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O ANIMAL COMO SUJEITO DE DIREITO

No documento Abolicionismo animal (páginas 118-124)

5 F UNDAMENTOS J URÍDICOS DO A BOLICIONISMO A NIMAL

5.2 O ANIMAL COMO SUJEITO DE DIREITO

Para muitos autores, as atuais chances de sucesso da teoria abolicionista são remotas, pois as atuais condições sociais são desfavoráveis para tanto, mesmo porque existe um consenso público de que os animais são propriedade humana, idéia que encontra um forte apoio na lógica do liberalismo político e econômico e no conceito liberal de justiça.

À parte isso, entre os teóricos do direito animal existe uma tendência em transferir essa demanda, até então restrita aos domínios da filosofia do direito, para o seio da dogmática jurídica, mesmo porque a expressão “direito animal” vem se tornando cada dia mais comum entre os juristas, pois muitos que entendem que além de um dever moral, as pessoas têm o dever jurídico de não tratar os animais com crueldade.

A definição do direito, porém, se tornou tão complexa e problemática que alguns acadêmicos entendem que ņ face à sua ambigüidade ņ melhor seria retirar essa discussão do debate jurídico. O conceito de direito é um importante instrumento teórico para a sociedade, uma vez que ele permite ao indivíduo operacionalizar as situações jurídicas que, ora restringem o seu comportamento, ora lhe permitem fazer valer uma posição de vantagem em face dos outros, embora a sua definição tenha se tornado tão complexa.

Se entendermos o “direito” como uma proteção jurídica contra um dano ou como uma reivindicação dessa proteção, não há dúvida de que os animais são titulares

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de certos tipos de direitos, tendo em vista que a legislação da maioria dos países prevê sanções contra os maus-tratos e a crueldade contra eles. 404

Henry Salt, já no século XIX, afirmava que se os homens possuem direitos, os animais também os possuem, desde que se entenda por direito “um sentido de justiça que marca as fronteiras onde a aquiescência acaba e a resistência começa; uma demanda pela liberdade de viver sua própria vida, à necessidade de respeitar a igual liberdade das outras pessoas”.405

Na verdade, quando utilizamos a palavra direito, fazêmo-la sempre com uma carga valorativa positiva, para representar uma situação jurídica na perspectiva daqueles que se encontram numa posição favorável em relação a outro ou a alguma coisa.406

No caso brasileiro, a questão se torna ainda mais clara, pois a Constituição de 1988 elevou a proibição das práticas que submetam os animais à crueldade à categoria de norma constitucional, o que, em face do princípio da supremacia da Constituição, lhe conferiu uma enorme força jurídica.

Kelsen, por exemplo, não via nenhum absurdo em considerar os animais sujeitos de direito, pois para ele a relação jurídica não ocorre entre o sujeito de dever e o sujeito de direito, mas entre o próprio dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde, de modo que um direito subjetivo não seria nada mais que o reflexo de um dever jurídico, posto que a relação jurídica é sempre uma relação entre normas: uma norma que obriga o devedor, e outra que faculta ao seu titular o poder de exigi- lo.407

404

SUNSTEIN, Cass R. The rights of animals. University of Chicago Review, Chicago, p. 389, 2003. 405

SALT, Henry. Animal’s rights: considered in relation to social progress. Pensylvannia: Society for Animals Rights, 1980. p. 2. 406

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1990. p. 144.

407

O direito subjetivo (facultas agendi) é visto como a faculdade assegurada pela ordem jurídica a um sujeito de exigir determinada conduta de alguém que, por lei ou por ato jurídico, está obrigado a cumpri-la. Por exemplo, se a obrigação de B, decorrente do direito de A, não for cumprida, o titular do direito pode exigir do Estado-juiz a execução forçada desse direito, ou a reparação do bem jurídico danificado, embora quando se trate de direitos da personalidade, o titular possa executar diretamente a sanção, como nos casos de estado de necessidade, legítima defesa ou desforço incontinenti.408

Não obstante, para a teoria voluntarista, somente os agentes morais, os indivíduos - autônomos e capazes de pensar, deliberar e escolher ņ podem ser sujeitos de direitos subjetivos.409 Windcheid e Savigny, por exemplo, viam no direito subjetivo um poder juridicamente protegido capaz de fazer valer a vontade de uma pessoa sobre outra, pois para eles somente através de uma manifestação da vontade os direitos subjetivos podem nascer, modificar-se ou extinguir-se.410

A teoria da vontade, todavia, foi muito criticada por Ihering, por não contemplar os direitos dos incapazes e por não explicar a existência dos direitos da personalidade, como a vida e a liberdade, que, sendo irrenunciáveis, não dependem da vontade do titular para o seu exercício.411

No lugar da vontade, Ihering propõe o interesse, entendido como tudo aquilo de que alguém necessita ou conduz para o seu próprio desenvolvimento, de modo que, nessa concepção, o direito subjetivo só aparece quando um interesse vem a ser protegido pelo direito.412

É justamente na teoria do interesse que o utilitarismo de Jeremy Bentham e

408

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 20. 409

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Jurídica, 2001. p. 69. 410

Ibidem. p. 59. 411

Ibidem. p. 60. 412

Segundo RABENHORST, Eduardo, no contexto anglo-americano, a teoria do interesse se originou da filosofia utilitarista, que teve como precursor o filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham, ibidem, p. 65-66.

Peter Singer encontra raízes, de modo que a senciência, isto é, a capacidade de sentir prazer e dor, se constitui no pré-requisito básico de todos os interesses, pois a ética deve ter como objetivo principal aumentar o prazer do maior número possível de pessoas.413

A teoria do interesse também vai receber muitas críticas, pois, em determinadas situações, existem interesses aos quais não correspondem direitos subjetivos, como nos casos dos pedidos juridicamente impossíveis, de modo que, para Thon, o direito subjetivo, ao invés de ser um interesse protegido, é o próprio instrumento de proteção desses interesses.414

A teoria da garantia, desenvolvida por Thon, entende que o direito subjetivo é uma mera expectativa de pretensões,415 ou seja, uma garantia conferida pelo direito objetivo, que pode ser invocada toda vez que um direito for violado, embora essa teoria destrua o conceito do direito subjetivo como uma realidade em si.416

Na filosofia jurídica anglo-saxônica, a teoria da vontade foi representada inicialmente por John Austin, e contou entre os seus defensores com o jurista americano Wesley Horfeld, o qual buscou estabelecer os sentidos em que o direito subjetivo pode ser utilizado.417

De fato, Horfeld divide as relações jurídicas em relações de coordenação e de subordinação, que podem ser de quatro tipos: faculdade, liberdade, poder ou imunidade, a cada uma correspondendo uma modalidade passiva. Nas relações de coordenação, ao dever de A de fazer ou deixar de fazer alguma coisa corresponde a faculdade de B de exigir o seu cumprimento; à liberdade de A de praticar um ato que

413

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Jurídica, 2001. p. 75. 414

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução à ciência do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 306. 415

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 93. 416

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1990. p. 142.

417

não seja proibido nem prescrito, um ato indiferente ao direito, corresponde a não- faculdade de B ou de quem quer que seja de impedir essa conduta.418

Nas relações jurídicas de subordinação, a sujeição de B, por exemplo, é uma limitação à sua possibilidade de agir, decorrente do poder de A de dispor normativamente para impor condutas (nos regimes estatais esse poder é exclusivo das autoridades públicas); enquanto a imunidade de B decorre da impotência de A, expressa na proibição daquela autoridade de praticar determinados atos, sob pena de anulação.419

Nesse sentido, o direito subjetivo não é apenas o correlato de um dever, mas um conjunto de modalidades relacionais, de modo que direito de propriedade pode incluir tanto relações de direito, dever, liberdade e não-direito, como relações de poder, sujeição, imunidade e indiferença.420

Os direitos subjetivos, porém, podem ser pessoais, que são direitos relativos por obrigarem apenas determinadas pessoas, ou direitos reais, que são absolutos, por terem validade erga omnes e serem dirigidos a um sujeito passivo indeterminado, que é a totalidade dos membros da comunidade jurídica.421

Autores como Orlando Gomes, no entanto, discordam da existência de um sujeito passivo indeterminado, sob o argumento de que nem sempre é necessária uma coincidência entre a relação humana e a relação jurídica, sendo tecnicamente possível relações jurídicas entre uma pessoa e uma coisa, como no direito de propriedade, bem

418

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 197. (Se o banco de uma praça está ocupado por outras pessoas eu não tenho a faculdade de exigir que elas cedam o banco para eu sentar. Existem ainda as liberdades especiais, a exemplo das garantias constitucionais que são esferas protegidas diante da intervenção do legislador - liberdade religiosa, de imprensa etc.).

419

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1990. p. 159.

420

Ibidem. p. 160. 421

como entre uma pessoa e um determinado lugar, como no caso do domicílio.422

Jean-Louis Bergel adverte ainda que, nos casos dos direitos da personalidade, não se pode falar propriamente em direitos subjetivos, que são direitos disponíveis passíveis de ser alienados ou renunciados, ao passo que a vida, a liberdade e a integridade física, são imprescritíveis, irrenunciáveis e intransmissíveis. 423

Entre os civilistas, porém, prevalece a idéia de que, nos direitos da personalidade, o sujeito ativo e o objeto da relação jurídica se confundem, embora para alguns autores se trate simplesmente de direitos sem objeto ou mesmo direitos subjetivos aos quais correspondem o dever jurídico de abstenção de todos os demais membros da coletividade.424

Não podemos negar, no entanto, que os animais silvestres já são sujeitos de direitos, ainda que condicionados, como a vida, a liberdade e a integridade física, uma vez que o art. 29 da Lei nº 9.605/98 estabelece uma pena de até um ano de detenção para a conduta de “matar, perseguir, caçar, apanhar e utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente ou em desacordo com a obtida”. 425

Seja como for, se considerarmos que o direito é um interesse protegido pela lei, ou uma faculdade do julgador de exigir determinada conduta de outrem, ou uma garantia conferida pelo Estado que pode ser invocada sempre que um dever for violado, nós temos que admitir que os animais são sujeitos de direito.

422

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 83. 423

BERGEL, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 33. 424

WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro: introdução e parte geral. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 134.

425

O artigo 29, da Lei nº9.605/98, incrimina, ainda, a conduta de impedir a procriação da fauna, modificar, danificar ou destruir seus ninhos, abrigos ou criadouros naturais, vender, expor a venda, exportar, adquirir, guardar, ter em cativeiro ou depósito, utilizar ou transportar ovos, larvas ou espécimes, bem como produtos e objetos dela oriundos, salvo quando autorizados.

No documento Abolicionismo animal (páginas 118-124)