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REFORMA OU ABOLIÇÃO?

No documento Abolicionismo animal (páginas 89-94)

3 A L UTA PELOS D IREITOS DOS A NIMAIS

3.4 REFORMA OU ABOLIÇÃO?

A partir dos anos oitenta, alguns ativistas, inspirados nas idéias de Peter Singer, criaram a PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), organização que impulsionou consideravelmente o movimento, ao promover, em 1994, uma campanha intensiva contra a McDonald’s, a Burger King e a Wendy’s, três das maiores redes de

fast-food dos Estados Unidos. 296

No decorrer dessa campanha, as empresas foram pressionadas a assumir vários compromissos para a melhoria das condições de vida dos animais nas unidades de produção e abatedouros, tais como a redução do número de galinhas nas baterias, a aplicação de choques elétricos antes da evisceração e decapitação, a restrição das técnicas de privação de água e alimentos para produção de ovos, etc. Contudo, essas “vitórias” acabaram por reacender o antigo debate entre o abolicionismo e o gradualismo, a ponto de a PETA ter sido acusada de cumplicidade com a agroindústria.297

É importante ressaltar que essa polêmica já havia ocorrido em 1860, no seio do movimento antivivisseccionista, pois enquanto Frances Power Cobbe lutava pelo fim

295

DEGRAZIA, David. Taking animals seriously: mental life and moral status. Cambridge: University of Cambridge, 1996. p. 6. 296

FRANCIONE, Gary. Rain without thunder: the ideology of the animal rights movement. Philadelphia: Temple University, 1996. p. 98-99.

297

imediato da vivissecção em animais, Lord Coleridge defendia uma posição mais moderada, que visava tão-somente reduzir o sofrimento dos animais nos laboratórios.

298

De toda sorte, o abolicionismo animal ainda sofre uma forte oposição no mundo acadêmico. François Ost, por exemplo, entende que a concessão de direitos aos animais poderá contribuir para o enfraquecimento da idéia e a produção de um efeito inverso, aumentando ainda mais a perversidade humana contra os animais. 299

Para muitos autores, ainda que uma mudança como essa venha a ser uma etapa necessária para a agenda abolicionista, a proposta de modificar o status de propriedade dos animais é muito radical, assim como é um erro não acreditar ser possível a obtenção de melhoras significativas no bem-estar animal dentro do atual sistema jurídico.

Robert Garner, por exemplo entende que a simples abolição do status de propriedade não ofereceria nenhuma garantia de que os animais deixariam de ser explorados, uma vez que essa exploração decorre muito mais de fatores políticos e ideológicos do que jurídicos. Para ele, existem inúmeras razões para acreditarmos que, mesmo que os animais venham a ser considerados sujeitos de direito, eles continuarão a ser explorados, a exemplo do que já ocorre com os animais silvestres, que embora recebam uma rígida proteção jurídica continuam a ser impunemente comercializados de forma ilegal.300

Por fim, argumenta que o direito é uma abstração que constitui uma mera condição formal, quase sempre com pouca ou nenhuma efetividade na realidade social.

298

SILVERSTEIN, Helena. Unleashing rights: law, meaning, and the animal rights movement. Michigan: University of Michigan, 1996. p. 31.

299

OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. p. 217. 300

Os direitos humanos, por exemplo, apesar de proclamados solenemente por quase todos os governos, ainda não foram satisfatoriamente implementados em muitos países. 301

Outros advertem que, embora as sociedades estejam preparadas para restringir os direitos de propriedade, o liberalismo econômico ainda é um forte obstáculo para o direito animal, de modo que certamente haveria uma forte resistência a uma restrição tão radical a esses direitos. 302

Se os animais têm atualmente uma proteção inadequada, isto se deve muito mais ao escopo limitado das leis, à omissão dos órgãos ambientais e às interpretações conservadoras da maioria dos tribunais, do que ao seu status jurídico.303

A própria PETA emprega uma estratégia de duas vias, pois ao mesmo tempo em que luta por reformas graduais na atual legislação, reivindica o reconhecimento dos animais como sujeitos de direitos, divulga o veganismo e o uso de produtos livres de crueldade, além de lutar contra a vivissecção e o uso de animais em circos, rodeios e zoológicos.

Na visão gradualista ou restricionista, as jaulas limpas de hoje serão as jaulas vazias de amanhã, de modo que o uso retórico da linguagem dos direitos e a luta por um objetivo abolicionista a longo prazo, deve ser acompanhado por agendas práticas e ideológicas que assegurem uma melhoria imediata na qualidade de vida dos animais.

304

Segundo os restricionistas, essas reformas, ao mesmo tempo em que ajudam a melhorar as condições atuais dos animais, preparam gradualmente os espíritos para

301

GARNER, Robert. Political ideology and the legal status of animals. Animal Law Review. University of Leicester, p. 80, 2002. 302

GARNER, loc. cit. 303

Idem. Animals, politics and morality. Manchester: Manchester University, 1993. p. 82. 304

FRANCIONE, Gary. Rain without thunder: the ideology of the animal rights movement. Philadelphia: Temple University, 1996. p. 2-3.

uma abolição futura, pois ainda que o abolicionismo imediato seja uma reivindicação justa, ele é utópico e incapaz de indicar uma direção coerente para a prática cotidiana do movimento. 305

Nessa concepção, existe uma diferença muito grande entre as reformas defendidas pelos abolicionistas e as defendidas pelos restricionistas, embora algumas delas possam ser empreendidas em conjunto, como ocorre com a luta antivivisseccionista e contra a indústria de peles. 306

Para os restricionistas, o sofrimento que a agroindústria provoca nos animais é tão grande que qualquer melhora nas condições atuais representa um ganho para o movimento, a exemplo da luta contra o desmembramento ou fervimento de animais vivos, ou pela diminuição do número de galináceos nas baterias de produção.307

Eles ponderam que devemos, antes de tudo, nos colocar no lugar dos animais e pensar: se eu fosse uma galinha, preferiria ser transferido para uma gaiola maior – onde pudesse ao menos ter melhores condições de vida – ou continuar espremida num pequeno espaço degradante à espera do abolicionismo final?308

Para Singer, os abolicionistas falham ao não perceber a necessidade de uma opinião pública favorável antes de qualquer mudança jurídica. No seu ponto de vista o movimento de libertação animal deve lutar por objetivos realistas, como fez Henry Spira, que, atuando em áreas com maiores chances de sucesso, acabou por promover pequenas, mas efetivas mudanças, que foram gradualmente convencendo a opinião pública. 309

305

FRANCIONE, Gary. Rain without thunder: the ideology of the animal rights movement. Philadelphia: Temple University, 1996. p. 2-3.

306

Ibidem. p. 6. 307

BEST, Steven. Chewing on rights vs. welfare debate: do corporate reforms delay animal liberation. Animal’s Agenda. p. 16, mar./abr., 2002.

308

FRANCIONE, op. cit., p. 15. 309

Os abolicionistas, porém, argumentam que não se pode combater o mal com o próprio mal, que deve ser imediatamente cessado e não postergado, pois somente dessa forma estaremos agindo de acordo com princípios morais. 310

Gary Francione entende que a luta restricionista pode retardar ainda mais o abolicionismo, pois acreditar que as práticas consideradas “humanitárias” contribuam para o fim da exploração animal é o mesmo que esperar “chuva sem trovão”.311

Segundo Regan, nenhuma exploração de animais é possível sem a violação dos seus interesses ou direitos básicos, pois ela sempre resulta na negação do direito dos animais de serem tratados com respeito, mesmo porque não existe nenhum critério de justiça que justifique a priori a mutilação de seus corpos, a limitação da sua liberdade ou a sua morte.312

Entendemos que um movimento verdadeiramente abolicionista não deve jamais pactuar com qualquer tipo de violação dos direitos fundamentais básicos dos animais: a vida, a liberdade corporal e integridade física e psíquica, a menos que isso ocorra em seu próprio benefício ou nos casos em que também seria admitido com a espécie humana.

Os restricionistas partem de uma premissa falsa, pois pretendes oferecer direitos de segunda dimensão, consubstanciados em ações positivas do estado, sem antes assegurar direitos fundamentais de primeira dimensão, que são pressupostos básicos para toda e qualquer dignidade moral.

310

REGAN, Tom. Defending animal rights. Urbana and Chicago: University of Illinois Press. 2001. p. 143-144. 311

FRANCIONE, Gary. Rain without thunder: the ideology of the animal rights movement. Philadelphia: Temple University, 1996. p. 6.

312

4 A H

ERMENÊUTICA

C

ONSTITUCIONAL DA

M

UDANÇA

Mesmo nos momentos em que as teorias refulgem triunfantes, por terem atingido a plenitude de sua expansão avassaladora, em que o domínio delas parece definitivamente enraizado, começam a germinar, de seu próprio regaço, elementos de modificação ou transformação que, pouco a pouco, sarjam-lhes o corpo em todas as direções e preparam-lhes a dissolução. (Clóvis Bevilaqua)313

No documento Abolicionismo animal (páginas 89-94)