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EVOLUÇÃO MULTILINEAR DAS IDÉIAS

No documento Abolicionismo animal (páginas 94-99)

3 A L UTA PELOS D IREITOS DOS A NIMAIS

4.1 EVOLUÇÃO MULTILINEAR DAS IDÉIAS

A despeito de a Teoria da Evolução estar na base da biologia moderna, os cursos de filosofia e ciências humanas ainda são ensinados como se Darwin nunca houvesse existido.314

Nas faculdades de direito essa situação é ainda mais grave, pois a maioria dos juristas pensa o direito como uma instituição social destinada única e exclusivamente para o homem, fonte e fim último de todos os valores.315

De fato, Tobias Barreto, já no século XIX, denunciava o profundo isolamento a que a ciência jurídica estava submetida:

O que se quer, e o que importa principalmente, é fazer o direito entrar na corrente da ciência moderna, resumindo, debaixo desta rubrica, os achados mais plausíveis da antropologia darwinica. E isto não é somente uma exigência lógica, é ainda uma necessidade real para o cultivo do direito; porquanto nada há de mais pernicioso às ciências do que mantê-las inteiramente

313

BEVILÁQUA, Clóvis. A fórmula da evolução jurídica. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade do Recife, Recife, p. 3, 1914.

314

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979. p. 21. 315

Para WISE, Steven M. “a idéia de Darwin da evolução pela seleção natural enterrou de vez a idéia de que o mundo é um lugar planejado e governado por regras de hierarquia. Hoje em dia as pessoas mais bem educadas, certamente os cientistas, não acreditam que este seja o universo em que nós vivemos. A ciência voltou atrás, a filosofia tem voltado atrás. Nenhum filósofo, ou provavelmente nenhum filósofo, pensa que é dessa forma que o universo está estruturado. No entanto, o direito tem se mantido o mesmo por mais de 2000 anos. Nossa visão moderna não acredita que o mundo tenha sido divinamente concebido para o uso dos seres humanos. A única profissão que continua a acreditar nisso são os juristas. Nosso direito, seja costumeiro ou legislado, continua imutável. Nós temos um sistema jurídico baseado na cadeia dos seres dentro de um mundo darwiniano”, em The legal status of non human animals. In: ANNUAL CONFERENCE ON ANIMALS AND THE LAW, 5, 1999, New York. Anais… New York: Association of the Bar, 2002. p. 8-9.

isoladas. O isolamento as esteriliza. Como diz um arguto provérbio alemão: as árvores impedem de ver a floresta, ou a demasiada concentração nos detalhes de uma especialidade rouba a vista geral do todo e apaga o sentimento da unidade científica.316

É preciso, antes de tudo, destacar que já houve tentativas de fundamentar os raciocínios éticos a partir da Teoria da Evolução, a exemplo do darwinismo social de Spencer que, inspirado na teoria da sobrevivência dos mais aptos, elevou ao plano da universalidade a idéia da passagem do homogêneo desorganizado para o heterogêneo organizado.317

Com efeito, na tentativa de construir uma ponte entre o orgânico e o social, o darwinismo social concebe a realidade social, especialmente os fenômenos da formação do Estado e do Direito como o resultado de uma luta constante entre as raças e os povos.318

Considerada uma teoria etnocentrista, racista e de estar a serviço do imperialismo colonialista,319 o darwinismo social foi acusado de estimular relações competitivas e agressivas entre os indivíduos e os grupos sociais, na crença de que isto acabaria por torná-los mais aptos e evoluídos.320

A sobrevivência dos mais aptos, porém, nem sempre significa a vitória dos mais agressivos e competitivos, e como destaca Donald Pierson, Darwin foi muito influenciado pelas ciências sociais, e a própria Teoria da Evolução é uma tentativa de projetar o princípio sociológico da “cooperação competidora” no reino biológico.321

Por outro lado, a seleção natural nem sempre representa o aperfeiçoamento da

316

BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Brasília: Senado Federal, 2004, p. 6-7. 317

MACHADO NETO, Antonio L. Sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 58. 318

Ibidem. p. 188. 319

Ibidem. p. 196. 320

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 131. 321

PARK, Robert E. Ecologia humana. In: PEIRSON, Donald. Estudos de ecologia humana. São Paulo: Martins Fontes, 1939. p. 22.

espécie, pois a natureza segue muito mais uma lei proscritiva do tipo “o que não é proibido é permitido”, do que uma lei prescritiva do tipo “o que não é permitido é proibido”, de modo que as mudanças muitas vezes não ocorrem de forma gradual, mas através de saltos repentinos.322

Segundo Francisco Varela, o caminho da otimização através da evolução controlada pela seleção natural nem sempre permite uma “adaptação ótima”, capaz de determinar a evolução orgânica dos indivíduos, uma vez que a seleção natural estabelece apenas condições mínimas a partir das quais vários caminhos podem ser seguidos.323

Na sociologia as teorias evolucionistas da complexificação e da especialização das relações sociais demonstram que o crescente aumento do número de papéis e de instituições sociais tem permitido a adaptação da sociedade a novos fatos decorrentes de fenômenos naturais ou históricos. O esgotamento de determinados recursos naturais, por exemplo, pode ensejar mudanças nos hábitos de consumo, contribuindo até mesmo para constituir novos sistemas de parentesco.324

Acontece que o antigo modelo de evolucionismo social já está superado, e hoje se sabe que não existe evolução linear entre as sociedades ou culturas. O atual modelo de sociedade industrial, moderna, ocidental, por exemplo, não é um estágio pelo qual todo processo de complexificação e diferenciação social devam passar.

Segundo a Teoria da Evolução multilinear, não existe nenhuma evidência histórica de que as sociedades passem necessariamente pelas mesmas fases,325 da

322

Para VARELA, Francisco “Não é uma questão de sobrevivência do mais apto, é uma questão de sobrevivência da adaptação. Não é a otimização o ponto central, mas a preservação da adaptação: um traçado de mudanças estruturais de uma linhagem que seja congruente com as mudanças em seu meio ambiente”, em O caminhar faz a trilha. In: THOMPSON, William Irwing (Org.).

Gaia: uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia, 2000. p. 53. 323

VARELA, loc. cit. 324

LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito e transformação social: ensaio interdisciplinar das mudanças no direito. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997. p. 65.

325

mesma forma que a evolução natural não segue um caminho linear. A diversificação das espécies, assim como das sociedades, podem desenvolver-se em várias direções.326

No mundo jurídico o método hermenêutico teleológico evolutivo de Jhering, por exemplo, tem como ponto de partida a idéia de que a ciência jurídica não deve se restringir a uma simples pesquisa de fontes, tal como fazia a Escola Histórica, mas se adaptar criativamente à nova práxis jurídica, levando sempre em consideração a mutabilidade dos “valores sociais”.327

Assim, a teoria há de estar sempre atenta ao direito positivo efetivamente existente, afastando-se de toda forma de idealismo, de modo que o seu objetivo seja sempre o desenvolvimento da vida. Nos casos de conflito entre a teoria e a práxis esta última deve prevalecer.328

Em 1976, o zoólogo neodarwinista Richard Dawkins publicou a instigante obra denominada O gene egoísta, em que afirma que assim como os dentes, as garras e as vísceras ofereceram uma grande “vantagem biológica” aos carnívoros, a evolução pela seleção natural produziu homens com cérebros avantajados que lhes permitiram o desenvolvimento de idéias abstratas, e que isto acabou por produzir um novo modelo de evolução.329

Para Dawkins, esse novo modelo evolutivo tem como ponto de partida o meme,

diferenciações de papéis sociais, sistemas políticos, técnicas etc. No entanto, nunca deu passos que o Ocidente havia dado por força da Revolução Industrial e da Revolução Francesa", em Direito e transformação social: ensaio interdisciplinar das mudanças no direito. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1997. p. 67-68.

326

Para VARELA, Francisco, a seleção natural não é nada mais do que uma lei proscritiva, do tipo “tudo que não está proibido, está permitido”: as espécies permanecem muito tempo em êxtase evolutivo, e mudam, não de forma gradualista, mas através de saltos repentinos, em O caminhar faz a trilha. In: THOMPSON, William Irwing (Org.). Gaia: uma teoria do conhecimento. São Paulo: Gaia, 2000. p. 53.

327

ADEODATO, João Maurício L. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 164-166. 328

Ibidem. p. 172. 329

Para DAWKINS, Richard “Da mesma forma como os genes se propagam no 'fundo' pulando de corpo para corpo através dos espermatozóides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se no 'fundo' de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação”, em O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979. p. 214.

que de forma análoga ao gene é uma unidade cultural replicadora que luta para se disseminar por um maior número possível de mentes, perpetuando-se assim entre as gerações futuras.330

Assim como ocorre com os genes, um meme (uma melodia, um poema, uma idéia) não terá qualquer chance de sucesso se não for dotado de um “elevado valor de sobrevivência”, o que significa ter uma forte atração psicológica por oferecer respostas plausíveis para determinadas questões culturais.331

As idéias abolicionistas em relação aos animais, no entanto, começam a ganhar força na doutrina e jurisprudência brasileira, justamente num momento em que os nossos juristas começam a se afastar do formalismo, que tem como ponto de partida a crença de que existe uma autonomia absoluta do mundo jurídico em relação ao mundo social, com a História do direito se confundindo com a história do desenvolvimento interno dos seus próprios conceitos e métodos.332

No formalismo, o direito é visto como um sistema fechado e autônomo que se desenvolve a partir de uma “dinâmica interna”, a exemplo do purismo kelseniano que entende que o direito se fundamenta no próprio direito.333

Ao lado do formalismo, porém, sempre existiram abordagens instrumentalistas, como as de Althusser e Lassalle, para quem o direito, reflexo direto das relações de força existentes na sociedade reflexo direto das relações de força existentes na sociedade, é um simples instrumento cultural a serviço dos grupos dominantes.334

Para Bourdieu, tanto esse formalismo quando o instrumentalismo ignoram que

330

Em sua obra, DAWKINS, Richard explica: “ 'Mimene' provém de uma raiz grega, mas quero um monossílabo que soe um pouco como 'gene'. Espero que meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode- se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada a 'memória', ou à palavra francesa même”, em O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1979. p. 214.

331

Segundo DAWKINS, Richard o meme é como um vírus em busca de um hospedeiro, e este hospedeiro é a memória humana, ibidem, p. 215.

332

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. p. 223. 333

BOURDIEU, loc. cit. 334

o direito é na verdade um universo relativamente imune às pressões externas, pois as suas práticas e discursos são duplamente determinados por relações de força específicas (conflitos de competência) e pela lógica interna das obras jurídicas, onde são delimitados os espaços dos possíveis e o universo das soluções propriamente jurídicas.335

No documento Abolicionismo animal (páginas 94-99)