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O mal uso da arbitrariedade sobre as escolhas alimentares

1.4 Da escolha do homem sobre sua alimentação

1.4.1 O mal uso da arbitrariedade sobre as escolhas alimentares

Poder influenciar no curso dos programas biológicos, por outro lado, trouxe ao homem prejuízos; ele aprendeu não a se libertar, mas a ludibriar certos programas inatos que lhe protegiam como indivíduo e espécie. É como se o homem ainda estivesse aprendendo a usar sua consciência e poder de escolha sobre si. Ora ele vence os instintos, ora é vencido por eles. O mecanismo de recompensa-custo ainda é muito imperativo.

Os homens das grandes culturas do passado conseguiram evitar até demais as situações capazes de acarretar sofrimento e atingiram um estado de enfraquecimento perigoso. [...] há séculos os homens descobriram que graças a uma engenhosa combinação de estímulos, é possível aumentar o efeito do prazer e através de sua constante modificação, evitar que esse prazer seja desgastado pelo hábito. [...] Dominando progressivamente seu meio o homem por força das circunstâncias, deslocou o equilíbrio prazer-desagrado no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de toda situação dolorosa, enquanto que sua capacidade de prazer foi se embotando.100

O mecanismo que servia como um “barômetro” para a aprendizagem foi desvirtuado; a dor, eficiente sinal diagnóstico de “algo errado” passou a ser vista como anormal, devendo ser eliminada tão rápido quanto possível; da mesma maneira o prazer deixa de ser também um sinal positivo para tornar-se um fim em si mesmo.

Passamos da simples regulação, voltada para a sobrevivência do organismo, a uma regulação progressivamente mais deliberada, baseada em uma mente dotada de

38 identidade e pessoalidade e empenhada ativamente não apenas na mera sobrevivência, mas também na busca de certas faixas de bem estar. 101

Se o homem já era obrigado a certas “negociações” com o ambiente tentando reduzir custos e otimizar ganhos, a subversão do programa recompensa-castigo fez com que o homem acentuasse ainda mais os extremos desta relação, antes equilibrada pela integridade dos programas e pelas dificuldades naturais impostas por um ambiente ainda não corrompido. Isto equivale a dizer que quanto mais o programa recompensa-castigo foi subvertido, mais o homem passou a visar recompensas e evitar os custos.

O homem altera não apenas seus próprios programas, mas também os programas de tudo que o cerca em prol de sua própria adaptação e das significações que ia dando ao mundo, quando passa a domesticar plantas e animais, o homem interfere em muitos dos programas da natureza, por vezes, desequilibrando-os.

Os animais que tomou para si como domésticos perderam seus programas genéticos originais, esqueceram-se das etapas que precedem o acasalamento a fim de facilitar sua criação.102

Entre os judeus, em relação aos animais criados para consumo, por exemplo, “o gado era literalmente domesticado como escravo. Ele tinha que ser criado na ordem social a fim de desfrutar da bênção.”103

Se antes o mundo tinha uma gramática própria, o homem passa a reorganiza-lo visando favorecer a própria adaptação. Neste enorme conjunto de experimentos o homem tem sofrido as consequências de seus erros e acertos.

O mal uso da gestão dos próprios programas, no homem, deu origem a uma alimentação voltada à mera questão estética, sem levar em conta benefícios ou malefícios dos alimentos, ou mesmo nenhuma observância religiosa. A questão estética do gosto tal como a concebemos hoje, de maneira geral, é relativamente recente e reflete também uma mudança de comportamento e de valores do homem.

101 DAMASIO, A. op. cit., p. 81. 102 LORENZ, K. 1974. op. cit., p. 60. 103 DOUGLAS, M. op. cit., p. 71.

39 A preocupação com o prazer maior do que com a saúde toma um grande impulso com o grande intercâmbio de produtos ocorrido na Idade Moderna. A chegada de novos produtos aguçou curiosidades e abalou antigos sistemas alimentares baseados apenas em produtos locais. Claro que o mundo já havia começado trocas de alimentos em outros momentos, como durante o império romano ou no período da expansão islâmica. Porém, na Idade Moderna estas trocas ultrapassaram oceanos e tomaram um volume nunca visto antes. Nenhum sistema alimentar permaneceu o mesmo após esta época. Com tantas concepções alimentares e sabores novos circulando, inicia-se um amplo debate sobre a alimentação, liderado especialmente pelos humanistas da Renascença:

A primeira coisa a se notar é que eles tentaram equilibrar dietética e ciência da alimentação em favor da boa saúde com gastronomia e a arte da boa mesa, pelo prazer e como sinal de refinamento cultural.104

Na transição entre Idade Média e Idade Moderna acentua-se a distância entre prazer e aspectos médicos e religiosos da alimentação.

Um gosto por luxuria e exoticismo nasceu no inicio do século XV, foi suprimido por um tempo e ressurgido depois [...] Isto não produziu o mesmo excesso indulgente dos antigos padrões romanos, limitado pelas diretrizes clericais contra aqueles sibaritas que não estavam contentes em comer simples massa fervida como Deus mandava, mas insistiam em converte-la em Macarrão au gratin.105

A busca inveterada pelos novos produtos logo levou os europeus a um grande avanço no comércio e nas navegações, mas também a uma transformação geral da geografia através do colonialismo:

Em todas as latitudes, os equilíbrios e as estruturas produtivas do “novo continente” foram transtornadas para uso dos dominadores europeus, que utilizaram os territórios conquistados como espaços produtores de comida, exportando para além-mar todos os produtos fundamentais da dieta europeia, plantas e animais: antigas plantas mediterrâneas (a clássica tríade trigo-videira-oliveira), bem como animais de pastagem (bois, cavalos, porcos), passaram naqueles anos para além do oceano.106

104 WOOLGAR, C. M. Banqueteando e Jejuando: Comida e sabor na Europa da Idade Média. In: FREEDMAN, P.

(Org.) A História do sabor. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009, p. 199.

105 JACOBS, J. Gastronomy. Verona: Newsweek Books, 1975, p. 51. Tradução do autor. 106 MONTANARI, M. 2008. op.cit., p. 51.

40 Com o tempo, todos os novos sabores e as vantagens trazidas pelo comércio de gêneros alimentícios fez que com que a alimentação tomasse um rumo diferente da saúde.

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II FUNÇÕES SIMBÓLICAS DA ALIMENTAÇÃO E DA RELIGIÃO

Dando prosseguimento à ideia do pensamento simbólico do homem, proposta no capítulo I, detalharemos este processo demonstrando como a alimentação e suas motivações para escolha tornaram-se muito mais complexas à medida que o homem evoluiu em sua capacidade de simbolizar e deslocar conceitos. Faremos um paralelo entre o desenvolvimento intelectual do homem, sua linguagem e sua forma de se alimentar, observando que a linguagem, num sentido amplo e a alimentação desenvolveram-se, do ponto de vista cultural, de forma similar. Colocamos assim, a comida como uma forma de linguagem, no sentido de que é criada pelo homem e, uma vez assimilada, passa de criação a criadora do homem. Os sistemas alimentares e culinários ajudam construir visões de mundo, através dos valores que a comida porta em cada um destes sistemas.

Da mesma maneira, trataremos as religiões como sistemas simbólicos que também constroem realidades. Argumentaremos também sobre como, do ponto de vista biológico, a religião favorece a cooperação e a coesão entre os membros do grupo. Na questão da religião definiremos e demonstraremos a importância dos rituais, em especial, das práticas alimentares e como as mesmas constituem mecanismos que auxiliam, de forma especial, a religião a encorajar comportamentos que favorecem o grupo.

Uma vez que, no capítulo I reforçamos a ideia de que o homem ainda tem grande parte de seus comportamentos sujeitos ao instinto, tanto quanto outros animais; defendemos que a religião serve como uma espécie de mecanismo domesticador destes instintos, exatamente porque privilegia e seleciona comportamentos em prol do grupo em detrimento dos individuais. Neste sentido, uma alimentação com regras e restrições, normalmente ligadas à doutrina da religião adotada ensina a educar os instintos, amplificando os próprios ensinamentos religiosos.

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