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O Desafio de Anscombe

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 107-113)

Para percebermos de forma ainda mais clara os problemas que tudo isso gera para nosso tema, vamos apresentar aquilo que poderíamos chamar de “o desafio de Anscombe”. Em uma rápida, porém pungente, passagem de sua célebre introdução ao Tractatus, Anscombe nos diz que o TLP desfere um golpe fatal na teologia, não devido a algum “positivismo” ou “verificacionismo”, mas simplesmente pela forma com que explica o sentido das proposições. Em outras palavras, a teoria figurativa ocasionaria a morte da teologia (cf. ANSCOMBE, 1965, p.78). O princípio da bipolaridade, conectado à teoria figurativa, nos mostra porque isso é assim. Tal princípio, como discutido, assere que toda proposição deve poder ser verdadeira e também poder ser falsa.

Proposições, poderíamos dizer, possuem um polo positivo e um polo negativo; o primeiro diz que as coisas se passam na realidade tal qual a figuração está mostrando; o segundo diz que esta combinação específica de elementos, mostrada pela proposição, não é o caso. Isto, por sua vez, nos revela que toda proposição possui uma relação interna com a sua negação. Compreender uma proposição é compreender o seu sentido, ou seja, o que seria o caso se ela fosse verdadeira e o que seria o caso se ela fosse falsa.

Como exemplo, vamos supor que p seja uma proposição que faça alguma afirmação sobre a realidade. De tal modo, p cobre uma porção do espaço lógico. Tudo aquilo que está “fora” desta porção é não-p (ou ~p). Esta ideia pode ser representada em um esquema apresentado pelo próprio Wittgenstein nos Notebooks (cf. NB, 14/11/1914):

Enquanto p afirma que esta fração do espaço lógico é um fato, ~p afirma que todas as outras possibilidades do espaço lógico podem ser o caso, com exceção desta mostrada pela proposição p. As duas proposições juntas cobrem todo o espaço lógico (cf. TLP, 4.463). A bipolaridade implica que todo signo proposicional terá sentido se e somente se determina uma possibilidade que o mundo ou satisfaz ou não satisfaz. Esta característica é condição necessária do sentido. Dito de outra maneira, proposições só são significativas se suas negações também forem significativas. É contingente se p é o caso ou se ~p é o caso, mas é necessário, para toda proposição, a possibilidade da sua negação.

De tal forma, a determinação dos limites semânticos da linguagem, calcada na essência bipolar do simbolismo, faz com que seja inconsistente a articulação entre necessidade e verdade (cf. GLOCK, 1997, p.62). Não pode haver proposições que sejam necessariamente verdadeiras, uma vez que, ipso facto, elas jamais poderiam ser falsas, porém, como dito por Wittgenstein, “não é possível reconhecer, a partir da figuração tão- somente, se ela é verdadeira ou falsa. Uma figuração verdadeira a priori não existe” (TLP, 2.224-2.225)37. A partir disso, podemos compreender

37 Neste momento, é necessário algum esclarecimento sobre as tautologias. Como é bem sabido, o termo “tautologia” designa uma frase que é verdadeira para todos os valores de verdade atribuídos às variáveis que nela ocorrem. Em outras palavras, uma tautologia é sempre verdadeira, independente daquilo que é o caso.

melhor o desafio de Anscombe. Veja, segundo aquilo que nos é dito no TLP, a estrutura lógica subjacente ao mundo e à linguagem implica que as proposições sejam significativas se e somente se as suas negações tiverem sentido. Não há um lugar no espaço lógico para proposições necessariamente verdadeiras e, consequentemente, todo fato é contingente. No entanto, como apontado por Anscombe, a teologia não aceitaria tal ideia. O fato expresso pela sentença “Deus existe”, por exemplo, não pode ser contingente, pois isso tornaria o discurso teológico inconsistente e não satisfaria o anseio religioso dos crentes. Vamos esclarecer isto melhor.

Ao considerarmos o conceito “Deus”, não importando no momento o quanto essa palavra tem de confuso ou vago, percebemos que qualquer tipo de dependência é incompatível com o seu uso comum. Quer se acredite em Deus ou não, pensar nele como um ser contingente, que dependa de algo para vir à existência ou para que sua existência seja mantida, é conflitante com o conceito “Deus” como entendido, por exemplo, nas tradições monoteístas. Esse algo que fez com que Deus existisse, ou que o mantém existindo, faz com que Deus perca sua soberania e perfeição, nos levando a não mais concebê-lo como o mais perfeito, ou como “o ser do qual não é possível pensar outro maior”, como dizia Anselmo (cf. PROSLOGION, Cap. II).

Além do mais, o crente religioso não está preparado para dizer que Deus poderia não ter existido, ou, no jargão tractatiano, que a sentença “Deus existe” seja bipolar. Não faz sentido dentro do discurso religioso essa possibilidade, dado que tal declaração é pressuposta para que todo o discurso seja possível. Neste contexto, a existência de Deus é dada a

Não preciso, por exemplo, olhar pela janela para concluir que a frase “ou chove ou não chove” é verdadeira. Ora, isso parece ser um contra-exemplo à ideia de que a articulação entre verdade e necessidade seja inconsistente, dado que, ao menos em um sentido, tautologias seriam necessariamente verdadeiras. Contudo, para Wittgenstein, tautologias não dizem nada, ou seja, não são figurações da realidade (cf. TLP, 4.462). Ao invés disso, as tautologias (e também as contradições) são casos limite da combinação vero-funcional de proposições. A combinação parte de proposições bipolares lícitas, (por exemplo, “está chovendo”), e termina em “proposições” moleculares que anulam toda a informação factual: “Nada sei, p. ex., a respeito do tempo, quando sei que chove ou não chove” (TLP, 4.461). Mais a frente discutiremos a tese da extensionalidade e a ideia da combinação vero-funcional das proposições ficará mais clara. Para maiores esclarecimentos quanto às tautologias e contradições pode-se conferir: (TLP, 4.46-4.4661; GLOCK, 1997, 346-ss; FOGELIN, 1987, p.45-47).

priori proporcionando possibilidade de significância ao, digamos, jogo de linguagem da religião. Um Deus finito e contingente não satisfaz as exigências da religião ou da teologia. Podemos entender isso melhor se pensarmos naquilo que Malcolm chamou de atitude religiosa. Ele diz que a atitude religiosa pressupõe uma superioridade tão grandiosa ao objeto de adoração (no caso, Deus) que em comparação com ele todos os outros objetos, inclusive o próprio adorador, não são nada. No discurso religioso é anômalo, sem sentido, incompreensível, adorar algo limitado e que possua existência contingente (cf. MALCOLM, 2003, p.383).

Anscombe estaria certa? A não existência de fatos teológicos para serem afigurados somada à impossibilidade de que as proposições teológicas sejam bipolares faz com que o TLP destrua a teologia? Nosso propósito de discutir a, lato sensu, “teologia filosófica” de Wittgenstein estaria de antemão fadado ao fracasso? Faz ainda algum sentido buscarmos compreender os pressupostos do “ponto de vista religioso” do filósofo? Precisaremos ir devagar com tais questões. É certo que o TLP rejeita uma forma de falar, mas isso não significa que todo um âmbito da realidade está sendo excluído. Dito de outro modo, a impossibilidade de dizermos (no sentido técnico já explicado) proposições teológicas, não implica a exclusão da esfera dos valores absolutos, esfera esta que engloba, além da ética e a estética, a religião. Lembremos também de nossa discussão, na qual apontamos que tanto a obra de Wittgenstein, quanto as memórias, cartas e biografias publicadas, são permeadas por comentários sobre temas religiosos e teológicos. É oportuno para o momento mais algumas destas citações. Iniciemos com a famosa carta de Wittgenstein a Ficker, da qual podemos plausivelmente extrair a ideia de que o TLP estaria envolto em algum tipo de religiosidade:

O ponto do livro [TLP] é ético. Pensei em incluir no prefácio uma frase que agora não está lá, mas que escreverei aqui para você, pois, talvez, será uma chave para [que você compreenda] o trabalho. O que eu queria ter escrito era isto: a minha obra consiste em duas partes; aquela que se apresenta aqui mais tudo o que não escrevi. E é precisamente esta segunda parte que é a parte importante. Com efeito, meu livro traça os limites da esfera Ética, por assim dizer, do interior, e estou convencido de que esta é rigorosamente a ÚNICA maneira de traçar estes limites.

Enfim, eu creio: tudo aquilo que hoje muitos ainda falam para não dizer nada, eu defini em meu livro

guardando silêncio. Portanto, se não me equivoco, o livro terá muitas coisas a dizer, que você mesmo ia querer dizer, porém pode-se não notar que se dizem. Por agora, eu recomendo que leia o prefácio e a conclusão, pois expressam o objetivo do livro de maneira mais direta. (WITTGENSTEIN, Apud FRONDA, 2010, p.14-15)

Certamente, neste contexto em específico, o “ponto de vista ético” não pode ser rapidamente e injustificadamente traduzido para “ponto de vista religioso”. Porém, de forma plausível, podemos supor que alguma atitude religiosa envolve o ethos endossado pelo TLP. Vários comentaristas defendem essa ideia (cf. KLEIN, 2003, 45-46; 2007, p.11; LAZENBY, 2006, p.59; FRONDA, 2010, p.15; CLACK, 1999, p.35; PINTO, 1998; NIELI, 1987, p.69-ss). Formulando de maneira menos polêmica, o ethos tractatiano é consistente com alguma espécie de espiritualidade e/ou religiosidade. Isso ficará mais claro quando, daqui a pouco, discutirmos o “Deus” do primeiro Wittgenstein. Para o momento, é producente recorrermos a argumentos já esboçados. Primeiramente, é facilmente percebido que as entradas dos Notebooks que tratam sobre ética e o sentido da vida estão mescladas com reflexões sobre Deus. Em segundo lugar, a forma com que Wittgenstein transita da ética para a religião na CSE é certamente um sinal de que ambas pertencem a um domínio comum, a saber, àquele dos valores absolutos, e que poderia ser a “esfera ética” referida por Wittgenstein na citação acima. Por fim, a seguinte entrada de Cultura e Valor corrobora o nosso ponto: "O que é bom é também divino. Por mais estranho que tal possa parecer, essa afirmação resume a minha ética. Só algo de sobrenatural pode expressar o sobrenatural. [...]. O bem reside fora do âmbito dos factos." (CV, p.15). Outro importante testemunho que provoca tensão ao relacionar-se com o desafio de Anscombe é este comentário de Engelmann:

Toda uma geração pôde considerar Wittgenstein um positivista, pois existia algo de enorme importância entre ele e os positivistas: traçou a linha que separa isso que se pode falar daquilo que se deve ficar em silêncio; coisa que os positivistas também tinham feito. A diferença é apenas que estes não tinham nada do qual deviam silenciar. O positivismo sustenta – e esta é a sua essência – que aquilo que podemos falar é tudo o que importa na vida. Wittgenstein, por sua vez, crê ardentemente

que tudo aquilo que realmente importa na vida humana é precisamente aquilo sobre o que, segundo seu ponto de vista, devemos guardar silêncio. Quando ele assume imensos trabalhos para delimitar o desprovido de importância [i.e., o alcance e os limites da linguagem] não está procurando fazer um reconhecimento da linha costeira da ilha com precisão meticulosa, mas do que está tratando é dos confins do oceano. (ENGELMANN, 1970, p.70, Apud: DALL’AGNOL, 2005, p.180-181)

Além de belo, o trecho é importante, pois nos dá um sumário de temas que, ao ser desenvolvido, esclarecerá as ideias sobre Deus e o Místico contidas nos escritos do primeiro Wittgenstein. Veja, em primeiro lugar percebemos que, segundo Engelmann, há algo do qual devemos nos calar. Nas palavras de Wittgenstein no TLP: “Há por certo o inefável, isso se mostra, é o Místico” (TLP, 6.522). Depois, vemos que o âmbito valorativo e que dá significância à vida humana pertence a esta esfera indizível. Das várias passagens sobre o assunto poderíamos exemplificar com as seguintes: “O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo tudo é como é e tudo acontece como acontece. Não há nele nenhum valor” (TLP, 6.41); “A solução do enigma da vida no espaço e no tempo, está fora do espaço e do tempo” (TLP, 6.4312). Outro ponto chave da citação, é aquele que nos mostra que a elucidação lógica dos limites da linguagem está a serviço da “segunda parte” do TLP, aquela parte que realmente importa. Dito de forma mais direta, quando a lógica subjacente ao mundo e à linguagem torna-se manifesta, o âmbito valorativo, incluindo Deus, é mostrado. Nossos argumentos para defender esse ponto virão em seguida. Nesta conjuntura, é certo que o desafio de Anscombe é inicialmente um empecilho, pois enfatiza a ideia de que a linguagem significativa limita-se aos fatos do mundo. Por outro lado, no entanto, há uma esfera valorativa que não pode ser expressa significativamente, na qual, como argumentaremos, o Deus de Wittgenstein estaria incluso. Prima facie, isso soa como um paradoxo. Ora, para argumentar em favor de nosso ponto precisaremos utilizar a linguagem, mas o domínio místico não pode ser representado linguisticamente de forma significativa. Porém, o paradoxo é somente aparente, dado que não utilizaremos sentenças que visam descrever Deus, o valor, ou o que quer que seja do âmbito místico. A estratégia é conduzir uma argumentação que faça com que tudo isso seja mostrado. Ora, não poder ser dito não implica ser invisível. O tema é ilustrado pelo comentário que Wittgenstein faz sobre uma poesia de

Uhland: “enquanto não se tenta expressar o inexpressável, então nada estará perdido. Contudo, o inexpressável está – inexpressavelmente – contido nisto que é expresso” (ENGELMANN, 1970, p.7).

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 107-113)