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3.4 A Metáfora da Escada

3.4.2 Projetando a Vontade Sobre a Totalidade

3.4.2.4 Culpa

Nos resta agora discutir o sentimento de culpa. Wittgenstein apenas o menciona, não apresentando maiores esclarecimentos, por isso é difícil especularmos sobre o assunto. Não obstante, faremos alguns poucos comentários. De acordo com o filósofo, uma maneira de expressar linguisticamente este sentimento seria a frase “Deus condena a nossa conduta” (CSE, p. 222). Assim como os sentimentos de assombro e

segurança48, o sentimento de culpa possui também valor absoluto, isto é,

pertence ao âmbito valorativo e não pode ser descrito por meio de proposições com sentido (cf. Idem, Ibidem). A forma com que a indizibilidade se mostra neste caso, porém, é diferente daquela mostrada pelas duas outras experiências descritas na CSE. Mais especificamente, enquanto as sentenças utilizadas para expressar o sentimento de assombro e segurança geram proposições tautológicas, as sentenças utilizadas para expressar o sentimento de culpa geram proposições contraditórias. Tautologias e contradições são proposições sem sentido, dado que não descrevem fatos e (por isso) não são bipolares. Além disso, as “experiências tautológicas” enfatizam a grandiosidade e o valor da esfera mística indizível e a “experiência contraditória” enfatiza a, digamos, pequenez do indivíduo diante do âmbito valorativo. Vamos esclarecer isso melhor.

As sentenças que tentam expressar a experiência de assombro são tautológicas pois não têm relação com aquilo que é o caso. Está em jogo um maravilhamento ante a existência do mundo, independente do arranjo dos fatos. Do ponto de vista tractatiano, a experiência ocorre de forma consciente, como visto, no momento em que o sujeito metafísico contempla a substância do mundo em sua totalidade, isto é, os objetos necessariamente subsistentes. Não é um assombro diante de como os fatos estão dispostos, mas diante do que do mundo, presença incontornavelmente dada e imponente. É certo que a experiência pode surgir ao contemplarmos um dado estado de coisas, por exemplo, um admirável céu azulado. Porém, o sentimento místico não se liga ao fato de que é isto que é o caso e não alguma outra coisa. De acordo com Wittgenstein:

Se, por exemplo, enquanto olho o céu azul eu tivesse esta experiência, poderia assombrar-me de que o céu seja azul em oposição ao caso de estar nublado. Mas não é isto que quero dizer. Assombro-me do céu seja lá o que ele for. Poderíamos nos sentir inclinados a dizer que estou me assombrando de uma tautologia, isto é, de que o céu seja ou não azul. Mas precisamente não tem sentido afirmar que alguém está se assombrando de uma tautologia. (CSE, p.221)

O sentimento de assombro seria dizível se relacionado a um fato particular, mas como se liga à totalidade, sem relação específica com as configurações atuais de objetos, a experiência é indizível e as sentenças que tentam expressá-la são tautológicas, ipso facto, sem sentido. Também o “sentir-se absolutamente salvo” é compatível com qualquer estado de coisas e por isso, junto com a experiência de assombro, gera frases tautológicas. Tautologias são sempre verdadeiras. Tomemos a frase “Chove ou não chove”. Se estiver chovendo, a frase é verdadeira; se não estiver chovendo, a frase também é verdadeira. Analogamente, quando as experiências de espanto ou segurança se dão, não importa se o céu está azul ou nublado, nem se estou diante de uma situação factualmente perigosa ou inofensiva. As experiências são compatíveis com todas as situações possíveis. O que é o caso não importa, mas sim uma espécie de relação entre a esfera valorativa e o sujeito.

Como discutido a pouco, a expressão linguística destes sentimentos contém um mal uso das palavras (e outras similares) “seguro”, “assombro” e, no presente caso, “culpa” ou “culpado”. É semanticamente lícito dizermos que somos culpados de algum erro, má ação ou mesmo culpados por não executar algo que era de nossa responsabilidade. Em todos estes casos há uma ação específica com a qual a culpa se relaciona. Porém, a expressão “absolutamente culpado” é claramente um abuso linguístico, dado que não faz sentido dizer que alguém esteja em permanente estado de culpa, sem que tenha feito algo pelo qual possa ser responsabilizado. A experiência de estar sob a constante desaprovação de Deus, de “sentir-se culpado sem ser culpado” é, de tal modo, contraditória e indizível. Podemos colocar as coisas do seguinte modo: enquanto as experiências tautológicas – assombro e segurança - são compatíveis com todas as situações possíveis, a experiência contraditória de sentir-se absolutamente julgado por Deus é incompatível com o que quer que seja o caso; não existe uma situação da qual se possa dizer: “sim, é por isso que me sinto culpado”. Diante disto, este sentimento pode ser considerado o “reverso” dos primeiros, como diz Pandey (cf. 2009, p.101) e também Barret (cf. 1994, p.122).

Há um motivo mais perspicaz para considerarmos o sentimento de culpa como o ‘reverso’ dos outros sentimentos místicos do que a forma contraditória ou tautológica que suas expressões linguísticas assumem. Observem que ao invés de evidenciar a grandiosidade da esfera valorativa, o sentimento de culpa (e em certa medida também o sentimento de anseio) colocam o foco na pequenez e miséria do indivíduo. A grandeza do âmbito indizível certamente está em questão, porém o que gera o sentimento de culpa não é somente a contemplação do Místico,

mas também a desvalorização do indivíduo frente a ele. Diante da realidade não-factual, cuja superioridade é absoluta, única capaz de possuir valor, responsável em dar significância à vida e ao mundo, o indivíduo se apequena e experimenta uma depreciação em relação a si mesmo. Isso é muito próximo daquilo que Rudolf Otto chamava de “sentimento de criatura”, no qual “a pessoa afunda e se funde em seu próprio nada e sua pequenez. Quanto mais clara e desnuda ela reconheça a magnitude de Deus, mais nítida se lhe torna sua pequenez” (OTTO, 2005, [1917], p.32). Em termos wittgensteinianos, seguindo Barret (cf. 1994, p.122), podemos dizer que o sujeito tomaria consciência do seu lugar inadequado no esquema das coisas: ao mesmo tempo que consegue ligar-se à realidade mística através de um Self metafísico, percebe que, enquanto corpo e pensamento, pertence também ao âmbito não valorativo dos fatos. Neste sentido, seria mais um sentimento de imperfeição essencial do que culpa, conforme exposto por Wittgenstein nesta passagem de Cultura e Valor:

As pessoas são religiosas ao ponto de acreditarem que nem sequer são imperfeitas, mas doentes. Qualquer homem de uma decência mediana considera-se extremamente imperfeito, mas um homem religioso considera-se um desgraçado. [...] Um homem é, pois, capaz de um tormento infinito e, por isso, pode também necessitar de um auxílio infinito. A religião cristã é apenas para quem necessita de um auxílio infinito, isto é, exclusivamente para quem sente um tormento infinito. (CV, p.72 – grifo nosso)

Dessa forma, a experiência de culpabilidade absoluta pode ser vivenciada quando o sujeito se dá conta de sua condição vivencial desafortunada e de sua insignificância frente à realidade valorativa não factual. Há uma espécie de estupefação diante daquilo que é - diferente do sujeito - supremamente moral e perfeito (cf. FRONDA, 2010, p.36). A alusão de Wittgenstein ao cristianismo e a concordância de alguns comentaristas (cf. FRONDA, Idem, Ibidem; BARRET, 1994, 120-ss; PANDEY, 2009, p.100) nos possibilita ilustrar à ideia aproximando a vivência em questão com àquela comum em determinados contextos teológico-religiosos. Instâncias da experiência podem ser visualizadas, por exemplo, em inúmeros trechos bíblicos, especialmente àqueles em que o empequenecimento do sujeito é culminante. Devido a imponente presença da realidade mística valorativa e o reconhecimento da própria debilidade moral, Isaías exclama: “Ai de mim! Pois estou perdido; porque

sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de lábios impuros; os meus olhos viram o Senhor” (BÍBLIA, Isaías 6:5). Pedro, por sua vez, diz: “Senhor, aparta-te de mim, sou um homem pecador” (Idem, Lucas 5:8)49. Nestes contextos teológicos, não faz sentido perguntar qual

a situação factual específica que gera o “sentimento de culpa absoluta” em Pedro ou Isaías. A experiência é imediata, a partir da contemplação do Místico. A inexistência de um fato particular que seria a causa suficiente da experiência, aproxima estes casos teológicos paradigmáticos do sentimento contraditório de “sentir-se culpado sem ser culpado” exposto na CSE e discutido neste tópico.

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 160-164)