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O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE FÍSICA E MENTAL DAS ESPÉCIES

No documento Abolicionismo animal (páginas 32-36)

1 A I DEOLOGIA E SPECISTA

2.1 O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE FÍSICA E MENTAL DAS ESPÉCIES

Embora o homem e os animais tenham em comum o nascimento, a morte, a dor e o prazer, a tradição ocidental sempre buscou descobrir um atributo específico na humanidade que justificasse a exclusão desses de nossa esfera de consideração moral.

Como vimos no capítulo I, o principal argumento utilizado para excluir os animais da esfera de consideração moral, seja na filosofia grega, na tradição religiosa cristã ou no mecanismo cartesiano, parte do princípio de que os animais são destituídos de espírito ou alma intelectual.

Na verdade, várias características costumam ser consideradas atributos exclusivos da humanidade. Platão, por exemplo, dizia que somente o homem era capaz de ter postura ereta, o que lhe permitia olhar para o céu, enquanto Aristóteles achava que o homem era o único animal que ria, tinha os cabelos encanecidos e uma alma intelectual localizada no coração. 78

O médico inglês Hart, por sua vez, acreditava que devido à grande extensão dos intestinos, a digestão do homem era mais demorada, o que facilitava a sua capacidade de especulação, ao passo que o esteta Uvedale Price destacava que o

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BARRETO, Tobias. Estudos de direito e política. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962. p. 13. 78

homem era o único animal que possuía uma saliência pronunciada no meio da face denominada de nariz. 79

Benjamin Franklin acreditava que o homem era o único animal a fabricar seus próprios utensílios, enquanto Edmund Burke via nele a exclusividade de sentimentos religiosos. James Bosweel, bem antes de Lévi-Strauss, afirmava que somente o homem fosse capaz de cozinhar seus alimentos, ao passo que Martinho Lutero e o Papa Leão XII acreditavam que somente a espécie humana tem uma idéia de propriedade. 80

O narcisismo antropocêntrico, porém, vai sofrer três duros golpes. Primeiro, quando Copérnico demonstrou que a terra não era o centro do universo, mas apenas um pequeno fragmento de um vasto sistema cósmico. Segundo, quando Charles Darwin provou que a espécie humana não surgiu pronta, como diz a Bíblia, e que ela possui um ancestral comum com os grandes primatas. E por fim, quando o Freud demonstrou a irracionalidade humana e que o ego não é senhor dentro de sua própria casa, uma vez que a maior parte das nossas ações são inconscientes. 81

A grande revolução darwiniana consistiu em provar que as diferenças entre os homens e os animais não são ontológicas, mas circunstanciais, jogando por terra os fundamentos da doutrina aristotélica da imutabilidade (ou fixidez) das espécies vivas, reflexo da sua teoria da substância, que concebia uma estrutura ontológica do mundo.82

De fato, a teoria de Darwin sobre a evolução das espécies é uma das obras mais influentes de todos os tempos, pois desmonta o alicerce mais sólido da ideologia especista: a crença de que entre os homens e os animais existem barreiras espirituais intransponíveis.

79

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 37. 80

Ibidem. p. 38. 81

FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 292, pt. 3. 82

Com efeito, em 1871, doze anos depois de publicar A origem das espécies, Darwin vai publicar A origem do homem, seguido de A expressão das emoções no

animal e no homem (1872), demonstrando que existem fortes evidências empíricas de

que entre o homem e os animais existe continuidade, e que as diferenças entre eles são apenas de grau e não de essência. 83

De fato, a partir de estudos comparados de anatomia e fisiologia, a Teoria da Evolução pela seleção natural vai provar que todos os seres vivos possuem a mesma origem, e que o homem e os grandes primatas possuem um antepassado comum.

Inicialmente, Darwin esboçou a sua teoria a partir da observação das mudanças produzidas nos animais domésticos a partir de cruzamentos sucessivos entre bovinos, galináceos, mas, principalmente, entre caninos, como o bulldog e o spaniel.

A partir dessas observações, Darwin inferiu que no estado natural essas mudanças haveriam de ser ainda mais efetivas, já que em condições naturais a ação seletiva tem um tempo incomparavelmente maior de ocorrência. 84

Duas idéias estão no centro de sua teoria: que a evolução é um fenômeno histórico e que todas as espécies descendem de um ancestral comum; e que a seleção natural é o principal mecanismo da biodiversidade. 85

A seleção natural, dirá Darwin, parte do princípio de que pequenas diferenças, aleatórias e transmissíveis entre indivíduos da mesma espécie (anagênese) determinam diferentes oportunidades de sobrevivência e reprodução, em que uns vão ser bem-sucedidos enquanto outros desaparecerão sem deixarem descendentes. É justamente esta seleção que provoca mutações na forma, tamanho, força, mecanismos

83

DARWIN, Charles. Origem das espécies. Belo Horizonte: Villa Rica, 1994. p. 45. 84

Para DARWIN, Charles “Se nenhum ser orgânico, à exceção do homem, possuísse alguma faculdade mental, ou se nossas faculdades fossem de natureza inteiramente diversa daquela dos animais inferiores, jamais haveríamos podido convencer-nos de que nossas faculdades houvessem chegado à altura que agora se encontram, mediante desenvolvimentos graduais e progressivos” ibidem, p. 70. (Tradução nossa).

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de defesa, cor, bioquímica e comportamento dos indivíduos da próxima geração.86 Na especiação, as mutações genéticas ocorrem apenas num segmento isolado da espécie, que se adapta às condições locais e passa a ocupar um novo nicho ecológico, até se tornar irreversivelmente diferente, a ponto de seus membros não poderem mais se reproduzir com os membros da sua antiga espécie.

A esses fenômenos de divisão e especialização, Darwin denomina “princípio da divergência”, o que lhe permitiu explicar tanto a biodiversidade como a adaptação das espécies ao seu meio ambiente. 87

Darwin coletou as provas de sua teoria a partir de quatro disciplinas: (1) da biogeografia, que estuda a distribuição geográfica dos seres vivos; (2) da paleontologia, que investiga as formas de vida extintas preservadas no registro fóssil; (3) da embriologia, que pesquisa as etapas do desenvolvimento dos embriões; e (4) a morfologia, que é a ciência da forma e configuração anatômicas dos seres vivos.88

Não obstante, a Teoria da Evolução muitas vezes tem sido usada para justificar a exploração humana sobre os animais, sob o argumento de que o mecanismo da evolução/sobrevivência dos mais aptos justificaria a exploração das espécies “inferiores”, e o homem não estaria apenas cumprindo o seu papel na cadeia evolucionária. 89

Kelch, no entanto, adverte que estar atrás ou na frente no tempo evolucionário

86

QUAMMEN, David. Darwin estava errado? National Geografic Brasil. São Paulo, p. 44, nov., 2004. 87

DARWIN, Charles. Origem das espécies. Belo Horizonte: Villa Rica, 1994. p. 109-119. 88

QUAMMEN, op. cit., p. 45. 89

KELCH, Thomas no entanto, refuta essa teoria, e afirma que conceder valor intrínseco apenas ao ser humano sob o argumento de que a seleção natural seleciona apenas os “melhores” nos obrigaria a conceder valor intrínseco às baratas, uma vez que elas são os animais mais adaptados ao meio ambiente da Terra, pois vários estudos demonstram que elas seriam a única espécie capaz de sobreviver a uma hecatombe nuclear, em Toward a non-property status for animals. New York University Environmental Law

Journal. New York, p. 535, 1998. Comentando sobre o direito norte-americano, KELCH, Thomas adverte:“Darwin afirma que alguns

animais sentem prazer e dor, têm muitas das complexas emoções que os humanos têm, possuem imaginação e razão em algum grau, e podem mesmo ter memória e reflexão sobre a memória. O processo mental dos homens tem evoluído como todas as outras propriedades humanas, e é, portanto apenas uma continuação da mesma espécie de processo que existe nos animais inferiores. A visão tradicional da relação dos homens e outros animais encontra um pequeno suporte real. Duas das principais implicações da Teoria da Evolução são que o abismo entre humanos e outros animais não é tão grande assim como muitos afirmam, e que as semelhanças entre os dois superam as diferenças. Portanto, a Teoria da Evolução mostra que o lugar especial dos homens no mundo que fundamenta nosso atual Common Law é fictício”, ibidem, p. 561 (Tradução nossa).

não concede nenhum valor moral específico às espécies, pois não se pode conceder valor moral a fatos científicos, que no máximo devem ser utilizados como premissas fáticas para argumentos éticos. 90

Assim como ocorreu com a revolução copernicana, que foi recusada durante muito tempo por negar o geocentrismo, as idéias de Darwin, embora hegemônicas entre as ciências naturais, ainda não obtiveram o devido reconhecimento no mundo jurídico.

Seja como for, a cada dia novas pesquisas científicas são desenvolvidas em universidades ao redor do mundo, quase sempre confirmando o postulado de Darwin de que não existe nenhuma diferença categórica entre o homem e os animais não humanos, especialmente quando se trata de analisar seus atributos mentais ou espirituais.

Vários desses estudos foram realizados por psicólogos e etólogos, demonstrando que o homem é apenas mais uma espécie na cadeia evolucionária, não existindo nenhuma característica que estabeleça um muro intransponível entre ele e as demais espécies. A própria evolução do cérebro humano não ocorreu para nos isolar das leis da sobrevivência e da reprodução, mas para cumpri-las com maior eficácia. 91

No documento Abolicionismo animal (páginas 32-36)