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Ancoragem e relais de Barthes: relações entre imagem e texto verbal

Da multimodalidade à intersemiose: um enfoque enunciativo discursivo

3. Os prefixos uni-, multi-, inter e trans-

3.1. Ancoragem e relais de Barthes: relações entre imagem e texto verbal

Como forma de compreender parte dos processos de significação que ocorre na relação entre o texto verbal e a imagem, buscamos as reflexões semiológicas de Roland Barthes acerca dos conceitos de ancoragem e de relais. O primeiro Barthes20 (1961-1964) foca seu estudo principalmente na imagem fotográfica e assume que esta é dotada de, pelo menos, duas mensagens: a denotativa e a conotativa. O sentido denotativo da mensagem está intimamente ligado à referência direta entre o objeto fotografado e sua apresentação na fotografia. De acordo com Barthes, a fotografia esgota os significados denotativos possíveis do objeto fotografado e chama a (con)fusão entre o referente e sua fotografia de analogia

fotográfica. Já o sentido conotativo é interpretado não pela apresentação da imagem mas

por sua representação, determinada socialmente. Assim, os mecanismos de interpretação do sentido conotativo são voltados a estabelecer relações entre informações que não fazem parte da composição os objetos apresentados na fotografia. Para Barthes, o sentido conotativo é dado pela maneira como a sociedade realiza a leitura das imagens e pelos sentidos possíveis que são constituídos a partir de uma simbologia universal ou, como chama Barthes, "por uma reserva de estereótipos (esquemas, cores, grafismos, gestos, expressões, agrupamentos de elementos)" (BARTHES, 1990 [1961], p. 13).

As principais formas de referência recíproca entre texto e imagem definidas por Barthes (1990 [1964], p. 32) foram chamadas de ancoragem (ou fixação) e relais. Na

20 Ao referirmos aos textos de Roland Barthes que adotam uma abordagem mais estrutural das linguagens, chamamo-los de "1º Barthes". Em um período posterior, a abordagem foi revista em sua obra, também conhecida como "2º Barthes"

ancoragem, o texto faz referência aos significados da imagem, direcionando o olhar do

leitor para alguns aspectos em detrimento de outros. Da mesma forma, a imagem pode estar restrita a ilustrar parte do significado do texto. Nesse sentido, a ancoragem revela sua principal função: enfatizar os sentidos marcados ideologicamente. Trata-se de uma tentativa de descrição denotativa sobre a imagem (ou da imagem sobre o texto verbal), uma forma de buscar um sentido mais literal que se comporta de maneira parcial e não neutra. Nas palavras de Barthes (1990 [1964]: 33),

trata-se de uma metalinguagem aplicada não à totalidade da mensagem icônica, mas unicamente a alguns de seus signos; o texto é realmente a possibilidade do criador (e, logo, da sociedade) de exercer um controle sobre a imagem: a ancoragem é um controle, detém uma responsabilidade sobre o uso da mensagem, frente ao poder de projeção das ilustrações; o texto tem um valor repressivo em relação à liberdade dos significados da imagem; compreende-se que seja ao nível do texto que se dê o investimento moral e da ideologia de uma sociedade.

Na relação de relais, o texto e a imagem se encontram em relação complementar. As palavras, assim como as imagens, são fragmentos de um sintagma mais geral e a unidade da mensagem se realiza em um nível mais avançado (Barthes, 1990 [1964], p. 34). A relação de relais é facilmente encontrada em charges, histórias em quadrinhos, infográficos, mapas cartográficos, anúncios publicitários e notícias jornalísticas acompanhadas de imagens etc., entretanto, diferentemente da ancoragem, é possível encontrar relações de relais em gêneros discursivos nos quais as diferentes semioses são apresentadas de maneira híbrida — no sentido Bakhtiniano ou no modo 1 de Friedman (2002).

Tanto na relação de ancoragem quanto na de relais, a significação é dada pelo que Pierce chamou de indexical, ou seja, tanto as palavras quanto as imagens indicam o sentido de um objeto que é exterior a elas mesmas. Enquanto na ancoragem a relação é de direcionar a leitura da imagem pelo texto (ou vice-versa), na relação de relais, a atenção do observador é dirigida, evidentemente na mesma medida, da imagem à palavra e da palavra à imagem (SANTAELLA e NÖTH, 2005). Nesse sentido, pode-se dizer que as relações possíveis de ancoragem entre texto e imagem estejam no eixo da informatividade (inclusive

quando a imagem trouxer um sentido “contraditório” em relação ao texto) e da redundância (meras ilustrações e exemplificações sem função narrativa ou explicativa).

Barthes considera que a fotografia seja dotada de maior complexidade na compreensão de sua materialidade e de seus sentidos possíveis. Se, por um lado, a fotografia possui uma mensagem literal (sentido denotativo), relacionada ao momento de registro mecânico da imagem e, por isso, tenha sua objetividade garantida diante da captura da imagem, por outro lado, as intervenções puramente humanas relacionadas a esse registro (enquadramento, distância, luminosidade, nitidez etc.) são responsáveis por compor o sentido simbólico da mensagem fotográfica (sentido conotativo). O sentido conotativo também foi chamado por Barthes de terceira mensagem, ou mensagem "simbólica", determinada culturalmente. Segundo Barthes (1990 [1961], p. 36),

é, pois, ao nível dessa mensagem denotada, ou mensagem sem código, que se pode compreender plenamente a irrealidade real da fotografia; sua irrealidade é a irrealidade do aqui, pois a fotografia nunca é vivida como uma ilusão, não é absolutamente uma presença, (…) sua realidade é a de ter estado aqui, pois há, em toda fotografia, a evidência sempre estarrecedora do isto aconteceu assim.

Em síntese, a relação de ancoragem de Barthes oferece uma perspectiva de interpretação que pode ser encontrada em gêneros discursivos que intercalam (no sentido Bakhtiniano) duas ou mais semioses, estabelecendo entre si relações no eixo da

informatividade e da redundância (SANTAELLA, NÖTH, 2005), permitindo, dessa forma,

identificar esses gêneros como sendo multissemióticos. Em outras palavras, os gêneros apresentados no meio impresso em diferentes semioses de maneira intercalada — no sentido Bakhtiniano — e que estabelecem relações de ancoragem entre os aportes sígnicos são classificados, nesta pesquisa, como multissemióticos. Por outro lado, na relação de

relais, consideramos os gêneros discursivos impressos que apresentam duas (ou mais)

semioses que se relacionam de maneira híbrida e são classificados, nesta pesquisa, como intersemióticos.