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Semelhanças entre regras de linguagem e regras de alimentação

As mudanças na alimentação humana foram tais e tão determinantes no curso da humanidade que mereceu ter sua história contada individualmente: dos grãos, frutos e restos de carcaça crus, passou-se às caças assadas, depois aos cozidos com água em recipientes de barro, à combinação de alimentos, aos fermentados, defumados, condimentados, fritos, processados, congelados, etc. A questão mais intrigante, entretanto, repousa sobre o fato de que, fisiologicamente, não haveria necessidade de a alimentação tornar-se tão complexa. Os nutrientes que precisamos continuam sendo basicamente os mesmos. Sendo onívoro, o homem poderia alimentar-se de praticamente qualquer coisa, mas o fato é que, desde que o pensamento simbólico passou a originar

133 WILSON, E. O. Da natureza humana. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1981, p. 6. 134 STARK, R. e BAINBRIDGE, W. S. op. cit., p. 39.

50 interpretações, os alimentos passaram a fazer parte deste mundo construído e adquiriram valor simbólico; foram nomeados e classificados segundo os critérios de cada cultura.

A nutrição é uma exigência orgânica. Porém, há uma enorme diferença entre comida e alimento. Nosso corpo necessita de uma quantidade de fibras, calorias e proteínas. Um alimento saudável do ponto de vista orgânico pode ser intragável. Alimento nos supre das nossas necessidades orgânicas; comida não. Esta mata a fome de símbolos. Comida é tudo aquilo que se come com prazer [...] Os alimentos se tornam bons quando carregados de significados e valores. [...] O ser humano não se contenta com a materialidade, é necessário o significado que há por trás dela.135

Podemos dizer que à medida que a linguagem emerge, surge também uma “linguagem alimentar”.

Em todas as sociedades, o modo de comer é regrado por convenções análogas àquelas que dão sentido e estabilidade às linguagens verbais. Esse conjunto de convenções, que chamamos “gramática”, configura o sistema alimentar não como uma simples soma de produtos e comidas, reunidos de modo mais ou menos causal, mas como uma estrutura na qual cada elemento define seu significado.136

Para comunicar, símbolos (sejam eles sons, imagens, aromas ou palavras...) necessitam obedecer a um ordenamento lógico ao qual denominamos gramática; a gramática estabelece um conjunto de regras que determina o que pode ser usado, colocando de fora o que poderia significar contaminação. Determina também de que maneira e quais as combinações possíveis a fim de se produzir sentido. A gramática, assim como tantas outras “formas-de-fazer”, também não parece ter sido uma criação humana quando observamos a questão dos códigos genéticos, percebemos um ordenamento que sugere o linguístico: ordem e conteúdo entre os elementos, em termos de genes ou palavras são imprescindíveis para produzir, uma celular, ou uma frase. A gramática, portanto, deve ter sido aprendida a partir do acesso ao gabarito oculto de Damásio.

Para que os seres vivos sejam da maneira como são, e continuem a se reproduzir mantendo a mesma organização os genomas de cada um deles obedecem a uma rigorosa gramática; com sintaxe (ordem em que os genes são executados) e semântica (tipos de genes que compõem o genoma). Qualquer alteração mínima na sintaxe ou na semântica produzirá algo diferente. Assim

135 GUERRIERO, S. A Construção da Realidade. In: GUERRIERO, S. (Org.). op. cit., p.103. 136 MONTANARI, M. 2008, op. cit., p.165.

51 podemos dizer que o que não obedece à gramática está sujeito à entropia, no sentido de Bateson, segundo ele entropia é:

O grau em que as relações entre os componentes de qualquer agregado estão misturadas, não classificadas, não diferenciadas, imprevisíveis e aleatórias. O oposto é negentropia, o grau de ordenação, classificação ou previsibilidade em um agregado.137

Por analogia podemos equiparar negentropia e gramática, uma vez que gramática implica em ordenação, classificação e até previsibilidade.

Espera-se que numa dada língua, por exemplo, haja a ocorrência de certos dígrafos (sílabas), de certas conjunções ou preposições, que são padrões em tal língua, da mesma maneira espera-se que numa cozinha particular ocorram certos sabores. Na cozinha brasileira, cebola e alho, por exemplo. Uma refeição não deixa de ser um texto dentro de um dialeto (sistema culinário), dentro de uma língua (sistema alimentar). Os alimentos são como vocábulos, têm sentido próprio e maneira convencionada de se utiliza-los. Este texto deve ser semanticamente e sintaticamente bem estruturado, de acordo com cada cultura. Não se faz uma frase como: “O perfume da comida

nadava os comensais” e nem, “Os comensais perfume da comida o encantava”, mas para que produza sentido, diríamos: “O perfume da comida encantava os comensais.”

Não se costuma fazer uma refeição com alimentos estranhos à ocasião, como por exemplo, servir feijoada no café da manhã, o que significaria uma refeição semanticamente mal estruturada. Também há uma ordem em que os alimentos devem ser servidos, o que demonstra submissão a uma sintaxe. Não se inicia um jantar pelo cafezinho. Qualquer cultura possui sua gramática alimentar, mas elas parecem especialmente formais e rígidas quando a alimentação tem caráter religioso. A falta de sentido na prática alimentar religiosa significaria comprometer proposições fundamentais.

Pode ser que as pessoas desenvolvam hábitos e gramáticas particulares em suas refeições “profanas”, neste caso servir feijoada no café da manhã ou cafezinho no inicio do jantar equivaleriam às “licenças poéticas”, uma subversão da norma culta com intenção de expressar outro sentido. Esta linguagem alimentar nasce na cultura e dissemina-se socialmente por

137 BATESON, G. Mente e Natureza. A unidade necessária. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A.,

52 convenção, acompanhando inclusive, as mudanças sociais. Assim como coloquialismos um dia tornam-se linguagem oficial, práticas alimentares marginais podem futuramente tornar-se padrão. “se a comida é tratada como código, as mensagens que codifica serão encontradas nos padrões de relações sociais expressas.”138

Há o caso em que culturas diferentes usam os mesmos elementos para produzir sentidos muito diferentes. O exemplo a seguir compara genética e literatura, entretanto, adéqua-se perfeitamente à questão alimentar como veremos a diante.

Matt Ridley faz uma comparação bastante elucidativa entre o processo de codificação e transmissão genéticas e literatura. Ele fala dos escritores Charles Dickens e J. D. Salinger nos romances David Copperfield e O apanhador no campo de centeio, respectivamente:

Dickens e Salinger usam os mesmos poucos milhares de palavras. Há palavras que Salinger usa, mas não Dickens, como elevador ou besteira. Há palavras que Dickens usa, mas não Salinger, como coifa e impertinente. Mas elas serão poucas se comparadas com as palavras que compartilham. Provavelmente, há pelo menos 90% de concordância léxica entre os dois livros. Todavia são livros muito diferentes. A diferença não está no uso de um conjunto diferente de palavras, mas no mesmo conjunto de palavras usadas em um padrão ou ordem diferente. Da mesma forma, a origem das diferenças entre um chipanzé e um ser humano não está nos diferentes genes, mas no mesmo conjunto de 30.000 genes usados em uma ordem ou padrão diferentes.139

Tomemos como exemplo a comparação entre as cozinhas islâmica e judaica do Oriente Médio: Ambas encontram-se dentro do mesmo sistema alimentar, portanto, utilizam-se mais ou menos dos mesmos ingredientes. Elas repudiam o porco, o que equivale a um vocábulo que nunca vai ocorrer dentro de seus respectivos textos. Ambas consomem muito leite e muita carne de cordeiro, entretanto a forma como elas os servem dá origem a textos completamente diferentes. No Judaísmo, uma das maiores proibições é o consumo de carne e leite juntos:

“Não cozerás o cordeiro no leite de tua mãe.” O que se procura evitar é um incesto culinário: não se deve colocar uma mãe e seu filhote num mesmo caldeirão, do mesmo modo que uma mãe e seu filho não devem ocupar o mesmo leito. O fogo da cozinha e o

138 DOUGLAS, M. Deciphering a meal. In: COUNIHAN, C. e ESTERIK, P. . Food and Culture: A reader. New

York: Routledge, 2008, p. 36. Tradução do autor.

53 calor erótico são análogos: eles podem conduzir, pela fusão dos elementos, à confusão entre diferenças.140

Já na gramática alimentar islâmica, apesar das regras alimentares também estritas, carne e leite são consumidos juntos, a ponto de habitarem, não apenas a mesma refeição, mas um mesmo prato, como é o caso do Kibe bi Labanie ou “quibe na coalhada”, prato típico da cozinha sírio- libanesa, onde bolinhos de carne “nadam” na coalhada, que é puro leite.

Conforme os grupos de humanos foram se diversificando deram origem a diferentes gramáticas, produzindo diferentes linguagens e sistemas culinários. Estas gramáticas particulares obedecem a uma estrutura profunda diretamente ligada ao seu ambiente e, especialmente à forma como interpretam este ambiente.

[Os sistemas culinários] de uma nação não decorrem somente do mero instinto de sobrevivência e da necessidade do homem de se alimentar. São expressão de sua história, geografia, clima, organização social e crenças religiosas. Por isso, as forças que condicionam o gosto ou a repulsa por determinados alimentos diferem de uma sociedade para outra.141

Formam-se assim:

verdadeiras ideologias nutricionais, quer dizer, um conjunto de noções, ideias e símbolos sobre as qualidades dos alimentos, seus aspectos benéficos e nocivos, assim como as formas (quantidades, tempos, espaços, etc.) em que devem ser consumidos.142