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A fenomenologia e o método erótico

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 36-39)

“O erotismo é, a meus olhos, o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco.” Georges Bataille

Na Fenomenologia, principalmente na Fenomenologia da Percepção do autor Maurice Merleau-Ponty, encontraremos traços do que chamamos de “fenômeno” e, por conseguinte, “fenômeno comunicacional”. Os fenômenos são, em suma, o que constitui a experiência. O que vivenciamos, retiradas as camadas culturais e judicativas, é o fenômeno em si. O fenômeno comunicacional seria algo que nos une, que une as nossas vivências com “sinais de cumplicidade intuitiva” (MAFFESOLI, 2008, p. 132) e que faz com que nossas experiências comuniquem-se entre si independentemente de nosso julgamento. O fenômeno comunicacional das imagens andróginas é um dos fenômenos que moldam o que experimentamos como gênero e, por consequência, como indefinição de gênero em cada tempo histórico. Mas, dentro de cada contexto e transversalmente entre os vários contextos, mantendo tais sinais de cumplicidade intuitiva que são aquilo que “dá a liga” ao fenômeno.

A despeito da racionalidade ou do juízo de valor, podemos, refletindo através da fenomenologia, contar com a beleza e com o desejo como definidores na maneira como fruímos as imagens andróginas. Por um lado, Umberto Eco, na História da Beleza, fala da separação entre beleza e desejo:

Por isso que o sentido de beleza é diverso do sentido de desejo, podemos considerar alguns seres humanos belíssimos, mesmo que não os desejemos sexualmente ou saibamos que nunca poderão ser nossos. Se, ao contrário, se deseja um ser humano (que, além do mais, poderia ser até

feio), e não se pode ter com ele as relações almejadas, sofre-se (ECO, 2004, p. 10).

Mas lembremos que Eco separa a beleza e o desejo dentro dos gêneros, o que fica claro na lista de quadros comparativos que abrem essa sua obra (Vênus, Adônis, Maria, Jesus, a Rainha e o Rei) abandonando a dicotomia sexual apenas em um pequeno quadro, o último, intitulado de “Proporções”, onde o corpo é tratado de uma forma matemática, sem a diferenciação de gênero. Desejo, beleza e gênero têm, em Eco, uma relação interdependente. Mesmo que o autor separe desejo de beleza, o gênero estará sempre ligado a um deles ou aos dois.

Por outro lado, e no entendimento da autora desta pesquisa, no momento em que partimos de um pressuposto de que a construção de gênero faz parte das camadas culturais e judicativas que desejamos afastar para olhar diretamente para o fenômeno, podemos empreender, a partir daí e com o auxílio de pressupostos teóricos, de que a beleza é, ela própria, dotada de desejo, algo belo desperta o desejo simplesmente por ser belo. A experiência perceptual, segundo Sartre, é sempre pré-judicativa. Nossa percepção das coisas não julga; é a racionalização dessa percepção que estabelece julgamento. “A formação de juízo é secundária, segundo Sartre: o juízo é construído sobre a experiência perceptual, ao invés de ser constitutivo dela” (CERBONE, 2012). Pois consideremos que o desejo possa ser algo tão instintivo e primário em nós que, em alguns casos, aconteça antes do julgamento, antes que possamos, por exemplo, estabelecer o gênero do personagem de uma fotografia. Assim, acontece a percepção e o desejo, quase que concomitantemente, para que depois, só então, possamos estabelecer um juízo de gênero. Como percepção e julgamento não são equivalentes, nossa experiência diante de uma imagem andrógina seria a que acontece antes do julgamento ou da reflexão sobre o gênero do indivíduo retratado na imagem e sobre as nossas próprias preferências ou construções sexuais e/ou afetivas. Ou melhor, a imagem andrógina, muitas vezes, “embaça” o nosso juízo de gênero e nos deixa aturdidos diante do próprio desejo. E seria esse processo, de confusão e, por que não dizer, de medo, que faria das imagens andróginas algo fascinante e sedutor aos nossos olhos. Algo com um apelo tão grande em termos, até mesmo, mercadológicos, que apenas começamos a descobrir e explorar seu potencial.

Ainda dentro do pensamento fenomenológico, passaremos às reflexões do autor Michel Maffesoli acerca do método erótico. Maffesoli fala da busca da própria

coisa e de suas materialidades e de como esse elo, perdido na modernidade e resgatado a partir da conscientização de uma maior complexidade atual, entre o mundo e pensamento pode nos dar uma saída para a desconexão entre a ciência e o homem. A própria realidade fluida e virtual da informação torna a questão da presença e da materialidade do corpo ainda mais complexa, pois poderemos estar presentes (em voz, imagem, texto) mesmo estando muito distantes, ou distantes (mergulhado nas redes sociais, por exemplo) mesmo estando logo ao lado. A presença e a corporalidade hoje são relativas e tendem cada vez mais à ambiguidade. A complexidade dá lastro para um pensamento que está pronto para absorver as ambiguidades do contemporâneo, sem ter que, necessariamente, desfazer-se de nenhuma das alternativas existentes, o que é condizente com a base teórica que foi abordada na presente pesquisa.

Dentro do erotizar da ciência, a imagem tem papel fundamental em fazer a ligação entre o homem, e sua dimensão particular, e o mundo, dentro de seu sentido mais amplo:

É por intermédio das imagens que o microcosmo humano está correspondendo ao macrocosmo natural. Pode-se crer que assim será possível realizar uma nova harmonia que encontra seu fundamento na vida e, para além das diversas fragmentações, na potência do todo (MAFFESOLI, 2008, p. 113).

O método erótico de Maffesoli defende que o real está sempre ali e que a racionalização e a análise não o fazem surgir do nada. Para alcançar o real, basta fazer sobressair suas qualidades específicas. A análise não passa de contemplação, enquanto uma postura mais hermenêutica diante da realidade penetra e compromete-se de forma amorosa com o mundo que nos cerca. O Método Erótico busca uma dinâmica harmônica entre opostos e um pensar longe das dicotomias da modernidade:

Eterno sonho de um paraíso profano ou religioso que, sob formas diversas sempre marcou a história da humanidade. Para dizer o mesmo em outras palavras, encontra-se aí uma velha oposição entre a explicação e a compreensão, ou entre a analítica e a hermenêutica da existência (MAFFESOLI, 2008, p. 132).

A fenomenologia, e particularmente o método erótico, são especialmente harmônicos com o desenvolvimento do pensamento e da imagem andrógina. Temos

a possibilidade de pensar a androginia como um fenômeno que não só une os opostos e os reconfigura de forma harmônica, como também nos chama a atenção para a complexidade dessa presença, dessa forte presença andrógina que pode não ser corporal, mas que hoje já se pode dizer que é onipresente.

2.1.4 Imagem e tempo no método das imagens sobreviventes de Aby Warburg

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 36-39)