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O ANDRÓGINO NA LITERATURA

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 139-142)

"Nenhuma criatura humana, desde que o mundo é mundo, foi mais arrebatadora. Sua forma reunia, ao mesmo tempo, a força do homem e a graça da mulher."

Virginia Woolf em Orlando Desde o banquete de Platão, a androginia é enquadrada nos mesmos estereótipos que vimos nas artes visuais: um ideal divino; ou uma patologia; ou uma loucura; ou, simplesmente, tratada como um objeto do desejo sexual ou mesmo do pornográfico. Nesse breve tópico intentaremos citar algumas das obras literárias mais marcantes que contribuíram para a construção do imaginário quando ao andrógino.

Um romance que trata da temática da androginia como algo não só extraordinário, mas divino, é Séraphîta, de Honoré de Balzac. Publicado pela primeira vez em 1834, fala da personagem Séraphîtus ou Séraphîta e a história gira em torno de como ele/ela lida com duas grandes ambiguidades: a de gênero e a que existe entre o corpo e o espírito. Séraphîta é filho(a) de um casal adepto da doutrina de Emanuel Swedenborg34 e é um ser perfeito, com força e ternura inigualáveis e

com uma beleza que encanta e seduz. Séraphîtus ou Séraphîta é amado por Minna (que o vê como homem) e por Wilfrid (que a vê como uma mulher). Ele(a) é, na verdade, um ser que não só oscila entre o feminino e o masculino, mas também entre o espiritual e o carnal. Nem pode se tornar um ser comum para amar uma das pessoas que o(a) ama, nem pode elevar esses amores à condição de anjos.

Séraphîtus e Séraphîta não passam de um único e mesmo ser, que reúne em sua pessoa ambígua toda a força de espírito de um homem e toda a ternura de uma mulher. É um espírito dissimulado sob uma forma humana que é destinado a levar aqueles que a frequentam à purificação e à elevação da alma. (…) (o autor) insiste sobre a identidade masculina do personagem, que é ameaçada quando fala de sua graça feminina quando inclina a cabeça ou da suavidade de sua voz. O leitor participa ativamente da criação literária pois reconstrói o percurso feito pelo autor, cujo desejo, sem sombra de dúvida, era provocar a construção de imagens mentais que favorecessem a confusão de interpretação (FAURY, 1995).

Balzac vai revelando o gênero do personagem aos poucos nas vinte primeiras páginas do romance. Utilizando-se tanto de termos e artigos ambíguos como usando o recurso das vestes e dos gestos, deixando claro que a personagem usa roupas que poderiam ser de uma mulher ou de um homem, e que seus gestos e sua voz são tão leves como os femininos; levando o leitor a formular e reformular a/o personagem e construir a cada página uma imagem de gênero diferente. Brilhantemente formulada, a personagem é regida por seu lado feminino (o próprio título do romance denuncia isso), signo sob o qual é visto por quase todos os personagens do romance, menos por Minna, para a qual se manifesta todo seu lado masculino, ressaltando o conceito, que seria visto mais tarde por Judith Butler, como performance de gênero ou o gênero como performance.

Um dos grandes motivadores do tema dessa pesquisa foi a leitura do romance Orlando: uma biografia, de Virgínia Woolf. Publicado em 1928, narra a vida do rapaz Orlando que, por volta da década de 1930 anos, em uma estada na Turquia, passa por um longo sono e acorda tendo tornado-se uma mulher. Orlando não passa de uma mero rapaz comum a uma moça comum, ele, desde sempre e até o final, teve, em seu corpo e em sua vida, uma forma muito particular de viver o masculino e o feminino. Sobre o primeiro amor de Orlando, Virgínia Woolf faz a seguinte descrição:

Tinha acabado, justamente, uma quadrilha ou um minueto, pelas seis da tarde do dia 7 de janeiro, quando viu, saindo da Embaixada Moscovita uma figura de homem ou de mulher - porque a túnica solta e as calças à moda russa serviam para disfarçar o sexo - que o encheu da maior curiosidade. A pessoa, qualquer que fosse o nome ou o sexo, era de estatura mediana, de forma esbelta, e estava completamente vestida de veludo cor de ostra, orlado de uma estranha pele esverdeada. Mas esses pormenores eram obscurecidos pela extraordinária sedução que emanava da própria pessoa. (...) Quando o rapaz - porque, ai de mim! tinha de ser um rapaz - mulher nenhuma poderia patinar com tanta velocidade e vigor - passou por ele quase na ponta dos pés, Orlando esteve para arrancar os cabelos, vendo que a pessoa era do seu sexo, e que os abraços eram impossíveis. Mas o patinador aproximou-se. Pernas, mãos, porte eram de rapaz, mas nenhum rapaz teve jamais uma boca assim; nenhum rapaz teve aqueles peitos, nenhum rapaz teve, nunca, olhos daqueles, que pareciam pescados do fundo do mar (WOOLF, 2003).

Depois da transformação, a autora trata a feminilidade recém adquirida pela personagem, seus modos e a maneira como ela lida com as diferentes roupas que deve usar, como uma performance de gênero, mais uma vez, antecipando tais

estudos. Passagens referentes ao vestuário foram particularmente instigadoras do recorte dado a essa pesquisa, levando-a até a fotografia de moda:

Tornara-se um pouco mais modesta, como as mulheres são, quanto ao seu espírito, e um pouco mais vaidosa, como as mulheres são, quanto à sua pessoa. Certas suscetibilidades aumentavam, outras diminuíam. Alguns filósofos diriam que a mudança de vestuário tinha muito a ver com isso. Embora parecendo simples frivolidade, as roupas, dizem eles, desempenham mais importante função que a de nos aquecerem, simplesmente. Elas mudam a nossa opinião a respeito do mundo, e a opinião do mundo a nosso respeito. (...) Assim, bem se pode sustentar a tese de que são as roupas que nos usam, e não nós que usamos as roupas; (...) O homem encara o mundo de frente como se ele fosse feito para o seu uso e de acordo com seu gosto. A mulher lança-lhe um olhar de esguelha, cheio de sutileza, e até desconfiança. Se usassem as mesmas roupas, é possível que sua maneira de olhar tivesse vindo a ser a mesma (WOOLF, 2003, p. 123-4).

Vemos aqui uma clara referência à forma de vestir como influenciadora de comportamento e visão de mundo e, principalmente, como parte construtora da performance de cada gênero. Orlando tem uma vida cheia de amores e de sedução. Não passa nem perto de ser um ser desinteressante ou neutro, causando sempre uma impressão perturbadora por ande passa.

Além da constante luta como escritor para concluir um poema infindável, a busca de Orlando no livro todo é por amor. Seu gênero transmutado somente serve para mostrar que, sendo homem ou sendo mulher, o amor é uma busca universal e que amar homens ou amar mulheres seria somente os dois lados da mesma moeda. Ao final do livro, Orlando finalmente se casa e reconhece que seu marido é, também, uma mulher, assim como ele reconhece em Orlando a união perfeita e harmônica entre o masculino e o feminino. O final do romance Orlando aponta para um casamento em um mundo andrógino, onde as pessoas se reconheçam como seres completos e complementares, em todos os sentidos, não como seres somente masculinos ou somente femininos (HARGREAVES, 2005).

Por fim, queremos tecer comentários acerca do vencedor do prêmio Pulitzer de 2003: o romance Middlesex, de Jeffrey Eugenides. Apontado como um épico americano, narra a história do(a) hermafrodita Calliope, mas não semente. Também de sua família, desde sua origem grega, passando pela imigração para os Estados Unidos, e ainda a trajetória do gene recessivo que, mais adiante na história, a transformará em um rapaz chamado Cal. Eugenides é primoroso em colocar a história conturbada e recheada de conflitos íntimos da personagem interssex sobre

um pano de fundo histórico extremamente bem construído e fazer de Middlesex um romance que encaixa um suposto personagem de exceção em um mundo de pleno movimento, dinâmico e mutante, que parece perfeitamente adaptado a ele.

Podemos apontar nas três obras comentadas diferentes andróginos que contribuirão para a interpretação das imagens no capítulo seguinte: o andrógino espiritual (aquele que beira o “grau zero” em termos de designação de gênero), cuja mistura de características é tão harmônica que tangencia a neutralidade; o andrógino sedutor, aquele cuja mistura das características, ainda que não explicitamente, provoca o desejo irrestrito; por fim o andrógino-hermafrodita, com a narrativa centrada no corpo e nas mudanças e características fisiológicas e biológicas da natureza interssex como definidor das relações da personagem com o mundo.

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 139-142)