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PESSOAS NÃO-HUMANAS

No documento Abolicionismo animal (páginas 124-127)

5 F UNDAMENTOS J URÍDICOS DO A BOLICIONISMO A NIMAL

5.3 PESSOAS NÃO-HUMANAS

Como vimos, o movimento pelos direitos dos animais pretende expandir o rol dos sujeitos de direito para além dos seres humanos, e para isso muitos defendem a necessidade de outorgar personalidade jurídica para os animais não humanos.

De fato, se examinarmos a história do direito, podemos perceber o erro daqueles que afirmam que o homem é a única espécie que pode ser considerada pessoa, pois, a depender do estágio civilizacional, nem todos os homens são (ou foram) considerados pessoas, e nem todas as pessoas são (ou foram) seres humanos.426

A própria noção de dignidade humana e o corolário de que todos os indivíduos podem ser portadores dos mesmos direitos e deveres, não é inerente ao espírito humano, mas uma conquista histórica do humanismo moderno, exigindo a todo o momento justificação. 427

Na Roma Antiga, por exemplo, apenas aqueles indivíduos que reuniam determinados atributos, tais como o nascimento com vida e forma humana (consubstanciada na viabilidade fetal, na perfeição orgânica suficiente para continuar a viver) status de cidadão livre e capaz, eram dotados de personalidade jurídica.428

Os escravos, os estrangeiros, bem como aqueles que se encontravam submetidos à tutela e curatela não eram dotados de personalidade jurídica.429 Na verdade, o processo de identificação dos conceitos de pessoa e ser humano foi fruto da

426

FRANCIONE, Gary. Personhood, property and legal competence. In: SINGER, Peter; CAVALIERI, Paola (Org.). The great ape

project. New York: St. Martin Press, 1993. p. 252. Segundo RABENHORST, Eduardo “No mundo antigo, nem todos os seres

possuíam essa prerrogativa, pois, em muitas sociedades, os escravos, as mulheres e os estrangeiros careciam de personalidade e eram tratados como coisas. Em contrapartida, animais e mesmo objetos inanimados, muitas vezes, tinham o estatuto de pessoas e estavam sujeitos a direitos e obrigações”, em Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Jurídica, 2001. p. 58. 427

Segundo RABENHORST, Eduardo “Pelo contrário, pois no âmbito de muitas culturas (inclusive a nossa, por ocasião de sua constituição) é a desigualdade entre os homens que parece apresentar um caráter natural e necessário”, ibidem, p. 9.

428

Segundo CRETELLA JÚNIOR, José “pessoa é noção eminentemente jurídica, que não se confunde com homem”, em Curso de

direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 84. 429

tradição cristã, que se opunha à distinção romana entre cidadãos e escravos,430 e que acabou por trazer para o mundo romano a idéia de que somente o homem estava destinado a ter uma vida espiritual após a morte do corpo e que toda e qualquer vida humana deve ser considerada divina, até mesmo a vida do feto.431

Não obstante, em relação aos animais, o cristianismo não somente silenciou, e até mesmo acentuou a sua exploração. No Novo Testamento não vamos encontrar nenhuma injunção reprovando os atos de crueldade praticados contra os animais. 432

Esse processo de personificação somente se consolidou com o aparecimento de autores como Francisco Juarez, Hugo Grócio, Cristian Wolf e outros, 433 como John Locke, que definia a pessoa como todo ser inteligente e pensante, dotado de razão, reflexão e capaz de considerar a si mesmo como uma mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares.434

Para Kant, por exemplo, somente os seres racionais e autoconscientes, capazes de agir de maneira distinta de um mero espectador e tomar decisões e executá-las com a consciência de perseguir interesses próprios, podiam ser considerados pessoas.435

Para o Direito, o conceito de pessoa nem sempre coincide com o conceito biológico de Homo sapiens, nem com o conceito filosófico, que abrange os seres dotados de capacidade de raciocínio e consciência de si. Para o Direito, pessoa é simplesmente um ente capaz de figurar em uma relação jurídica como titular de

430

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1990. p. 148.

431

SINGER, Peter. Libertação animal. Porto Alegre: Lugano, 2004. p. 217. 432

Segundo SINGER, Peter, embora no século IV os combates entre seres humanos tenham sido completamente extintos, os combates entre animais selvagens continuaram na era cristã, ibidem, p. 217-218. Para FONSECA, Luis Anselmo da, esta posição da Igreja tampouco impediu que ela, mesmo na Era Moderna, fosse favorável à escravidão nas Américas, em A escravidão, o

clero e o abolicionismo. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1988. p. 12. 433

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Jurídica, 2001. p. 58. 434

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Os Pensadores). 435

Para KANT, Emmanuel “Uma pessoa é o sujeito cujas ações são suscetíveis de imputação. De onde se conclui que uma pessoa pode ser submetida tão somente às leis que ela mesma se dá (seja a ela sozinha, seja a ela ao mesmo tempo em que a outros)” em Doutrina do direito. São Paulo: Ícone, 1993. p. 37.

faculdades e/ou obrigações.436

A teoria da pessoa jurídica, por exemplo, foi descendente de um fato real que acabou sendo reconhecido pelo Direito mediante a utilização do processo técnico da

personificação,437 já que, no mundo jurídico, para que um ente venha a ter

personalidade, é preciso apenas que incida sobre ele uma norma jurídica que lhe outorgue esse status.438

O antigo Direito romano, por exemplo, não conhecia essa noção abstrata de pessoa jurídica. Quando um patrimônio pertencia a várias pessoas ao mesmo tempo ele não formava uma corporação e cada uma delas era titular de determinada parte desse patrimônio. Somente com o advento do Direito romano clássico é que o Estado passou a ser considerado um ente abstrato: o populus romanus.439

Na Idade Média, porém, com o surgimento das corporações de artes e ofícios na Itália, o processo de industrialização de países como Inglaterra e Alemanha e a

conseqüente expansão do comércio e dos burgos,440 o Estado se viu obrigado a

outorgar personalidade a certos conglomerados que exerciam atividades comerciais e que agiam, não mais no nome individual de seus membros, mas em nome próprio.441

Assim, é preciso destacar que o processo de personificação de entes não humanos foi muito mais uma construção técnica, uma ficção desenvolvida pelos juristas

436

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade humana e moralidade democrática. Brasília: Jurídica, 2001. p. 57. 437

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 165. 438

Segundo MACIEL, Fernando Antonio Barbosa “Tal necessidade emanou da indubitável adequação do direito aos fatos, do mundo jurídico normativo ao mundo fático sociológico, pois que, na vida real, existiam tais unificações de pessoas que não agem mais em nome de cada um de seus membros, mas sim, em nome próprio, desenvolvendo atividades, travando negócios com terceiros, que deveriam ter suas relações regulamentadas e protegidas”, em Capacidade e entes não personificados. Curitiba: Juruá, 2001. p. 42.

439

Segundo Ulpiano, “se deve-se algo a ‘universitas’, não se deve a cada um de seus membros nem o que a ‘universitas’ deve, seus membros devem (si quid universitati debent, singulis non debetur, nec quod debet universitas, singuli debent. Digesto III, 4, 7, 1.) em CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 85.

440

MACIEL, op. cit. p. 41-42. 441

Segundo MACIEL, Fernando A. B. “Temendo a possibilidade da revolução dos fatos contra o direito, o ordenamento jurídico teve que se adequar aos fatos e desenvolver tais conceitos novos, identificando no mundo fático a realidade desses novos entes e personificando-os, através de critérios lógicos da filosofia jurídica e da teoria geral do direito, atribuindo a cada um desses entes características próprias com requisitos individuais”, ibidem, p. 42. Segundo Laurence TRIBE: “Ampliar o círculo dos sujeitos de direito, ou mesmo ampliar a definição de pessoa, eu admito, é simplesmente uma questão de aculturação. Não é uma questão de quebrar coisa alguma, algo como a barreira conceitual do som”, (tradução nossa) em Ten lessons our constitutional experience can teach us about the puzzle of animal rights: the work of Steven M. Wise. Animal Law Review. Boston, p. 3, 2001.

para permitir ao legislador outorgar a determinados grupos sociais ou conjuntos de bens, direitos até então exclusivos dos seres humanos.442

Durante muito tempo autores com Brinz e Bekker refutaram a teoria da pessoa jurídica, sob o argumento de que apenas a pessoa física podia ser sujeito de direito, e que era desnecessária uma construção técnica desse tipo, uma vez que o fenômeno podia muito bem ser explicado pela teoria dos direitos sem sujeito. 443

Bolze e Ihering, por sua vez, argumentavam que eram os próprios associados, considerados em seu conjunto, que se constituíam em sujeitos de direito, enquanto para Planiol e Barthélémy a pessoa jurídica não era nada mais do que uma propriedade coletiva444.

Seja como for, sabemos que a pessoa jurídica é uma mera ficção e não uma realidade, o que permite que instituições públicas ou privadas sejam titulares de determinados direitos conferidos pela lei, tais como o direito ao devido processo legal, à igualdade, o direito de ação, a participação em contratos e a aquisição de bens móveis e imóveis.445

No documento Abolicionismo animal (páginas 124-127)