentido. Os contratos de leitura também se modificam, já que as relações e interações entre produtores e público são também afetadas. Diante desses novos modelos de interação, a realidade passa a ser enunciada de outra forma.

O conceito da analítica da midiatização, logo, refere-se ao

[...] trabalho de leitura realizado por uma modalidade de comunicação, segundo práticas que envolvem dispositivos tecno-discursivos que tomam como referência o modo de existência das lógicas e dos pressupostos da cultura midiática, se estruturam em suas próprias formas de linguagens e por meio de operações de sentido para construir realidades, na forma de textos nos quais se figuram representações sobre a realidade construída (FAUSTO NETO, 2008, p. 94).

Este conceito reflete uma das características marcantes da midiatização que é a autonomia do campo da mídia, que passa a trabalhar com estratégias que ajudem os leitores a interpretar os acontecimentos do mundo e a refletir sobre as mudanças da sociedade dos meios para a midiatizada.

São nas novas configurações dadas à mídia, onde a inteligibilidade da esfera pública perpassa os meios e as interações entre leitores e produtores, que o discurso deste campo social midiático também se altera. A analítica da midiatização, explica Fausto (2008), e seus

efeitos de poder passam a compor o discurso e as operações de inteligibilidade, tanto na produção quanto no reconhecimento.

De posse dessas informações e conceitos, as características da analítica da midiatização serão analisadas nesta tese, identificando-se a presença desta no campo das mídias e considerando as transformações do processo de produção do discurso jornalístico. Para Fausto Neto tal prática se justifica, pois, “os discursos jornalísticos se propõem, por natureza, a realização de uma determinada tarefa “analítica” segundo “regras privadas” inerentes às suas rotinas e processos produtivos” (FAUSTO NETO, 2008, p.97). Os critérios de análise estão embasados nos seguintes aspectos citados pelo pesquisador: 1) transformações da topografia jornalística como espaço organizador do contato; 2) autorreferencialidade do processo produtivo; 3) auto reflexividade sobre os fundamentos teóricos e 3) transformação do status do leitor.

As transformações da topografia jornalística referem-se à utilização de seções do jornal para estabelecer o contato do leitor com os atores da cena jornalística. Trata-se da atorização, em que a mídia, de um modo geral, faz referência a existência destes atores na forma de textos ou de imagens no corpo dos próprios textos institucionais. Pela analítica é possível analisar o papel desses atores no fazer do jornal. A ideia é fazer com que o leitor passe a entender como se dão as construções da mídia. Publicam-se imagens das redações, as editorias, os profissionais. Os jornalistas assumem a função de atores, sendo que suas fotos nas páginas impressas os tornam conhecidos, quase celebridades para os seus leitores. Esse aspecto é salientado por Fausto Neto no trecho a seguir:

Certamente, poucos campos sociais exibem com tanto didatismo a «cozinha» dos seus processos produtivos como faz, atualmente, o jornalismo. O efeito de sentido dessa estratégia é, justamente, argumentar que é preciso construir um vínculo mais duradouro entre estruturas de produção e consumo do jornal, e, para tanto, é preciso tornar visível e disponível o universo do próprio processo produtivo, nele fazendo, de alguma forma, aceder o leitor (FAUSTO NETO, 2008, p. 98).

As transformações de topografia interferem diretamente no contrato de leitura, e mostram as estratégias de construção de uma relação de intimidade e proximidade dos atores/enunciadores com os seus leitores. Com isso, tudo o que o jornal produz, cria e faz se torna real aos olhos dos leitores, diminuindo a distância e a abstração inerente ao ato de compra e venda do jornal.

A autorreferencialidade constitui-se em uma estratégia discursiva em que o texto não se dirige explicitamente ao leitor. O jornal fala de si mesmo e dá destaque a suas operações. Assim, a mídia presta contas, descreve seu próprio trabalho de rotina produtiva, dá ênfase

sobre um discurso de autocelebração referido às condições de uma cobertura. O destaque são os atos da mídia onde o personagem, aqui, não é o jornalista, mas, sim, o fazer jornalístico. Pela autorreferencialidade, o jornal produz uma enunciação na qual fala de si mesmo, das suas próprias operações, explicitando os fundamentos dos seus próprios processos interpretativos. É, de alguma forma, como uma autoafirmação, uma explicitação dos egos, conforme sugere Fausto Neto (2008)

A autorreflexividade constitui o terceiro dispositivo indicado por Fausto Neto (2008) e trata das operações discursivas e enunciações que chamam atenção para as concepções do dispositivo sobre o seu trabalho e sobre seu processo produtivo. O contrato, em suma, reflete um trabalho de seleção e monitoramento por parte da mídia.

Não obstante a diferença do foco da publicação, sua estratégia auto-reflexiva chama atenção para a importância que têm as «regras privadas» de um determinado processo produtivo, para orientar as operações de produção de sentido de uma publicação, e sobre as quais se assentam o «contrato» e os efeitos presumidos das próprias estratégias postas em ato (FAUSTO NETO, 2008, p. 100).

O modelo de autorreflexividade do jornalismo desloca o jornalista de sua curiosidade pelo mundo, centrando-o nas propriedades dos seus próprios ambientes.

O quarto, e último, dispositivo indicado por Fausto Neto (2008) é relativo às estratégias de protagonização do leitor. Considera-se que os leitores são instalados no interior do sistema produtivo e se tornam cooperadores de enunciação. Essa ampla inclusão do leitor nas pautas seria explicada em função da convergência tecnológica e traria efeitos nas interações entre produtores e leitores de discursos. Essas relações criam possibilidades e podem vir a transferir parte da responsabilidade da produção de um jornal para seus leitores.

A inclusão do leitor «num jogo a ser jogado» indica uma reformulação no contrato, apontando para um suposto regime de simetrias, e é sinalizada nas próprias operações jornalísticas [...] Há uma questão de fundo que não pode ser dissimulada e que, de alguma forma representa, o lado mercadológico dessas estratégias, e que diz respeito ao impasse apresentado pelo próprio modelo comunicacional. Se os meios têm autonomia para manejar estratégias interativas estimuladas pelos ventos da convergência, isto não quer dizer que o processo comunicacional se faça através de situações efetivamente de homogeneização (FAUSTO NETO, 2008, p. 101).

A participação do leitor indica que ele também compõe as operações de sentido de um jornal, com um olhar que parte da esfera externa do veículo e ao seu sistema de produção jornalística. Ainda que a participação desse leitor seja condicionada por regras impostas pela mídia, percebe-se a necessidade de tal participação como uma das preocupações do jornalismo, uma das estratégias de aproximação a fim de sustentar a manutenção da audiência.

Essas estratégias de aproximação com o leitor podem ser observadas já na capa do jornal A Folha de S. Paulo, na qual se encontra o “Fale com a Folha”, indicando aos leitores como entrar em contato com o serviço do assinante, as editorias e a ombudsman pelo site fale.folha.com.br. No primeiro caderno (intitulado A) o jornal traz o painel do leitor, uma sessão que recebe as mensagem dos leitores (leitor@grupofolha.com.br, ou via fax, ou diretamente na sede do jornal). O público é informado que os conteúdos sofrem triagem e são publicados somente trechos. Também o jornal destaca o contato direto com a ombudsman, via internet ou telefone19.

É via internet que os espaços sinalizam as possibilidades de participação do leitor (Figura 3).

Figura 3 – Ofertas de contato com a Folha de S. Paulo

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/falecomafolha/?cmpid=menupe

Ao leitor, são ofertadas opções de contato organizadas, seja para enviar notícias, como também, fotos e acontecimentos do dia a dia no canal “envie sua notícia”. O número de celular é disponibilizado para contatos via aplicativo de Whatsapp, tendo a possibilidade de contato direto do próprio celular. Para temáticas que envolvam o interesse público ou documentos inéditos que possam interessa a investigação jornalística e onde o anonimato é garantido, o público pode clicar em Folhaleaks. Na sequência, são oferecidos canais diretos

19 Durante a realização da tese, a pesquisadora tentou contatos com o ombudsman sem sucesso. As ligações e e-

com as editorias, também para reclamações sobre questões públicas da cidade, reclamações de consumidores, espaço para novas assinantes e para anunciantes.

Os dispositivos de contato ou de visibilidade da produção, indicados por Fausto Neto (2008), relatam um novo fazer discursivo que transforma os contratos de leitura, dando aos leitores a percepção de que fazem parte do campo das mídias. Outra consideração é que, em suma, todos os dispositivos apresentados comtemplam um discurso onde à mídia chama “atenção” para si mesma e para o seu modo de produzir. Tais estratégias encerram, no discurso jornalístico, modos de buscar aproximação com o leitor.

Somam-se a essa análise da analítica, as ações mercadológicas, as quais compartilham do mesmo objetivo: evitar que o leitor migre para concorrentes impressos ou outras plataformas de comunicação. Sobre a questão mercadológica, serão apontadas as discussões nos capítulos que seguem. É importante reforçar, que tanto as estratégias discursivas quanto as mercadológicas evidenciam a nova realidade competitiva vivida pela imprensa e alterações na postura do leitor.