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O ANDRÓGINO NO CINEMA

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 136-139)

“Vida, eu não penso em você como um homem, e eu não penso em você como uma mulher. Eu penso em você como um anjo.” Do filme Para Wong Foo, obrigada por tudo! Julie Newmar O cinema é uma ferramenta poderosa em termos de imaginário e reconfiguração identitária. Edgar Morin em seu livro O Cinema ou O Homem Imaginário fala em projeção e identificação como os processos mais comumente suscitados pelo cinema. Através deles, acontece tanto a projeção do mundo interior do homem para a ficção como a alimentação desse mesmo mundo interior pelas imagens e histórias criadas para as telas – um mecanismo de participação coletiva que ao mesmo tempo é mágico, estético e afetivo (MORIN, 1970) e que opera em níveis profundos da subjetividade constituindo não só experiência como também identidade individual e coletiva.

Sendo assim, é de grande importância discutir a forma que determinados grupos são representados no cinema ou na televisão. Aqui falaremos como a representação das identidades de gênero dissonantes no cinema compõem uma faceta determinante de como elas são entendidas e absorvidas:

Essa preocupação leva ao questionamento da cultura e da arte não como criadoras, mas como reafirmadoras ou críticas dos clichês das representações de gênero e de orientação sexual. Pelo seu impacto, o principal alvo passa a ser os filmes hollywoodianos e a televisão, em razão de seu papel hegemônico na indústria cultural cada vez mais transnacional (LOPES, 2006).

O cinema, além de consolidar as representações hegemônicas por se tratar de uma grande indústria que precisa agradar o público em geral, acaba tendo, em uma escala menor, mas cada vez mais importante, tanto a função de suscitar a discussão como recolocar as minorias de gênero politicamente. Mesmo que de forma indireta e atuando no campo do simbólico, a representação cinematográfica e televisiva dos indivíduos e mesmo de movimentos LGBTTT são de fundamental importância para estabelecer um local de fala. A trajetória do personagem gay, lésbica ou transsexual no cinema teve suas evoluções e involuções e podemos observar a aplicação de conceitos fechados de sexualidade mesmo no cinema experimental ou independente.

Sem dúvida, o cinema contribuiu par criar o estereótipo tanto da “Bicha Louca” como da mulher bruta e masculinizada, mas não se pode negar a potência que ele teve e tem de colocar assuntos difíceis em pauta e levar a discussão sobre as instabilidades de gênero até um número muito maior de pessoas; assim, mesmo o estereótipo pode ter um efeito positivo. O filme “Marocco” de 1930 é um marco em razão da cena em que Marlene Dietrich aparece em uma performance vestida com roupas masculinas e beija uma moça da platéia. Conhecida como uma das cenas mais eroticamente instigantes do cinema, Marlene desfila elegante e charmosamente em seu smoking e a obviedade do apelo sexual da cena é tão evidente que deixa claro o quanto uma figura ambivalente é capaz de atingir homens e mulheres ao mesmo tempo, dessa forma se reafirma a fantasia do homem pela mulher bissexual. Já homens usando roupas femininas no cinema não tem o mesmo apelo e até hoje são vistos muito mais como figuras cômicas ou perturbadas do que como personagens atrativos sexualmente. Podemos citar “Tudo sobre Minha Mãe” de Pedro Almodóvar, do ano de 1998, como uma das poucas exceções onde um personagem transgênero do masculino para o feminino tem um papel sedutor em relação a homens e mulheres.

A construção de personagens de caráter LGBTTT tem sofrido uma grande mudança nos últimos 30 anos. O travestismo, nem sempre ligado à sexualidade do personagem e sim a uma contingência do roteiro, é um exemplo de como qualquer transgressão à normatividade heterossexual pode ser transformada em uma poderosa ferramenta ideológica. Podemos lembrar claramente de filmes das décadas de 1980 e 1990 como Tootsie, Yentl, Uma babá quase perfeita e Traídos pelo desejo, onde o travestismo e a transgressão de gênero eram ligados à mentira e à perturbação mental, onde o personagem no final era descoberto e uma grande catástrofe se abatia sobre ele. Podemos remeter esse tipo de construção ao Quanto mais quente melhor, de 1959, em que dois músicos se travestem para trabalhar em uma banda feminina; já um exemplo de como Hollywood lidava de forma problemática com o tema pode ser visto em Cruising de 1980, onde Al Pacino, ícone de masculinidade, vive um policial que precisa infiltrar-se na comunidade sabomasoquista gay de Nova York para desvendar uma série de assassinatos. O filme teve grande repercussão na época e criou polêmica; porém não desconstrói, em nenhum momento, a imagem de anormalidade com relação aos personagens homossexuais da trama. Uma nova versão do filme, um fake documentário, foi

escrito e dirigido por James Franco em 2013, com a intensão de fazer a humanização dos personagens e abordar de forma mais atual a temática tanto gay com BDSM33. A comédia, a desonestidade e a loucura são características constantes e uma maior densidade dos personagens bem como a real representação da identidade sexualmente ambivalente só se mostrará claramente a partir dos anos 90 com o New Queer Cinema, nascido no cenário do cinema independente norte-americano, como nos fala Margarete Almeida Nepomuceno em seu seminário “O colorido Cinema Queer: onde o desejo subverte as imagens”:

Esta geração de cineastas se destacou pela construção de filmes com abordagens menos sensacionalista sobre a produção da diferença dos corpos, gêneros, sexualidades e, mais interessada na complexificação das subjetividades ambíguas e transgressivas. O New Queer Cinema passou então a ser esta janela que dá visibilidade a encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividades que são agenciadas tanto pelos modelos fixos de sexualidade, com seus processos de normatização e vigilância, como também pelo desejo do devir, das escolhas pessoais do próprio corpo e da autorreferência de gênero (NEPOMUCENO, 2008, p. 2).

A partir do movimento New Queer Cinema e da estética Camp (a teoria Queer e o movimento Camp abordaremos no tópico 4.5) não só novos níveis de subjetividade foram atingidos, mas abriu-se caminho também para que a figura do gay afetado, da drag queen, do drag king, do travesti, transexual e transgênero pudessem assumir visualmente características de androginia e travestismo e ainda assim falar das identidades fluidas de gênero sem traços de comédia nem de patologização ou de transtorno mental. É um processo longo o de desestigmatização da figura LGBTTT, mas que já foi iniciado em filmes como Morrer como homem, Café da manhã em Plutão, XXY, Hedwig, Meninos não choram, que tratam de temas como o do travestismo e da interssexualidade como um drama pessoal, como tantos outros dramas que qualquer pessoa poderia enfrentar. Ainda podemos citar outros títulos como Sem Notícias de Deus, Dogma, Constantine que trazem novamente a discussão da androginia e da ambiguidade para o âmbito religioso, e The dreamers, Le garçons et guillaume à la table e os brasileiros Praia do futuro e Tatuagem, que têm sua narrativa muito mais ligada às questões sentimentais e às

33 Sigla para bondage and discipline, dominance and submission, prática sexual voltada para a dor e

relações afetivas entre os personagens do que necessariamente apegadas às questões fisiológicas e mesmo comportamentais relativas à gênero e sexo.

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 136-139)