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3.4 A Metáfora da Escada

3.4.2 Projetando a Vontade Sobre a Totalidade

3.4.2.2 Anseio

Pois bem, a existência do mundo é uma impressionante e grandiosa maravilha, porém, mesmo em sua plenitude, o mundo é limitado. Este mundo que, em tese, pode ser completamente descrito pelas ciências naturais (cf. TLP, 4.11) é incompleto ou, no mínimo, algo que deixa o sujeito com um sentimento de incompletude: “A intuição [Anschauung] do mundo sub specie aeterni é sua intuição como totalidade – limitada. O sentimento do mundo como totalidade limitada é o sentimento místico” (TLP, 6.45). Para avançarmos, se faz necessário algum esclarecimento sobre o termo “sub specie aeterni”. A noção de ver as coisas sob a perspectiva da eternidade não é de simples compreensão. No TLP, o termo aparece somente neste aforismo que acabamos de citar. Nos Notebooks, no entanto, Wittgenstein faz um comentário um pouco mais longo sobre o tema:

A obra de arte é o objeto visto sub specie aeternitatis e a vida boa é o mundo visto sub specie aeternitatis. Tal é a conexão entre arte e ética. O modo habitual de observação vê os objetos como que a partir de seu meio, a contemplação [Betrachtung] sub specie aeternitatis, a partir de fora.

De tal modo que eles têm o mundo inteiro como plano de fundo.

Será que essa consideração, porventura, vê o objeto com espaço e tempo, ao invés de no espaço e tempo?

Cada coisa condiciona todo o mundo lógico, todo o espaço lógico, por assim dizer.

(Impõe-se ao pensamento): a coisa vista sub specie aeternitatis é a coisa vista com todo o espaço lógico. (NB, 07/10/1916)

Como a maioria dos comentários dos Notebooks o excerto é denso e difícil. Com o decorrer da exposição esperamos esclarecer todos os

pontos ligados a ele e que possuam relação com nosso tema. Por ora, é producente enfatizarmos o paralelo traçado por Wittgenstein entre o “modo habitual de observação” e a “contemplação sub specie aeternitatis”. Parece claro que é o sujeito empírico quem observa os objetos estando no meio deles. Meu corpo e os componentes psíquicos que formam os pensamentos, são combinações de objetos da mesma maneira que a cadeira, a mesa, o computador ou tudo o mais que está no mundo. O sujeito empírico é um fato entre fatos e é por isso que, em sua forma comum de observação, ele vê os objetos estando inserido entre eles. Como discutimos, coisas entre coisas são valorativamente insignificantes. Esta pluralidade factual, vista espaço-temporalmente, nos mostra apenas o como do mundo, mas sabemos que, segundo o filósofo, o Místico não é como o mundo é, mas que ele é. A contemplação sub specie aeternitatis, por sua vez, vê os objetos a partir de fora, “com o espaço e o tempo, e não no espaço e tempo”. Aqui quem “olha” para os objetos é o sujeito metafísico. A substância do mundo é vista na sua totalidade e o mundo atual é apenas uma das infinitas configurações do espaço, que neste âmbito, é um espaço lógico contendo as possibilidades combinatórias dos objetos. Como observa Dall’Agnol (cf. 2005, p.90), a contemplação sub specie aeterni não é suficiente para o sentimento místico, dado que a experiência lógica também é uma intuição do mundo sub specie aeterni. Mesmo não sendo suficiente, no entanto, ela é necessária ao sentimento místico tal qual descrito no TLP. Na experiência lógica o sujeito toma consciência da eterna e necessária subsistência dos objetos. Além disso, percebe a necessidade de um sujeito não empírico que conecta as partes da substância do mundo com as partes da linguagem. Nestes degraus lógicos da escada do TLP, já ocorre a intuição sub specie aeterni. Subindo um pouco, como visto, o sujeito contempla a totalidade ao invés das partes que precisam ser nomeadas e sente-se assombrado perante tão grandioso e misterioso ser. Este foi o primeiro sentimento místico que discutimos. Agora, um degrau acima, o sujeito sente que este ser, mesmo em sua maravilhosa imponência, é limitado e incompleto. Um sentimento de anseio toma conta do sujeito.

De acordo com Max Black (cf. 1964, p.373), o sentimento místico de que o mundo é uma totalidade limitada implica um sentimento de que deve existir algo além do mundo44. Isto parece correto, como mostra a

exposição a seguir. Percebam que a ciência tem um papel negativo

44 No mesmo comentário, no entanto, Black argumenta que os aforismos do TLP que tratam do Místico são hesitantes e equívocos. Discutiremos estes argumentos mais a frente.

importante relacionado com o sentimento místico de anseio. Para Wittgenstein, o limite da ciência ou a sua incapacidade de explicar algumas coisas, é uma pista da existência do indizível, conforme vemos nestas passagens: “o impulso para o místico provém da insatisfação dos nossos desejos mediante a ciência” (NB, 25/05/1915); “Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados.” (TLP, 6.52). Esta ideia é comum em escritos sobre religião (cf. p. ex. LEWIS, 2009, p.31). Perguntas como: “por que tudo isso existe?” ou “há algo de alguma outra espécie ‘por detrás’destes fatos que a ciência descreve?” não são questões científicas. Aliás, Wittgenstein diria que não são questões de nenhum tipo, dado que nenhuma resposta linguisticamente significativa pode ser dada. Tais questões, mais apropriadamente, mostram a esfera valorativa da realidade, esfera esta que o místico tractatiano consegue intuir ou sentir, quando vê o mundo orientado pelos aforismos do TLP.

Vamos esclarecer melhor. A lógica tractatiana nos mostra que, ao menos em tese, a ciência pode elaborar um discurso contendo o conjunto de todas as proposições verdadeiras (cf. TLP, 4.11). Este discurso seria uma figuração exata do mundo. Porém, mesmo diante desta extraordinária teoria científica que descreveria com detalhes a totalidade dos fatos do mundo, Wittgenstein nos diz que muito pouco foi obtido (cf. TLP, Prefácio, p.133; TLP, 6.52). Apresentando o mesmo ponto sob outra perspectiva, pensemos no caso limite em que o sujeito metafísico conseguisse percorrer toda a realidade, nomeando todos os objetos e verificando o valor de verdade de todas as proposições elementares. Após essa verificação, o sujeito conheceria todas as proposições verdadeiras, e, consequentemente, saberia exatamente como o mundo em sua totalidade está configurado. Ora, mesmo neste momento em que o mundo inteiro seria conhecido, o sujeito poderia ainda perguntar: “Mas e agora? Qual o sentido disso tudo?”. De tal modo, mesmo se a ciência conseguisse responder todas as questões que lhe cabem, o problema do sentido da vida ainda permaneceria. O problema não é sequer tocado quando consideramos a hipótese de um discurso que figure o mundo factual de forma exata. A tarefa das ciências é lidar com os fatos e descrevê-los da forma mais correta possível, porém “os fatos fazem todos parte apenas do problema, e não da solução” (TLP, 6.4321). Em consonância com esta ideia, Wittgenstein sustenta que o sentido do mundo deve estar fora dele. Além disso, nos Notebooks lemos que o sentido do mundo e da vida pode ser chamado de Deus. Como Deus não se revela no mundo, impossibilitando qualquer tipo de linguagem teológica significativa, poderíamos dizer que o termo “Deus” é compreendido como uma

realidade não factual que dá sentido à vida. No sentimento místico que temos chamado de anseio, esta realidade valorativa mostra-se de forma negativa. De tal modo, o contato com Deus não ocorreria somente em uma (suposta?) vida após a morte, mas seria algo que poderíamos sentir já agora, na ausência de Deus. Se quisermos, poderíamos chamar a intuição da presença mística de Deus de contato por inversão. É claro que, como diz Klein (2007, p.10), este é um tipo de ausência que se faz sentir como ausência. “O sentimento do mundo como totalidade limitada é o sentimento místico” (TLP, 6.45). O mundo que a ciência nos entrega é incompleto, pois o anseio permanece. Anseio por algo que dê sentido a essa totalidade factual.

É útil lembrar que já apresentamos a justificativa de Wittgenstein para a ideia de que o sentido da vida está fora do mundo. A discussão surgiu quando traçávamos o paralelo entre Deus e lógica. O núcleo do argumento, como visto, estava relacionado com o fato de que ocorre um regresso ao infinito de contingências no caso de supormos que o sentido da vida seja um fato entre fatos. Também já foi discutida a questão da impossibilidade de figurar proposicionalmente o problema do sentido da vida. O que fizemos foi apresentar algumas situações, elucidações úteis, na esperança de que o problema mostre a si mesmo. Esta estratégia, por sinal, é similar àquela que o próprio Wittgenstein aplica por várias vezes, por exemplo, no início da CSE, quando expõe sobre a definição de ética. Ilustrativamente, para que o ponto fique mais claro, podemos neste momento recorrer a mais uma imagem, pensando agora em uma metáfora de Pascal. Pensemos, por exemplo, que a existência humana esteja em uma situação análoga àquela de um homem que foi levado inconsciente a uma ilha deserta e aterrorizante. Ao despertar ele se desespera, não sabe onde está, como chegou até aí e como fazer para escapar. Da mesma maneira que o náufrago, o homem está abandonado a si mesmo, e “como que perdido neste recanto do universo, sem saber quem o pôs aqui, o que veio fazer, o que se tornará ao morrer [...]. Me admiro como não se entra em desespero por tão miserável estado.” (PASCAL, Pensamentos, art.VI, I). Seguindo nesta analogia, o mais desesperador para o náufrago não é um ou alguns fatos específicos ameaçadores ou perigosos na ilha, mas sim a totalidade da situação vivencial na qual ele está inserido. O objeto de espanto não é um elemento do mundo, mas o mundo como um todo. O âmbito valorativo deve estar fora disto tudo, dado que a única coisa que atingimos dele, independente do que seja feito, é um sentimento de ausência e anseio. É importante relembrar estas nossas discussões anteriores, para que a nossa estratégia argumentativa se esclareça ainda mais. Para compreendermos a “teologia” de Wittgenstein foi traçado, em

primeiro lugar, um paralelo entre lógica e Deus. O que estamos fazendo agora é apresentar de que formas Deus se mostra quando subimos pela “escada” do TLP. Primeiramente ele se mostrou pelo assombro e maravilha diante da existência do mundo. Agora ele se mostra, negativamente, no sentimento do mundo como um todo limitado.

Pois bem, neste momento, um cético poderia rejeitar a estranha inferência que tenta provar a existência de Deus, partindo da ausência de Deus. Ora, obviamente o cético estaria justificado nesta rejeição. Porém, o intuito de Wittgenstein não é provar a existência de Deus. Muito menos é sua intenção nos deixar apenas com um sentimento de privação. Ao invés disso, o que ele quer é nos levar a um ponto no qual o mundo possa ser visto corretamente (cf. TLP, 6.54). Dessa forma, neste contexto em específico, o que está em jogo é a ideia de que a cosmovisão tractatiana esboça Deus de forma negativa. No mundo nós temos apenas fatos, contingências, em suma, tudo aquilo que é não-Deus. Sob esta perspectiva, este sentimento de anseio seria uma das formas em que a relação do sujeito com a divindade seria mostrada. Também é neste contexto, segundo penso, que se mostraria de forma mais contundente aquilo que Wittgenstein chamava de “a necessidade humana de ir ‘além do mundo’ e de lançar-se contra os limites da linguagem” (cf. CSE, p.224; WCV, p.104). Contudo, devemos estar cientes de que este sentimento de ausência só é possível dentro de um campo de expectativa, ou, como dito, este é um tipo de ausência que se faz sentir como ausência. Segundo Klein:

Ninguém dirá que um parpergestack amarelo está ausente do mundo, porque, [...] nenhum nexo linguístico é relacionado com este conceito. Se Deus é profundamente ausente do mundo, só pode ser porque o tecido linguístico que forma o mundo está profundamente informado pelo conceito de Deus. (KLEIN, 2007, p.11)

Não é qualquer ausência que está em questão, mas sim uma percepção profunda de que aquilo que dá sentido à vida não está presente no mundo factual. Sob a luz de uma anotação de outro período da obra de Wittgenstein, a ideia de Klein torna-se bem plausível. Observem este excerto de Cultura e Valor: “O inexprimível - o que considero misterioso e não sou capaz de exprimir - talvez seja o pano de fundo a partir do qual recebe sentido seja o que for que eu possa exprimir” (CV, p.33). Aqui o filósofo é bem claro em relação à existência de uma esfera indizível e

valorativa que daria sentido ao âmbito dizível. Apesar de tudo isso, porém, o termo “Deus” pode ocasionar estranheza em alguns leitores. No entanto, o fato é que Wittgenstein utiliza o termo em diversas passagens, como temos visto. Um exemplo producente ligado à nossa exposição atual seria este:

Crer num Deus significa compreender a questão do sentido da vida.

Crer num Deus significa perceber que ainda nem tudo está decidido com os fatos do mundo. Crer em Deus significa perceber que a vida tem um sentido. (NB, 08/07/1916)

Segundo penso, este trecho dos Notebooks expressa com outras palavras o aforismo do TLP que nos ocupa no momento, a saber: “A intuição do mundo sub specie aeterni é sua intuição como totalidade – limitada. O sentimento do mundo como totalidade limitada é o sentimento místico” (TLP, 6.45). A diferença é que enquanto no TLP Wittgenstein é muito mais recatado sobre o tema teológico, utilizando primordialmente uma estratégia negativa, nos Notebooks ele arrisca algumas falas positivas sobre Deus. Vejam que está em questão uma relação necessária entre Deus e o sentido da vida e também a ideia de que é preciso de alguma maneira transcender os fatos do mundo para que este sentido seja alcançado.

Antes de apresentarmos as outras experiências precisaremos discutir um assunto tratado por Max Black. Apesar de concordarmos em muitos pontos com a interpretação de Black, (como se pode ver acima), não compactuamos com ele a ideia de que os aforismos do TLP que tratam do Místico sejam hesitantes e equívocos. Segundo o comentarista (cf. 1964, p.374), enquanto o aforismo 6.522 afirma a existência de uma esfera mística que se mostra, os aforismos 6.5, 6.51 e 6.52, revelam que as tentativas de dizer ou mesmo mostrar esta esfera resultariam em meros absurdos. Assim, encontraríamos no TLP, tanto a ideia de que há um Místico que se mostra, quanto a ideia de que é um absurdo pensarmos que há um Místico que se mostra. Ou seja, este trecho:

Há por certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico. (TLP, 6.522)

Para uma resposta que não se pode formular, tampouco se pode formular a questão.

O enigma não existe.

Se uma questão se pode em geral levantar, a ela também se pode responder. (TLP, 6.5)

O ceticismo não é irrefutável, mas manifestamente um contra-senso, se pretende duvidar onde não se pode perguntar.

Pois só pode existir dúvida onde existe uma pergunta; uma pergunta, só onde exista uma resposta; e esta, só onde algo possa, ser dito. (TLP, 6.51)

Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente esta. (TLP, 6.52)

Tentarei mostrar que estes trechos são compatíveis, não existindo nenhuma tensão entre eles, como pensava Black. Pois bem, o aforismo 6.522 é bem claro e direto; nele Wittgenstein afirma a existência de um âmbito místico que não pode ser figurado proposicionalmente, isto é, não pode ser dito, porém mostra a si mesmo quando compreendemos o mundo da forma correta. Ora, é justamente isto que discutimos no paralelo traçado entre Deus e lógica e também na exposição dos sentimentos de assombro e anseio. Portanto, o tema está em alguma medida esclarecido45,

e assim podemos nos concentrar no bloco de aforismos que supostamente estaria em contradição com o 6.522. Black é um pouco rápido e não muito claro ao tratar deste assunto, mas é plausível supormos que ele pensa da seguinte forma. Percebam que é comum aos três aforismos a ideia do que seria uma, digamos, pergunta legítima ou questão legítima. Uma pergunta ou questão legítima seria aquela cuja resposta é possível. Perguntas cujas respostas são impossíveis seriam pseudo-perguntas ou questões ilegítimas. A categoria modal neste contexto não é utilizada de maneira empírica, mas sim lógica, ou seja, a impossibilidade não diz respeito a ignorância daquele que se depara com a pergunta ou com a falta acidental ou provisória de meios capazes de propiciar a resposta. Um exemplo conhecido, (utilizado em outro contexto teórico e talvez ultrapassado)

45 Teremos ainda mais coisas a dizer sobre o assunto no momento em que discutirmos o “sentimento de segurança absoluta” e o “sentimento de culpa”, mencionados por Wittgenstein na CSE.

seria a pergunta: “existem montanhas no lado oculto da lua?” (cf. AYER, 1946, p.12). Vemos que a impossibilidade de resposta para essa questão, se houver, seria apenas contingente, dado que poderíamos construir um foguete, um satélite, ou o que quer que seja, para obtermos a resposta. Assim, no jargão tractatiano, diríamos que a pergunta do exemplo é legítima, pois tanto a resposta positiva – “sim, existem montanhas no lado oculto da lua” – quanto a negativa – “não existem montanhas no lado oculto da lua” – seriam proposições com sentido, isto é, afiguram fatos que podem ser o caso no mundo. Podemos isolar esta conclusão da seguinte forma:

Perguntas (ou questões) legítimas são aquelas (e somente aquelas) cujas respostas são proposições com sentido.

Nesta conjuntura, pseudo-questões seriam apenas junções de palavras que se assemelham a perguntas legítimas em sua gramática superficial, porém é logicamente impossível apresentar qualquer proposição significativa como resposta. Pseudo-questões não são mais do que confusões linguísticas e a forma de “responde-las” seria desfazendo a confusão. Se alguém pergunta, por exemplo, “Qual a cor do Mi bemol?” o que deve ser feito é um esclarecimento lógico-semântico mostrando que há um equívoco na formulação da frase, neste caso, a pressuposição errada de que o “Mi bemol” seja um objeto capaz de possuir alguma propriedade visual. Baseado no aforismo 4.1272 do TLP, no qual lemos: “não se pode dizer ‘há objetos’, como se diria ‘há livros’”, pode-se formular mais um exemplo. A pergunta “existem livros sobre a mesa do escritório?” é legítima, dado que as possibilidades negativa e positiva de resposta são proposições com sentido. Já a questão: “Existem objetos no mundo?”, com o termo “objeto” sendo compreendido tecnicamente como “substância do mundo”, seria uma pseudo-questão. A resposta não pode ser uma proposição com sentido, pois estas proposições necessariamente devem ser bipolares. “Não existem objetos no mundo” é uma sentença sem sentido na medida em que a existência de objetos é um pressuposto pré-linguístico. Também a resposta positiva “Sim, existem objetos”, é sem sentido, apesar de necessariamente verdadeira. O fato é que esta resposta apenas mostra algo sobre a forma do mundo, ou melhor, sobre a forma que todo mundo possível deve possuir para que possa ser afigurado. Se não existisse uma substância “fixa” (cf. TLP, 2.02-ss) a representação simbólica não seria possível e isto por sua vez nos revela que a sentença “existem objetos” não diz nada sobre os fatos, mas sobre a determinabilidade do sentido (cf. MORRIS, 2008, p.333-334). Um último

exemplo de pseudo-pergunta pode ser relacionado com a metafísica, da maneira com que esta é compreendida no TLP. Questões metafísicas não seriam legítimas, pois após a análise perceberíamos que determinados símbolos não representam objetos do mundo (como já discutido ao tratarmos do desafio de Anscombe). Segundo Wittgenstein: “sempre que alguém pretender dizer algo de metafísico, [devemos] mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições” (TLP, 6.53).

Partindo destes esclarecimentos podemos compreender as razões de Black. O comentarista considera pseudo-perguntas àquelas relacionadas à esfera mística. O aforismo 6.52, que fecha o trio supostamente inconsistente com o 6.522, dá algum fundamento a esta interpretação. Veja, nele Wittgenstein nos diz que, mesmo no caso em que todas as questões legítimas possíveis tivessem sido respondidas, as perguntas relacionadas ao sentido da vida permaneceriam intactas. Ora, se todas as perguntas legítimas foram respondidas, as que restaram não seriam perguntas stricto sensu. De tal modo, “não restará, mais nenhuma questão; e a resposta [para os “problemas da vida”] é precisamente esta” (TLP, 6.52). “Qual o sentido da vida?”, “Deus tem alguma relação com este sentido?”, “há um âmbito não factual que dá significância ao factual?” seriam apenas confusões linguísticas e todos que trataram destes assuntos não teriam feito nada mais do que proferir várias sentenças sem sentido. Complementando com algo que já nos é claro neste ponto: proposições com sentido devem necessariamente ser bipolares descrevendo maneiras nas quais os fatos do mundo estão configurados. O domínio místico, por sua vez, não diz respeito ao como do mundo, não podendo ser figurado proposicionalmente. Ao que parece, Black tem ao menos alguma razão.

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 143-156)