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Dissolução das Interpretações Panteístas

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 101-107)

Obviamente, este sumário da minha interpretação será ampliado nos próximos capítulos. O que precisamos fazer no momento é concluir a refutação das interpretações panteístas, agora com uma abordagem mais geral do problema. Discutimos de perto casos paradigmáticos de tais interpretações e concluímos que não precisamos do panteísmo para explicar pontos complexos da ontologia tractatiana e que os comentaristas normalmente erram ao não perceber que, neste contexto, o termo “sentido” possui carga valorativa. Cabe agora finalizarmos com comentários mais diretos sobre os excertos dos Notebooks que motivam estes comentaristas. Iniciemos com o seguinte:

Seja como for, somos, em todo o caso, e num certo sentido, dependentes e podemos chamar Deus àquilo de que somos dependentes.

Deus, neste sentido, seria simplesmente o destino ou, o que é a mesma coisa: o mundo – independente de nossa vontade. (NB, 08/07/1916)

Pois bem, é inegável que, tomado isoladamente, este trecho compromete Wittgenstein com o panteísmo: o mundo independente de nossa vontade é o mundo factual e Deus seria o mundo factual. Contudo, no contexto da citação, é muito mais plausível supor que o mundo dos fatos seja o ambiente em que a vontade de Deus age e não o próprio Deus, como podemos conferir em outras anotações dos Notebooks feitas no mesmo dia:

Para viver feliz devo estar em consonância [Übereinstimmung] com o mundo. E isto é o que “ser feliz” significa.

Estou então em harmonia com aquela vontade alheia da qual, aparentemente, sou dependente. Isso significa: “estou fazendo a vontade de Deus”. [...] Se a minha consciência me priva de equilíbrio, então não estou em consonância com Algo. Mas o que é isso? Será o mundo? (NB, 08/07/1916)

Primeiramente, basta olharmos as últimas linhas para concluirmos que Wittgenstein estava no mínimo hesitante ao conformar Deus e mundo. Este “Algo” do qual somos dependentes e que devemos estar em consonância para que vivamos felizes poderá mesmo ser o mundo? Sei que são difíceis e controversas estas entradas dos Notebooks, porém penso que é bem mais coerente interpretarmos o “mundo”, neste contexto, como o “lugar” no qual a vontade de Deus se manifesta. O mundo não é Deus, mas é um espaço no qual é possível nos harmonizarmos com aquela vontade alheia que configurou os fatos da maneira que estão. Ao fazer isso, diz Wittgensten, estamos “fazendo a vontade de Deus”.

Penso que esta interpretação possa ser estendida para a outra passagem utilizada pelos comentaristas, a saber: “Como as coisas estão, é Deus. Deus é, como as coisas estão” (NB, 01/08/1916). Para que as ideias sejam consistentes devemos ler a passagem do seguinte modo: “As coisas estão assim devido a vontade de Deus; devido a vontade de Deus as coisas estão assim”. Ora, não há panteísmo algum se analisarmos as passagens desta forma. Além disso, esta proposta é muito mais coerente com outros trechos dos Notebooks e mesmo do TLP, como estes, por exemplo: “Crer num Deus significa perceber que ainda nem tudo está decidido com os fatos do mundo” (NB, 08/07/1916); “Os fatos fazem todos parte apenas do problema, não da solução” (TLP, 6.4321); “Deus não se revela no mundo” (TLP, 6.432), dentre inúmeros outros36.

De tal modo, concluímos a terceira das três possibilidades que explicam a (suposta) inconsistência gerada pelas teologias imanente e transcendente que encontramos nos escritos de Wittgenstein, a saber, a posição teológica dos Notebooks não é panteísta e pode ser compatibilizada com a ideia da transcendência de Deus contida no TLP. Porém, segundo cremos, mesmo que persistisse alguma inconsistência, a transcendência do TLP deve ser prioritária. Veja, devemos considerar o fato de que os Notebooks são apenas ideias brutas lançadas ao papel, que, após lapidação, culminaram no TLP. Como dizem os editores (NB, Prefácio, V-VI), Wittgenstein queria que os Notebooks fossem literalmente destruídos, constrastando com a ansiedade e angústia pelas quais ele passava antes de publicar o TLP (cf. FRONDA, 2019, p.41). Este é um fato que deve ser levado em conta, dado que as interpretações panteístas que consideramos dependem necessariamente de premissas extraídas dos Notebooks, mesmo nos casos em que estas contrariam trechos de outras obras de Wittgenstein.

Com o término deste capítulo concluímos a parte negativa, por assim dizer, desta tese. Mostramos que nem a proposta analógica de Malcolm e nem as interpretações panteístas dão conta de explicar plausivelmente a frase-W e o “ponto de vista religioso” de Wittgenstein. A partir do próximo capítulo iniciaremos a parte positiva, mostrando de que forma as ideias filosóficas implicam as ideias contidas no “ponto de vista religioso” do filósofo. Como dito, o capítulo seguinte irá tratar, da primeira destas ideias, a saber, do silêncio contemplativo e da indizibilidade do âmbito místico. Passemos então ao próximo capítulo, para que tudo isso fique mais claro.

3 INDIZIBILIDADE, CONTEMPLAÇÃO E SILÊNCIO 3.1 Considerações iniciais

Como já foi dito, os dois primeiros capítulos operam principalmente como a parte negativa desta tese. No primeiro, discutimos a interpretação de Malcolm à frase-W, concluindo que a interpretação analógica, apesar de interessante, acarreta complicados problemas. No segundo, mostramos que também não se sustentam as tentativas de interpretar o ponto de vista religioso de Wittgenstein como panteísta. Além do mais, estes capítulos nos possibilitaram introduzir grande parte do arcabouço conceitual necessário para levar nossas discussões a cabo. A partir deste capítulo iniciaremos a parte positiva da tese, na qual mostraremos de que forma as ideias pertencentes ao ponto de vista religioso se seguem das ideias filosóficas de Wittgenstein. No capítulo 4 discutiremos o sentido prático das sentenças teológico/valorativas e neste capítulo discutiremos o silêncio contemplativo e a indizibilidade do âmbito místico. Para que a necessária inexpressabilidade da esfera mística seja mostrada, nós apresentaremos um paralelo entre a lógica e o Deus de Wittgenstein. Além disso, discutiremos a “metáfora da escada” e em que sentido as sentenças do TLP pretendem levar o leitor a um esclarecimento, primeiramente lógico e depois místico. Por fim, discutiremos quatro “experiências” místicas que iremos chamar de assombro, anseio, segurança e culpa. Veremos que não poder ser dito não implica ser invisível ou inútil. No decorrer do capítulo falaremos também da terceira interpretação panteísta clássica, a saber, a de McGuinness (2002). O comentarista fundamenta sua leitura coincidindo a experiência lógica com a experiência mística, sustentando que ambas são uma “atitude frente a existência do mundo” (2002, p.147).

Pois bem, no prefácio do TLP Wittgenstein nos diz que o livro pretende delinear os limites da expressão dos pensamentos e, na medida em que nós expressamos pensamentos através da linguagem, é nesta que os limites devem ser traçados. De tal modo, uma das conclusões mostra que o uso significativo da linguagem se restringe àqueles casos em que nossas proposições afiguram fatos do mundo. Nestes casos, os nomes que compõem a proposição representam os objetos da situação afigurada e compartilham com eles uma mesma forma lógica. É certo que a linguagem cotidiana, empírica, não mostra imediatamente a isomorfia entre linguagem e realidade. Metaforicamente, poderíamos dizer que a linguagem corrente é uma espécie de roupa que disfarça a sua forma

lógica subjacente. Da mesma maneira que uma roupa pode ser confeccionada para um fim inteiramente diferente daquele que nos revelaria a forma do corpo (nos proteger do frio, por exemplo), os acordos tácitos que nos permitem compreender a linguagem corrente não visam mostrar a forma lógica que esta compartilha com a realidade (cf. TLP, 4.002). Porém, quando analisadas corretamente, as sentenças da linguagem cotidiana são desmembradas em proposições elementares, o tipo mais simples de proposição (cf. TLP, 4.21), e a correspondência de um-para-um com o fato representado torna-se manifesta. Para cada nome contido na proposição, um objeto pertencente ao fato: unum nomen, unum nominatum (cf. BAKER; HACKER, 2005a, 117-ss). Obviamente, como já discutido, a proposição pode ser falsa mas significativa, na medida em que o seu sentido é uma configuração possível de objetos. Se esta possibilidade for o caso, a proposição será verdadeira, e falsa no caso contrário.

Esta conclusão semântica deve-se, em parte, às considerações ontológicas expostas por Wittgenstein nos aforismos iniciais do TLP e por nós discutidas no tópico dedicado à interpretação panteísta de Garver. A discussão das sentenças nas quais Wittgenstein apresenta a forma que o mundo deve possuir para que nos seja possível representa-lo através da linguagem, nos mostra que não há nada no mundo além de fatos e que estes são combinações de objetos. Tais objetos, por sua vez, são subsistentes, necessariamente simples e formalmente inalteráveis. Como substância de todo mundo possível eles independem dos fatos, mas, dado um mundo, eles necessariamente estarão combinados formando fatos, pois fatos são as peças ontológicas básicas nas quais o mundo se desmembra. Assim, tanto os fatos quanto às proposições, seriam estruturas compostas de elementos configurados de certas maneiras e esta configuração depende da forma lógica dos elementos constituintes. Toda proposição que “espelha” a forma lógica de um determinado fato, afigura aquele fato.

Diante de tudo isso, como diz Wittgenstein, poderíamos talvez apreender todo o sentido do TLP partindo das famosas palavras: o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar. Podemos dizer claramente tudo aquilo que não ultrapassa o limite essencialmente factual das nossas expressões linguísticas ou, em outras palavras, toda proposição significativa deve, necessariamente, afigurar uma combinação possível de objetos, isto é, um fato. Este limite bloqueia todo e qualquer discurso metafísico, dado que sentenças metafísicas pretendem de alguma maneira dizer algo não- factual. A análise de um discurso metafísico, segundo Wittgenstein, nos

revela que certos signos linguísticos utilizados não representam objetos e, consequentemente, tal discurso não terá sentido (cf. TLP, 6.53).

Delimitando ao nosso tema, poderíamos dizer que questões filosófico-teológicas relacionadas a Deus, ao “ponto de vista religioso” de Wittgenstein e ao valor ético, são incorrigivelmente atingidas pela ideia de que a linguagem significativa limita-se aos fatos do mundo. É producente algumas citações para tornarmos o ponto explícito:

Os objetos, só posso nomeá-los. Sinais são seus representantes. Posso somente falar sobre eles, não posso enuncia-los. Uma proposição pode dizer somente como uma coisa é, não o que ela é (TLP, 3.221); O Místico não é como o mundo é, mas que ele é (TLP, 6.44); Como seja o mundo é completamente indiferente para o Altíssimo [das Höhere]. Deus não se revela no mundo (TLP, 6.432).

Proposições só podem dizer como alguns objetos estão combinados no mundo, mas o Místico não tem relação com o como e Deus não se revela no mundo. Sendo que não existem fatos teológicos para serem afigurados, todos aqueles que tentaram escrever ou falar sobre Religião estariam, nas palavras de Wittgenstein, “correndo contra os limites da linguagem”. Esta limitação não é provisória, no sentido de que ainda não descobrimos a maneira correta de analisar sentenças teológicas, mas essencial, devido ao fato de que se pretende com tais sentenças “ir além do mundo, o que é o mesmo que ir além da linguagem significativa” (CSE, p. 223-224).

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 101-107)