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O ANDRÓGINO NA MODA (E NA MÚSICA)

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 147-153)

“… entrei no quarto. Em uma cama simples de ferro havia um menino dormindo. Ele era magro e pálido, com massas de cachos castanhos, deitado sem camisa com um colar de miçangas no pescoço. Fiquei ali parada, ele abriu os olhos e sorriu. (…) E assim minha última imagem foi a primeira. Um jovem adormecido sob um manto de luz, que abriu os olhos com um sorriso de reconhecimento para alguém que nunca fora uma estranha pra ele.”

Patti Smith, em Só garotos Em Imagem e moda, Roland Barthes, diz que as imagens são como os textos, sistemas significantes de leitura não apenas técnica, mas emotiva. Ele fala ainda que a fotografia é um texto, uma meditação complexa, extremamente complexa, sobre o sentido; e que o vestuário é objeto tanto de estudos históricos como sociológicos, por excelência (BARTHES, 2005). Reunir imagem fotográfica e moda em um estudo com o objetivo de elucidar e aprofundar-se em questões relativas ao gênero e à complexidade das identidades de gênero é, em suma, uma forma que se considerou apropriada para captar um determinado “espírito do tempo” de cada época (com o objetivo de chegar até a nossa), este, ligado aos comportamentos do masculino e do feminino e seus meandros. Assim como a Moda, a música também funciona como a voz do seu tempo, portanto moda e música fazem uma conexão direta com o momento em que são pensadas. Movimentos musicais são fortes fontes de inspiração para a moda e, mesmo fora das passarelas e do espaço de criação dos designers de moda, são determinantes no modo de vestir e no comportamento principalmente dos jovens. Nesse tópico faremos a conexão entre a moda, suas imagens e também com algumas tendências culturais e musicais que têm em suas manifestações os traços da androginia e foram propagadoras de uma forma alternativa de ver o gênero.

Como dito na introdução, a moda foi escolhida como habitat do andrógino no nosso tempo por reunir vários cenários além da própria moda e do vestuário em si. Na moda, observamos tendências ligadas à arte, à publicidade, ao comportamento

individual e coletivo e ao mercado. A imagem de moda pode ser interpretada em vários níveis e pode trazer à tona informações tão complexas e rearticuláveis quanto a realidade contemporânea que é nosso objetivo penetrar. Ainda segundo Barthes, qualquer que seja a cobertura utilizada para os nossos corpos, esta insere-se em um sistema organizado, normativo e consagrado pela sociedade (BARTHES, 2005), portanto as manifestações que, aparentemente, são conflitantes com uma norma de gênero em determinado momento são particularmente interessantes para o nosso estudo. A moda, ao mesmo tempo, sedimenta e reafirma o que é considerado padrão e resiste de forma bastante eficaz a esse mesmo padrão, essas duas realidades geralmente concorrendo e acontecendo entre a moda exclusiva dos grandes criadores e a moda aplicada nas ruas. Portanto é ambígua em si mesma e contraditória por definição.

Podemos aqui estabelecer a diferença entre “traje” e “indumentária”; o traje é individual, é a relação do sujeito com a norma social que se estabelece em relação ao vestir-se; é inteiramente pessoal. Já a indumentária é uma manifestação coletiva, uma tendência. Pode-se dizer que o traje é a forma como o indivíduo utiliza (ou utiliza mal) a indumentária estabelecida por seu grupo social. Moda foi uma demarcação social e o status estabelecido pelo vestuário era uma reação aos princípios de igualdade pós-Revolução Francesa. Na moda, apesar das peças do traje serem as mesmas para todas as classes sociais, os detalhes, o tipo de tecido usado e os acessórios serviam para distinguir as classes sociais mais abastadas das demais, portanto a moda, ainda que veladamente, instituiu a diferença entre ricos e pobres.

A moda é sempre da alçada da indumentária e pode ser produzida por dois processos diferentes: ou a propagação de determinado traje (ou tendência) criado de forma artificial (como em alta costura, por exemplo) ou a propagação orgânica de determinado traje fabricado em escala coletiva (grandes lojas de departamento). Segundo Barthes, a primeira tendência está mais presente na moda feminina, enquanto a segunda, na moda masculina. Mas observa-se, também, uma dissolução dessa divisão nos últimos trinta anos e um crescimento vertiginoso na alta costura masculina, no mercado editorial voltado para a moda masculina e também no crescimento do mercado das marcas que fazem roupas andróginas e que podem ser vestidas por qualquer pessoa, independentemente do sexo. Tendências são, finalmente, manifestadas no traje do indivíduo, reafirmando ou deslocando o que

está estabelecido. De qualquer forma, a moda apresenta-se como fato social e seu uso pessoal como manifestação da individualidade, sendo de natureza, ela também, ambígua e de forte conteúdo simbólico; características fortemente ligadas ao nosso tema de estudo. Segundo Gilles Lipovetsky, em seu livro O império do efêmero:

A ideologia individualista e a era sublime da moda são assim inseparáveis; culto da expansão individual, do bem-estar, dos gozos materiais, desejo de liberdade, vontade de enfraquecer a autoridade e as coações morais: as normas “holistas” e religiosas, incompatíveis com a dignidade da moda, foram minadas não só pela ideologia da liberdade e da igualdade, mas também pela do prazer, igualmente característica da era individualista (LIPOVETSKY, 1989, p. 102).

Dessa forma, a moda é um campo de estudo de esfera total, que vai desde o individual até o coletivo, passando pelo cultural, moral e econômico. Tanto a moda como a publicidade, intimamente ligada aos editoriais de moda, são condicionadas a tendências do mercado e influenciadas e influenciadoras de fatores econômicos. Grandes estilistas e marcas famosas utilizam-se da publicidade e dos editoriais de moda para divulgar e validar suas marcar.

É importante situar a moda, e, principalmente a fotografia de moda, no plano do significado. Um plano onde a imagem fala muito mais e existe muito além da roupa. A fotografia de moda carrega conceito, ideia e fantasia. Como a arte, a fotografia de moda carrega sentido. Ela é responsável pelo que entendemos por “moda”, interfere no mundo, no entendimento, comportamento e decisões:

As fantasias geradas pelas revistas de moda não se confinam à página. Elas são, na verdade, representadas pelas leitoras com seus próprios corpos. Copiada de revistas, filmes ou vídeos, e usada na vida cotidiana, a moda suprime o limite entre o ‘real’ e o ‘fantástico’, entre a fuga privativa da fantasia e o intercâmbio com o público. O prazer de olhar para as imagens fotográficas forma a parte de um continuum, juntamente com o prazer de mascará-lo. Esse continuum vira do avesso a oposição comumente aceita entre fantasia como sendo interna, irreal, privada, e a realidade como sendo externa (BENSTOCK; TERRIS, 2002, p. 75).

Dito isso, podemos começar falando de como a moda trata dos gêneros. A separação entre indumentária feminina e masculina se deu por volta de 1350:

A moda no sentido estrito quase não aparece antes da metade do século XIV, data que se impõe, em primeiro lugar, essencialmente em razão do aparecimento de um tipo de vestuário radicalmente novo, nitidamente diferenciado segundo os sexos: curto e ajustado para o homem, longo e

justo para a mulher. Revolução do vestuário que lançou as bases do trajar moderno (LIPOVETSKY, 1989, p. 31).

Assim, a diferenciação dos gêneros através do vestuário é, sem duvida, um instrumento de sedução e de dinâmica entre os sexos. Ressaltar e encobrir partes diferentes nos corpos masculinos e nos femininos é, sem dúvida, instigador de reações no outro, e gêneros opostos e nitidamente separados vão reagir de formas distintas a estímulos visuais distintos. Ainda em termos de gênero, uma feminilidade exacerbada da moda feminina e a quase que total inércia do gênero masculino em relação à moda no século XIX (isso vendo o cenário da moda de uma forma geral, porque existe exceção, como veremos a seguir) mostra-se como uma firme reação a movimentos sociais de gênero, como o feminismo já citado anteriormente (GURGEL, 2013).

O escritor e poeta Charles Baudelaire tratará das questões estéticas e filosóficas do século XIX, bem como se ocupará bastante da moda de seu tempo. O “Dândi”, como personagem descrito e exaltado por Baudelaire, é o que poderíamos chamar de um estilo de exceção, que tem certas características (tanto de moda como de gênero) atribuídas à mulher do século XIX, como a frivolidade, a preocupação excessiva com a estética, a insensibilidade e o tédio, com “um amor desmesurado pela indumentária e pela elegância física. Para um perfeito dândi, essas coisas são apenas um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito” (BAUDELAIRE, 1996, p. 49). O dândi é visto como uma nova aristrocacia, que surge na idade moderna como um símbolo de transição, e decadência, no melancólico do século XIX. Já a mulher, para Baudelaire, é em suma a perfeita fonte de prazer e deleite; um belo animal de quem derivam os prazeres mais excitantes e as dores mais fecundantes. E quanto ao traje, ao adorno e à moda, Baudelaire dizia que são partes integrantes da mulher e essa não existe sem tais atributos. A mulher é vista como uma divindade e um objeto, de admiração e culto, mas um objeto (BAUDELAIRE, 1996). Baudelaire também mantinha uma fascinação pelas lésbicas, dedicando-lhes poemas. Alguns autores fazem a ligação entre as lésbicas e a defesa do dandismo por Baudelaire. Existe a referência ao andrógino primordial, ao misticismo gnóstico e à superação dos opostos em Baudelaire, sempre fazendo a ligação entre personagens históricos e mitológicos com as figuras de seu tempo. Um exemplo é a personagem de Gustave Flaubert, Madame Bovary, que demonstra a ligação de Baudelaire tanto com o estilo e características de seu tempo como com a

busca de referências do passado (WILLER, 2008) e denota uma pressão pela superação dos limites de gênero impostos pela época.

Já no século XX, a moda assume seu papel ambíguo e inquiridor, revelando tanto o lado acomodado da identidade feminina como rompendo com tais parâmetros, com exemplos de criadores que foram totalmente contra a corrente. Dois criadores podem ser citados como precursores da discussão de gênero na moda: Coco Chanel e Yves Saint Laurent.

À Coco Chanel é atribuído o mérito de criar o estilo da mulher do século XX. Ela é a responsável por criar uma moda para as mulheres baseada nos valores da vida masculina do século XX: o egocentrismo e a liberdade no amor (MAYER apud GURGEL, 2013). Chanel foi a primeira a fazer uso do jersey no vestuário feminino. Apesar de existirem condicionamentos econômicos no entre-guerras que condicionaram tal escolha, a opção pelo tecido cria uma silhueta mais despojada nas roupas femininas e liberta a mulher do excesso de adereços e da tradicional silhueta acinturada que, segundo a estilista, impediam as mulheres de andar, sorrir e comer sem passar mal. Os clássicos Chanel como conjuntos em jersey, os pijamas, os vestidos pretos e as jaquetas de tweed com cachecol têm uma elegância inspirada na confusão entre o masculino e o feminino. Chanel era uma minimalista à frente de seu tempo (GAUTIER, 2011).

Já Yves Saint Laurent é marca de elegância e modernidade. Dentre suas famosas criações está, além do Vestido Mondrian, o “Le Smoking” também para as mulheres. Criado em 1966, chegou a ser proibido em restaurantes e hotéis. Era composto por calça e casaco risca de giz e uma blusa de seda cinzenta, peças características do vestuário masculino até então (GURGEL, 2013). Mas o terno feminino não era uma mera transposição de indumentária do masculino para o feminino. Saint Laurent preocupou-se em não masculinizar a mulher, fazendo do tradicional traje sisudo uma afirmação de feminilidade, dando o corte exato que ressaltaria e libertaria o corpo feminino. Outra criação famosa de Saint Laurent foi o tailleur com calça, em 1969.

Nas décadas de 1960 e 1970 os movimentos sociais, a moda, a música e as artes tiveram papel importante na mudança de um antigo status de sociedade, onde imperava a autoridade da família, do Estado e da religião sobre os jovens e minorias, para uma nova onda que reivindicava não só liberdade, mas igualdade e paz. A política, as classes sociais, a família e o gênero receberam o impacto de uma nova

forma de enxergar as relações humanas. Tais rachaduras na ordem social reverberam na moda e na música, aspectos relevantes para o presente estudo.

O movimento Hippie, que teve uma maior expressão nos Estados Unidos nos anos de 1960 chegando a outros lugares com mais força na década de 1970, pode ser apontado como influenciador de uma moda muito mais compartilhada entre o masculino e o feminino. O amor livre e a fluidez sexual ultrapassava o comportamento e estampava-se nos corpos que andavam pelas ruas. A tendência “androgynous hippie” aparece nos anos de 1960, mas se estende por toda a década de 1970. As roupas eram usadas irrestritamente por homens e mulheres: o jeans unissex, calças boca de sino, os sapatos plataforma, o uso dos cabelos longos e dos tecidos estampados e flores além das camisas apertadas e transparentes e dos acessórios, também compartilhados. Inspirações orientais existiam na indumentária e na música. Janis Joplin, Jimi Hendrix, Beatles, Rolling Stones são ícones da cultura hippie e no Brasil podemos apontar Secos e Molhados, Raul Seixas, Mutantes, Zé Ramalho e o Movimento Tropicalista como parte desse movimento que transformou estética, música e comportamento aproximando os gêneros e exigindo paz e amor.

Outro movimento musical que inspirou profundamente a moda e o comportamento nessa mesma época foi o Glam Rock. O Glam Rock é um estilo que surgiu na Inglaterra no final dos anos de 1960 e que ganhou força de fenômeno na década de 1970, marcado principalmente pela estética andrógina dos artistas Glam, com suas maquiagens exageradas e roupas brilhantes, com uma ambiguidade sexual deliberada.

Dois artistas chamarão atenção como referência para o nosso trabalho: Mick Jagger (vocalista dos The Rolling Stones) e David Bowie. Mesmo estando inseridos em ramificações diferentes do rock, os dois artistas ingleses usam a ambiguidade de gênero como marca registrada e influenciam homens e mulheres em seus comportamentos e desejos. Mick Jagger é conhecido por sua sexualidade agressiva e pela paganização do rock, com influências das religiões africanas nas canções. Já David Bowie é citado como o grande propagador e defensor do Glam Rock e seus muitos personagens e máscaras atravessaram os tempos. A carreira de Bowie ainda tem os traços da androginia muito bem marcados, basta assistir seu clipe The Stars (Are Out Tonight), de 2013, onde ele e Tilda Swinton dividem a cena como gêmeos andróginos. Enquanto Jagger é, sem dúvida uma figura andrógina sexual e

sedutora, Bowie passa pela fase do alienígena andrógino Ziggy Stardust, que procura sexo com humanos de ambos os gêneros, mas mesmo depois continua a brincar com o gênero e a sexualidade sem, no entanto, ser provocativo ou agressivo, beirando a estética assexuada, muitas vezes.

Portanto podemos observar o quanto a moda pode e vai ser influenciada por outros fatores e não será fruto somente da criação artificial de tendências pelos designers. A moda alimenta-se das ruas e dos meios de comunicação e também os alimenta. É um mecanismo dinâmico e cada vez mais mutante. As tendências de unificação do vestuário que foram citadas aqui observam-se hoje com força em marcas como a Loewe, que fabrica também roupas que vestem homens e mulheres, e que estão crescendo em número e em visibilidade no mercado.

Figura 33 - LookBook da Coleção Primavera da Marca Loewe, Paris. Steven Meisel, 2014.

Fonte: Disponível em <http://thewildmagazine.com/blog/wild-looks-loewe-menswear-spring- 15/#gallery>.

No documento O ANDRÓGINO NA FOTOGRAFIA DE MODA (páginas 147-153)