• Nenhum resultado encontrado

O núcleo do argumento panteísta de Zemach

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 91-95)

2.4 O Argumento de Zemach

2.4.3 O núcleo do argumento panteísta de Zemach

Munidos destes esclarecimentos, podemos compreender o panteísmo de Zemach. Segundo nossa discussão, tudo aquilo que é capaz de representar fatos do mundo deve também ser um fato. Portanto, signos proposicionais são fatos. Eles mostram uma possibilidade factual, que é o seu sentido, e dizem que esta possibilidade é o caso na realidade, ou seja, que há um fato no mundo conforme ao modelo. Vimos também que é necessário um método de projeção para que saibamos quais elementos do fato figurativo representam os elementos do fato afigurado. Pois bem, se “Deus é o sentido do mundo” (NB, 11/06/1916), e “sentido” for entendido em sua acepção lógico/semântica, nós precisamos, segundo Zemach, compreender o mundo em sua totalidade como uma grandiosa figuração, um grande fato figurativo, dado que somente figurações possuem um sentido. No entanto, ao proceder desta maneira nos deparamos com um problema:

O mundo, ao contrário de qualquer uma de suas partes, não pode ser considerado como um signo proposicional. Sendo que o mundo é a totalidade dos fatos, se ele refere para alguma coisa, ele poderia referir somente para si mesmo, e assim conter o seu próprio referente, o que é impossível (cf. TLP, 3.332-3.333). Portanto, se Deus é o sentido do mundo, isto é, aquilo que o mundo representa, Deus deve ser um fato que não está nem dentro e nem fora do mundo. Mas isso novamente é impossível. (ZEMACH, 1966, p.362)

O ponto de Zemach, como eu o compreendo, é o que segue. A sentença de Wittgenstein “Deus é sentido do mundo”, prima facie implica que o mundo em sua totalidade é uma figuração de Deus, em outras palavras, o mundo representaria a divindade tal qual a maquete representa o acidente ou as proposições representam situações possíveis. Ora, toda figuração é um fato que representa outro fato e isso nos leva a alguns becos sem saída ao analisar o aforismo dos Notebooks. Ao dizer que a totalidade dos fatos é uma figuração, não haveria nada para ser afigurado, dado que aquilo que é afigurado é um fato do mundo no caso da figuração

ser correta ou verdadeira. Portanto, se a totalidade dos fatos, o mundo, é uma figuração, ela deve ser uma representação de si mesma. Teríamos aqui, se fosse possível, um caso de auto-referência. Porém: “nenhuma proposição pode enunciar algo sobre si mesma, pois o sinal proposicional não pode estar contido em si mesmo” (TLP, 3.332). Nesta conjuntura, se pensarmos na relação afiguradora, veremos que não existem objetos que possam ser ligados aos elementos da figuração pelo motivo destes elementos serem todos os objetos possíveis. Assim não temos nenhum método de projeção e a frase, “afigura a si mesmo” não se diferencia da frase “não afigura nada”; e se não afigura nada a fortiori não é uma figuração e não tem sentido. Uma outra tentativa seria dizer que o sentido do mundo é um fato que não está no mundo. A primeira vista isto seria uma abordagem tradicional relacionada ao conceito “Deus”, no entanto, é fácil percebermos que esta estratégia não se enquadra nos moldes tractatianos, dada a ideia de que o mundo é a totalidade dos fatos (cf. entre outros, TLP, 1.1). Não há fatos “fora” do mundo e insistir neste caminho implicaria em aceitar algo do seguinte tipo: “Todos os objetos estão no conjunto A e existem objetos fora do conjunto A”. Dessa forma, segundo Zemach, estamos diante de duas impossibilidades: Deus ser um fato do mundo (ou mesmo o conjunto de todos os fatos) e Deus ser um fato fora do mundo.

Para solucionar o paradoxo, Zemach apresenta a sua interpretação panteísta do TLP, mas, poderíamos dizer, o panteísmo que ele atribui à Wittgenstein é uma espécie de panteísmo formal. Para bem compreende- lo, um primeiro passo seria lembrar que, como discutido, duas coisas são mostradas por uma figuração, a saber, o seu sentido e as suas características formais. Uma proposição mostra tanto a situação que será o caso na condição dela ser verdadeira quanto a sua forma lógica. Em relação ao sentido, é imprescindível um método de projeção para que possamos ligar os elementos da figuração à realidade, mas no caso das características formais, segundo Zemach (cf. 1966, p.363), ele não é necessário. De tal modo, unicamente no caso especial em que lidamos com a ideia de que Deus é o sentido do mundo e com as implicações de tal ideia ao contexto do TLP, devemos perceber que “sentido” e “forma” tornam-se sinônimos. Isso ocorre pois, ao assumirmos que o mundo em sua totalidade é uma figuração, a única coisa que se mostra é a forma. Dissolve-se assim o paradoxo supracitado, dado que ele surge apenas relacionado ao “sentido” e não à “forma” da figuração. Zemach, então, conclui que o termo “Deus” deve ser entendido como unificador de algumas das características formais do mundo factual:

Assim a factualidade do universo é indizível, embora seja exibida pelos fatos. Ela mostra a si mesma não por uma maneira específica na qual um fato “sich verhalt” [se comporta], mas pelo “fato” de que o fato é um fato31. Deus, o inexpressável, o Místico, é um “fato” formal. O “fato” formal que o mundo é, ou seja, que existe a totalidade dos fatos, é Deus. (ZEMACH, 1966, p.362)

Sendo que os traços formais não estão no mundo, no sentido de que não são objetos configurados formando fatos, mas sim algo que se mostra a partir dos fatos, a inconsistência entre a imanência e transcendência de Deus presente nos escritos do primeiro Wittgenstein desapareceria. Tanto nos Notebooks quanto no TLP, o conceito “Deus” deve ser compreendido como algo formal e isso unifica a, digamos, teologia do Wittgenstein inicial. Não há transcendência da divindade nesta teologia, mas sim, poderíamos dizer, transcendentalidade, a la Kant. “Deus” seria sinônimo do limite, da forma, ou da condição de possibilidade do mundo (cf. ZEMACH, 1966, p.367). De forma mais específica, Deus mostrar-se-ia através da factualidade do mundo e do “fato” de que não existem razões para que estes e não outros fatos sejam o caso. Isso, por sua vez, daria conta de explicar as entradas dos Notebooks nas quais Wittgenstein iguala Deus, Mundo e Destino, conforme discutido acima.

Um último e polêmico passo da estratégia de Zemach, o “cerne da questão”, de acordo com o comentarista, é o que segue: se é correta esta interpretação panteísta-formal, Deus nada mais é do que a forma proposicional geral, ou, em outras palavras, no contexto da primeira filosofia de Wittgenstein, Deus e forma proposicional geral, seriam o mesmo (cf. ZEMACH, 1966, p.365). Consideremos as citações utilizadas para fundamentar este ponto: “A forma proposicional geral [allgemeine Satzform] é a essência da proposição” (TLP, 5.471). “Especificar a essência da proposição significa especificar a essência do mundo” (TLP, 5.4711). “[...] a forma proposicional geral é: As coisas estão assim” (TLP, 4.5). “Como as coisas estão, é Deus. Deus é como as coisas estão” (NB, 01/08/1916).

31 Mesmo soando um pouco estranho, a ideia de Zemach é mesmo esta. Lembremos que, como discutido, ao utilizar o termo “fato”, entre aspas, Zemach refere-se às características formais dos fatos. Dessa maneira, “fatos”, não são combinações de objetos, mas sim propriedades formais ou internas dos fatos.

Vários tipos de proposição possuem formas lógicas diferentes. “O computador está sobre a mesa” e “O gato está sobre a cama” possuem uma forma que em linguagem natural pode ser enunciada intuitivamente do seguinte modo: “A está em uma relação R com B”. A proposição “Platão e Sócrates são filósofos”, tem uma forma do tipo: “A e B possuem a propriedade F”, e assim por diante. As formas lógicas são descobertas a posteriori a partir da aplicação da lógica. Por outro lado, diferentes proposições, em todas as formas lógicas possíveis, possuem algo em comum e que é determinado a priori, a saber, a forma proposicional geral. Todas as proposições dizem que as coisas estão de uma determinada maneira, ou, conforme a explicação de Black (1964, p.236) “a essência da proposição é a sua capacidade de dizer algo sobre como as coisas estão na realidade”. De tal modo, todas as formas lógicas podem ser reduzidas à forma comum “as coisas estão assim”. Percebemos que esta fórmula não se restringe às proposições verdadeiras, mas sim àquelas que podem ser verdadeiras e podem ser falsas, ou seja, a totalidade das proposições. A forma proposicional geral não é vácua, mas indica que todas as proposições devem ser bipolares, logicamente articuladas e descrever um estado de coisas possível (cf. GLOCK, 1997, p.183).

Para entender a ideia de que ao explicitarmos a essência da proposição explicitamos a essência do mundo, pensemos do seguinte modo: “mundo” é a totalidade dos fatos; fatos são combinações de objetos. Toda proposição, dada a forma proposicional geral, diz que os objetos do mundo estão configurados de uma determinada maneira: “as coisas estão assim”. Ser um mundo é ser algo cujas partes podem ser representadas proposicionalmente. Tanto o mundo quanto as proposições, que nada mais são do que a representação linguística do mundo, possuem uma forma em comum. É uma condição necessária para qualquer representação simbólica que a figuração e o afigurado compartilhem uma forma (cf. TLP, 2.17; 2.18). Esta condição faz com que a relação entre linguagem e realidade seja possível a priori. Como nos diz Wittgenstein: “Toda a minha tarefa consiste em esclarecer a essência da proposição. Isso significa [Das heißt] indicar a natureza de todos os fatos cuja figuração [Bild] é a proposição” (NB, 22/01/1915). Desta maneira, a forma proposicional geral é a forma do mundo e também da linguagem, e é este fato (ou “fato”), somado com a ideia de que “Deus é a forma do mundo” que faz com que Zemach (1966, p.365) conclua: “a forma proposicional geral e Deus são o mesmo”.

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 91-95)