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PERSONALIDADE JURÍDICA PROCESSUAL

No documento Abolicionismo animal (páginas 134-141)

5 F UNDAMENTOS J URÍDICOS DO A BOLICIONISMO A NIMAL

5.5 PERSONALIDADE JURÍDICA PROCESSUAL

Se em relação aos grandes primatas a questão pode ser resolvida através de uma interpretação analítica que estenda o conceito de pessoa física para conceder-lhes direitos humanos compatíveis com essas espécies, em relação às demais – ainda que muitas delas possam ser incluídas no conceito de pessoa (por exemplo, os animais domésticos) – é preciso encontrar outro fundamento.

Inicialmente, é preciso ter em mente que o conceito de sujeito de direito é mais amplo que o de personalidade jurídica sendo possível, mesmo, afirmar que exista uma tendência do direito moderno a conferir direitos subjetivos mesmo para entes destituídos de personalidade jurídica. É que determinados entes se constituem em centros de relações jurídicas que, na prática, adquirem e exercem direitos e obrigações, a exemplo dos condomínios, fundações, massas falidas, heranças jacentes etc. (CPC, art. 12, incs. III-V, VII e IX).

Para Cândido Dinamarco, nesses casos, o direito confere uma personalidade exclusivamente para fins processuais, concedendo a esses entes a capacidade de serem titulares de determinadas situações jurídicas, tal como ocorre com o nascituro, o

nondum conceptus, mas também com as igrejas, unidades indígenas, grupos tribais e

famílias.

Com efeito, há muito que o direito processual já ultrapassou a necessidade de identificação entre sujeito de direito e a personalidade jurídica, conferindo “personalidade processual” e entes que, mesmo destituídos de personalidade jurídica, são admitidos em juízo na condição de sujeitos de direito.

humanos para os grandes primatas, por considerá-los integrantes do conceito de humanidade, encontra sérias dificuldades entre os defensores do direito animal. Para muitos esta posição é especista, pois mantém as espécies não humanas destituídas de status jurídico.

Pode ser resolvida através da extensão do conceito de pessoa física para conceder-lhes os direitos humanos compatíveis com a capacidade dessas espécies, em relação às demais espécies ņ ainda que muitas delas possam ser incluídas no conceito de pessoa (por exemplo, os animais domésticos) ņ é preciso encontrar um outro fundamento.

Para David Favre, professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Michigan, o movimento pelos direitos dos animais prescinde do conceito de personalidade jurídica, já que os animais podem muito bem ser considerados uma categoria especial de propriedade.465

Tendo como ponto de partida o fato de os animais não serem nem humanos nem objetos inanimados, Favre entende que o direito deve ultrapassar os institutos jurídicos aparentemente inconciliáveis da propriedade e da pessoa jurídica, e conceder aos animais um status jurídico semelhante ao dos escravos do início do século XIX nos EUA, que embora não fossem titulares de direitos subjetivos, recebiam uma proteção jurídica especial.466

Trata-se de um novo uso do conceito jurídico de propriedade, que faz do uso de uma nova interpretação da divisão do Common Law, entre os componentes legais e eqüitativos. Nessa concepção o proprietário mantém o seu direito sobre o animal, mas transfere ao próprio animal o título eqüitativo daquela propriedade, criando assim uma

465

FAVRE, David; LORING, Murray. Animal law. Connecticut: Quorum Books, 1983. p. 2. 466

nova e limitada forma de propriedade animal: a autopropriedade eqüitativa.467

O autor utiliza como modelo um instituto muito comum ao sistema norte- americano, o trust, em que uma pessoa ou instituição assume a responsabilidade legal pela propriedade de outra, mas não pode considerar a propriedade como sua, mas apenas administrá-la no melhor interesse do beneficiário, que pode não ser a pessoa que criou o trust, como no caso de um pai constituir trust para administrar o patrimônio de seu filho.468

Nesse modelo proposto por Favre, o proprietário assume a posição semelhante a de um guardião dos interesses dos animais, representando-os judicial ou extra- judicialmente.

Gary Francione, no entanto, adverte que o instituto da guarda de animais pode ensejar alguns problemas, pois nem sempre o guardião vai agir no interesse do animal ņ muitas vezes vai fazê-lo no interesse próprio ņ mesmo que isto cause dor ou sofrimento aos animais.469

Se levarmos a sério o direito brasileiro, temos de admitir que o status jurídico dos animais já se encontra a meio caminho entre a propriedade e personalidade jurídica,470 uma vez que a Constituição expressamente os desvincula da perspectiva

ecológica para considerá-los sob o enfoque ético,471 proibindo práticas que os

467

FAVRE, David. Equitable self-ownership for animals. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, Revista dos Tribunais, a. 8, n. 29, p. 25, jan./mar., 2003.

468

O direito lentamente deslocou-se do rei que tinha o controle primário sobre o uso e o título da terra para o indivíduo particular (lordes e cavaleiros) que passou a ter o controle direto. Após a Lei Quia Emptores (1290), o direito inglês sobre a terra começou a tomar uma forma que nos conhecemos hoje em dia, com os indivíduos podendo fazer uma transferência inter vivos do interesses da terra sem necessidade da permissão do rei ou soberano. Desde então, se desenvolveu um conjunto separado de normas relacionadas ao uso e posse da terra, articuladas e implementadas pelos representantes do rei, não pelos tribunais, as quais ficaram conhecidas como normas de equidade, em FAVRE, loc. cit (Tradução nossa).

469

FRANCIONE, Gary L. Personhood, property and legal competence. In: CAVALIERI, Paola; SINGER, Peter (Eds.). The great ape

project: equality beyond humanity. New York: St. Martin’s Press, 1993. p. 255. 470

BARTLETT, Steve J. Roots of human resistance to animal rights: psychological and conceptual blocks. Animal Law. Oregon, p. 147-148, 2002.

471

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2004. p. 127-128. Cf. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 1. Para assegurar a efetividade desse direito, incube ao Poder Público: VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

submetam à crueldade.

“Pessoa”, salienta Danielle Rodrigues, é apenas um conceito operacional do direito, que não implica apenas na idéia de homem, mas na capacidade de ser titular de direito e/ou deveres, de modo que os animais podem muito bem ser substituídos processualmente pelo Ministério Público.472

De fato, Kant já alertava que na relação pai e filho, da mesma forma que na do senhor com o escravo, ocorre um tipo especial de relação jurídica, onde o titular exerce um direito pessoal real, uma vez que os pais não podem se prevalecer unicamente do dever dos filhos para fazê-los retornar à sua guarda quando eles se afastam, estando autorizados a recolhê-los e dominá-los como se fossem um objeto, o mesmo se dando com os animais que fogem do domínio de seu proprietário.473

Para Laurence Tribe, nada impede que um ente possa ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de direito, uma vez que isso já ocorre com as sociedades comerciais, que ao mesmo tempo em que são titulares de direitos e obrigações, podem ser objeto de negócios jurídicos por integrarem o patrimônio de seus sócios ou proprietários.474

O conceito de direito subjetivo está conectado ao conceito de licitude, enquanto possibilidade jurídica de agir nos limites da lei para a satisfação dos próprios interesses, e ao de faculdade, que é o poder do titular do direito subjetivo de exigir, judicial ou extra-judicialmente, uma ação ou uma omissão de quem deve praticá-la ou abster-se.475

Todo direito subjetivo implica uma posição de vantagem para o seu titular, que passa a ter a prerrogativa de exigir em juízo o cumprimento dos deveres que lhes são correlatos.

472

RODRIGUES, Danielle Tetü. O direito e os animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 1. ed. 4. tir. Curitiba: Juruá, 2006. p. 126-127.

473

KANT, Emmanuel. Doutrina do direito. São Paulo: Ícone, 1993. p. 111-112. 474

TRIBE, Laurence H. Ten lessons our constitutional experience can teach us about the puzzle of animal rights: the work of Steven M. Wise. Animal Law Review. Boston, p. 3, 2001.

475

A todo direito subjetivo corresponde a faculdade de exigir de outrem uma prestação, e a toda prestação corresponde uma ação, que é a faculdade de pleitear a prestação jurisdicional do Estado, de modo que a capacidade de ser parte em juízo é o mais importante poder que um ente jurídico possui.

No entanto, nem todo sujeito de direito esta apto a exercer seus direitos diretamente ou a praticar atos da vida civil. Segundo Alf Ross, quando as figuras do titular do direito e da faculdade de fazer valer esse direito coincidem, estamos diante de uma situação típica, mas quando isto não ocorre, estamos diante de uma situação atípica, como nos casos em que o sujeito não pode exercer diretamente esses direitos, por não ter capacidade de fato ou de exercício.476

Com efeito, a capacidade de ser sujeito de relações jurídicas difere da capacidade de exercer direitos, pois muitas vezes o titular de um direito não pode exercê-lo diretamente, mas somente através de um representante legal, que assume os encargos em nome do representado e com o patrimônio deste.

É que a capacidade de fato consiste no pleno exercício da personalidade, pois somente o indivíduo plenamente capaz pode praticar certos atos jurídicos sem a necessidade de ser assistido ou representado por alguém.477

Essa capacidade pode ser negocial ou delitual, a primeira é a aptidão para celebrar negócios jurídicos e a segunda é a possibilidade de o indivíduo ser responsabilizado criminalmente pelos seus atos.

Seja como for, a capacidade de direito é a capacidade de ser sujeito de

476

ROSS, Alf. Direito e justiça. São Paulo: Edipro, 2000. p. 209. 477

Na legislação brasileira são absolutamente incapazes de exercer diretamente os atos da vida civil os menores de 16 anos, os deficientes mentais e aqueles que não puderem exprimir a sua vontade (art. 3º do CC), e relativamente incapazes os maiores de 16 e menores de 18 anos, os ébrios, adictos, alguns tipos de deficientes mentais e os pródigos (art.4º do CC). BRASIL. Código civil. São Paulo: Saraiva, 2005.

direito,478 enquanto a capacidade de fato é, ao mesmo tempo, o pleno exercício da personalidade e o potencial de agir dentro dos limites da lei, sem depender de outros para fazê-lo,479 o que permite ao indivíduo praticar atos-fatos jurídicos, atos jurídicos

stricto sensu, manifestar uma vontade capaz de ingressar no mundo do direito como um

negócio jurídico (capacidade negocial), mas também praticar atos ilícitos em geral.480 João Maurício Adeodato, por exemplo, entende que essa divisão entre capacidade de fato e capacidade de exercício é mais uma daquelas teorias que servem apenas para tornar o direito mais cerebrino, e propõe que os conceitos de personalidade e capacidade jurídica sejam considerados equivalentes, ainda que isso não implique a capacidade do sujeito em praticar todo e qualquer ato, mas apenas os que forem admitidos pelo direito.481

A vantagem dessa teoria seria a eliminação da distinção entre capacidade de direito e capacidade de fato, o que nos permitiria trabalhar apenas com os conceitos de personalidade jurídica (aptidão para contrair direitos e deveres) e capacidade jurídica (aptidão para agir efetivamente como sujeito de direito).482

Mesmo porque, quando se trata do exercício de direitos da personalidade, essa distinção se torna ainda mais problemática, uma vez que esses direitos não podem ser exercidos por outro que não o próprio titular, principalmente porque o exercício do direito à vida e à liberdade não implicam em discernimento ou qualquer tomada de posição.483

Na verdade, os únicos conceitos que importam são o de sujeito de direito e o de

478

O art. 2 do antigo Código Civil dispunha: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. BRASIL. Código civil. São Paulo: Saraiva, 2000.

479

MACIEL, Fernando A. B. Capacidade e entes não personificados. Curitiba: Juruá, 2001. p. 49. 480

MIRANDA. Francisco C. P. de. Comentários ao código de processo civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. t. 1, p. 211. 481

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 177. 482

ADEODATO, loc. cit. 483

capacidade jurídica, e as situações atípicas demonstram claramente que a objeção a

que os animais possam ser sujeitos de direito ņ por não serem moralmente

responsáveis ņ é inconsistente, uma vez que isto já ocorre com os nascituros, as crianças e os deficientes mentais.484

A ação judicial, por sua vez, é um dos principais instrumentos para o exercício de direitos, e embora seja facultativa, em alguns casos ela se torna obrigatória, quando se tratar, por exemplo, de um direito outorgado em proveito de outras pessoas, como no caso dos incapazes. O direito de ação, portanto, é a capacidade do sujeito de direito de intervir diretamente na produção de uma decisão judicial para condenar o réu a cumprir um dever ou obrigação.485

Assim, para ingressar em juízo visando à condenação do réu ao cumprimento de seu dever, ou à reparação do dano, o autor precisa, inicialmente, preencher alguns pressupostos ou requisitos de constituição e desenvolvimento regular do processo, como a capacidade civil, a representação por advogado, a competência do juízo, a petição inicial não inepta, a citação etc., pois a ausência de qualquer destes, ou impede a instauração da relação processual, ou torna nulo o processo.

A capacidade de ser parte, por exemplo, é uma aptidão genérica outorgada às pessoas físicas ou jurídicas, mas também a entes jurídicos despersonalizados para o exercício de uma pretensão à tutela jurídica, constituindo-se num pressuposto para que o sujeito possa figurar numa relação jurídica processual como autor, réu ou terceiro interessado.

Para Marcos Bernardes de Mello, a capacidade de ser parte independe, tanto da capacidade de exercício, quanto da capacidade processual, ou da legitimidade ad

484

TRIBE, Laurence H. Ten lessons our constitutional experience can teach us about the puzzle of animal rights: the work of Steven M. Wise. Animal Law Review, Boston, p. 3, 2001.

485

causam, pois embora se refira à matéria processual, ela tem natureza de direito

material, por tratar-se de uma questão pré-processual, isto é, de um pressuposto para a proteção da jurisdição estatal.486

Há muito que o direito processual admite que alguns sujeitos de direito não- personalizados tenham capacidade de ser parte para defender interesses inerentes à sua existência ou expressamente autorizados por lei, posto dotados de personalidade judiciária ou processual. 487

No documento Abolicionismo animal (páginas 134-141)