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O ANDRÓGINO NOS MOVIMENTOS SOCIAIS E NAS TEORIAS

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 142-147)

"Eu sou muito gulosa, Eu quero tudo da vida, eu quero ser uma mulher e ser homem.” Simone de Beauvoir

Alguns movimentos sociais e também algumas correntes teóricas foram contundentes em afirmar que gênero não deveria ser algo engessado ou estanque e que o sexo biológico não deveria definir como qualquer ser humano é visto pelo outro, representado politicamente ou ainda condicionado economicamente. Movimentos sociais de minorias, movimento negro, gay e feminista, têm raízes semelhantes (os movimentos operários) e, apesar de no princípio trabalharem suas pautas separadamente, por volta dos anos 1980 eles se aproximam e passam a compor uma grande onda social. O movimento hippie tem uma forte vertente relacionada ao gênero, às transformações de comportamento sexual, e também influências vindas da moda e da música, aspectos importantes para a pesquisa, que trataremos mais demoradamente no tópico seguinte. No presente tópico faremos algumas reflexões acerca de alguns desses movimentos e como foram influentes na construção social de gênero.

O feminismo como movimento e como teoria é, dividido em três ondas: a primeira, iniciada no meio do século XIX, que visava alcançar melhores condições de vida e trabalho para as mulheres da classe operária e maior liberdade individual e

direitos civis para as mulheres de classe mais alta; a segunda (quando surge a discussão sobre a androginia, por volta dos anos 1970), associada aos movimentos do pós Segunda Grande Guerra, impulsionado pela ascensão econômica em alguns países, pelos movimentos estudantis, onde tiveram grande destaque tanto a literatura feminista como os protestos de rua, a pressão política e pelo movimento pela liberação sexual; e a terceira e atual (iniciada nos anos de 1980), cuja denominação de “pós-feminismo” já se considera ultrapassada, se não errônea. A terceira onda é caracterizada tanto pelas preocupações nucleares com as minorias dentro das minorias (mulheres pobres, negras e os transsexuais) como pela inclusão do papel do homem no pensamento e crítica feministas (NOGUEIRA, 2001). O feminismo como movimento político, mas também como teoria, coloca a temática de gênero para falar sobre as interações do grupo social “mulher” com um sistema claramente patriarcal e masculino, mas hoje se vê claramente que o feminismo não versa sobre um grupo social específico e que até mesmo o grupo social “mulher” não pode (nem nunca pôde) ser definido como grupo homogêneo, o que sempre dificultou a compreensão e gerou críticas sobre a formulação feminista.

Atualmente, junto às questões feministas (evidentemente mais desoladoras frente a realidades de mulheres ainda subjugadas sob garras patriarcais mais estreitas e reforçadas pela cultura em partes mais carentes ou tradicionalmente mais fechadas do globo), juntam-se novos anseios, frutos da transfobia ou da violência contra pessoas que não se identificam com nenhuma identidade de gênero bem como a incapacidade de rápida absorção pela sociedade, seja em forma de força de trabalho ou de novas formas de afetividade e relações familiares, das mais diversas identidades de gênero que resistem em apresentar-se à luz do dia, cada vez mais, felizmente, nos tempos atuais.

A categoria de gênero foi promovida pelo feminismo precisamente para

criticar e rejeitar os esforços tradicionais de definir a natureza das mulheres através do sexo biológico. Contudo, à sua maneira, o discurso de gênero

tende a reificar os processos sociais fluidos e em transformação, através

dos quais as pessoas se relacionam, comunicam, jogam, trabalham e lutam umas com as outras pelos meios de produção e de interpretação. A

insistência num sujeito para o feminismo obscurece a produção social e

discursiva de identidades (YOUNG, 2004, p. 126).

A grande crítica contemporânea ao movimento feminista é, justamente, a insistência no sujeito “mulher” sendo que ele não resolve questões como a

representação das mulheres menos favorecidas e da comunidade trans, bem como aumenta o abismo entre o sujeito feminino e o sujeito masculino, ou qualquer outra identidade sexual. O sexismo, de um modo geral é estabelecido sobre as diferenças e afastamentos, já o discurso universal é, também, excludente. Portanto, mesmo contemporaneamente, ainda que tenha sido dado à mulher o direito ao trabalho, na maioria dos casos, ela deixa de ser uma trabalhadora doméstico alimentadora de crianças para ser uma escrava do escritório ou do laboratório, sempre relegada à uma posição menor devido às características inerentes ao seu sexo (VALLS, 2008). O feminismo, além de carregar o estigma de ter colocado, definitivamente, homem e mulher um contra o outro, ainda é visto por muitos críticos do backlash35 como um movimento falho e que não cumpriu com os seus objetivos, pois apenas colocou as mulheres à mercê do vil mercado de trabalho sem garantir-lhes nem reconhecimento igual ao do homem, nem as libertando das tarefas tradicionalmente entregues a elas. Isso gera frustração estresse e depressão em mulheres que lutam para serem grandes profissionais e excelentes mães e esposas, ao redor do mundo.

Dessa forma, podemos pontuar o feminismo como movimento social e teoria que, em um primeiro momento, promoveu um lugar de fala para uma minoria de gênero (o grupo social “mulher”), mas que tem evoluído para um movimento que faz uso da temática de gênero para abordar a justiça social, tendo como um grupo mais abrangente as mulheres, mas que aos poucos vem se particularizando e abarcando outros grupos como os transsexuais. A teoria feminista como teoria de gênero, hoje, pode-se dizer que se desenvolve de forma muito mais consciente das diferenças entre o masculino e feminino, e também da diferença entre os diversos femininos, e muito menos excludente e reativa em relação ao masculino, promovendo assim uma particularização e fusão, condizente com a atualidade complexa que vivemos.

Passaremos agora às teorias Queer, surgidas nos anos de 1980, a partir dos estudos feministas, gays e lésbicos e fortemente influenciadas pelo pós- estruturalismo francês e pela psicanálise lacaniana. Segundo Adriano Azevedo Gomes de León, as teorias Queer tem cinco pontos principais (GOMES DE LEÓN, 2010):

35 Movimento reativo contra o feminismo. Surgiu primeiro nos meios de comunicação social,

1) a multiplicidade e fragmentação das identidades: essas são compostas por múltiplos fatores (classe, orientação sexual, gênero, idade, nacionalidade, etnia, etc.) e podem também articular-se de diferentes formas, priorizando mais um ou outro fator;

2) qualquer identidade constituída é, na verdade, excludente, pois silencia outras identidades possíveis. A constituição de uma identidade passa a ser não uma forma de libertação, mas uma maneira de enquadrar-se em um modelo; seja ele o modelo padrão ou um modelo desviante. Ao mesmo tempo, as identidades são vistas como mutantes e arbitrárias;

3) o papel político dessa identidade fluida não é descartado, é, sim, visto como uma nova ferramenta para formulações alternativas em termos políticos e sociais para a coletividade;

4) as teorias Queer consideram que uma teoria de gênero que marca e valoriza a identidade homossexual só está reafirmando a estrutura vigente, baseada em hétero e homossexualidade. Assim como em termos políticos, defende que deve ser estudada uma nova forma de estruturação das identidades de gênero, fora dos padrões baseados no que se conhece até aqui como identidades “normais” e identidades “aberrantes”;

5) as teorias Queer apresentam-se como uma maneira geral de teorizar, tanto sobre os corpos e o desejo, como sobre política, relação social, cultura e comportamento.

Assim, as teorias Queer apresentam uma forma de pensar e constituir a identidade como algo global. O conceito de identidade de gênero dilui-se e conjuga- se com outros conceitos de identidade, formando um mosaico que compõe o sujeito. A identidade do sujeito não é estanque, é parte da dinâmica do mundo e integrada a ele. Assim como buscamos com as formulações que pretendem elucidar os problemas apresentados nessa pesquisa, as teorias Queer vêm agregar ao pensamento e à ideia de que a identidade andrógina (fluida, mutante e fora dos padrões binários de gênero) é uma nova maneira de encarar a realidade de uma forma geral e constituirá uma maneira de viver mais condizente com a atualidade.

Falaremos agora sobre a estética Camp. Segundo Susan Sontag, em seu ensaio “Notas sobre o Camp” do livro Contra a interpretação, “Camp é um certo tipo de esteticismo. É uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético. Essa

maneira, a maneira do Camp, não se refere à beleza, mas ao grau de artifício, de estilização” (SONTAG, 1987, p. 27). Como estética, o camp é despolitizado e descomprometido com o conteúdo. A artificialidade, as texturas e o domínio do sensual, mas não necessariamente do sexual, são domínios do Camp. Ainda em Susan Sontag, encontramos claro apontamento ao andrógino como referência dentro do gosto Camp:

O andrógino é seguramente uma das grandes imagens da sensibilidade Camp. Exemplos: as figuras lânguidas, esguias, sinuosas da pintura e da poesia pré-rafaelita; os corpos delgados, fluidos, assexuados das estampas e dos cartazes Art Nouveau, apresentados em relevo em lâmpadas e cinzeiros; o vazio andrógino que paira na beleza perfeita de Greta Garbo. Nesse caso, o gosto Camp inspira-se numa autenticidade do gosto em grande parte não reconhecida: a forma mais refinada de atração sexual (assim como a forma mais refinada de prazer sexual) consiste em ir contra a corrente do próprio sexo. O que há de mais belo nos homens viris é algo feminino; o que há de mais belo nas mulheres femininas é algo masculino... Aliado ao gosto Camp pelo andrógino existe algo que parece bastante diferente mas não é: uma tendência ao exagero das características sexuais e aos maneirismos da personalidade. Por razões óbvias, os melhores exemplos que podemos citar são as estrelas de cinema. A melosa e resplandecente feminilidade de Jayne Mansfield, Gina Lollobrigida, Jane Russel, Virgínia Mayo; a exagerada masculinidade de Steve Reeves, Victor Mature. As grandes estilistas do temperamento e do maneirismo, como Bette Davis, Barbara Stanwyck, Tallulah Bankhead, Edwige Feuillière (SONTAG, 1987, p. 29).

O Camp como estilo é dado ao exagero e à estilização. As drag queens e drag kings são exemplos de como o Camp aplica-se ao gênero. Sobrepujando a questão do conteúdo, o Camp está ligado à experiência visual e como ela é vivida. Além disso, a própria “seriedade” camp defende o prazer e o divertimento. Os homossexuais são ligados ao Camp através de uma estética afeminada ou masculinizada, mas o Camp não é uma estética exclusiva dos homossexuais. Não busca, como objetivo principal, criar uma confusão ou uma perturbação, isso seria uma preocupação excessiva com o outro, que não é própria do Camp, assim como o julgamento:

O gosto Camp é uma espécie de amor, amor pela natureza humana. Ele se deleita com os pequenos triunfos e as embaraçosas intensidades do "personagem", não os julga... O gosto Camp se identifica com aquilo que dá prazer. As pessoas que compartilham essa sensibilidade não riem da coisa que rotulam "um camp", elas a apreciam. Camp é um sentimento terno (SONTAG, 1987, p. 37).

A grande característica Camp, de assumir o exagero e a afetação sem culpas, assumir o que é tido como inatural como natural à própria pessoa (LOPES, 2002), àquele ser humano específico. O andrógino aqui acaba sendo o andrógino que assume claramente as características do sexo oposto ao seu sexo biológico, ressaltando-as e tornando-as naturais em si.

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 142-147)