• Nenhum resultado encontrado

3.4 A Metáfora da Escada

3.4.2 Projetando a Vontade Sobre a Totalidade

3.4.2.1 Assombro

Iniciemos com a exposição da experiência par excellence. Para Wittgenstein, o sentimento ou a percepção de que existe algo ao invés do nada deve nos levar a uma pausa e inspirar contemplação. A presença necessariamente dada do mundo, a existência deste ser que se opõe não a alguma outra combinação factual, mas ao nada absoluto, deve mover o sujeito à uma profunda admiração. “O Místico não é como o mundo é, mas que ele é” (TLP, 6.44). O ponto é apresentado de forma mais contundente na CSE, conforme vimos ao discutir a segunda analogia de Malcolm. Mesmo sabendo que as expressões verbais utilizadas para expressar experiências místicas ou de valor absoluto carecem de sentido, Wittgenstein nos diz que o assombro gerado ao se contemplar a presença bruta do mundo, leva-o a utilizar frases exclamativas do tipo “que

extraordinário que as coisas existam” ou “que extraordinário que o mundo exista” ou ainda “a existência do mundo é um milagre”.

Um ponto interessante que nos ajudará a compreender melhor o assunto é a interpretação sugerida por Wittgenstein sobre o tema teológico da criação. O filósofo nos diz que em contextos religiosos devemos compreender a sentença “Deus criou o mundo” como uma forma possível e válida de expressar linguisticamente a experiência mística de assombro diante da existência do mundo (cf. CSE, p.222). De tal modo, as doutrinas da criação não devem ser interpretadas como formas de explicar a origem do universo, no sentido de que Deus, entendido como um fato supra- empírico, seria um mero motor causal gerador dos objetos e de suas combinações factuais. De um ponto de vista wittgensteiniano, esta abordagem explicativa seria equivocada por vários motivos. Primeiramente, não é possível dizer nada significativo de uma realidade que transcenda o mundo. O espaço lógico limita-se a cobrir todas as possibilidades de combinações factuais. Dito de outro modo, a lógica não ultrapassa os limites do mundo, impossibilitando até mesmo pensamentos sobre o “outro lado” do limite: “o que não podemos pensar, não podemos pensar; portanto, tampouco podemos dizer o que não podemos pensar” (TLP, 5.61). Além do mais, Deus não se revela no mundo. O ponto do filósofo frente à temática da criação é muito mais sutil e penso que melhor compreendido quando aproximado dos comentários tecidos por Wittgenstein sobre a ética de Schilick. Nestes comentários, Wittgenstein nos diz que Schilick dividia a ética teológica em duas vertentes, cada uma explicando ao seu modo a essência daquilo que é bom. A primeira sustenta que o bem é bom porque Deus assim o quer; de acordo com a segunda Deus quer o bem porque ele (o bem) é bom. Schilick dizia que a primeira vertente é superficial e a segunda mais profunda. Porém, Wittgenstein considera que:

A primeira concepção é a mais profunda: O bem é o que Deus manda. Isto corta o caminho a qualquer outra explicação que se queira dar sobre “por que” o bem é bom, enquanto que a segunda concepção é superficial e racionalista, porque procede como se aquilo que é bom se pudesse fundamentar. [...] Se alguma proposição expressa precisamente o que eu quero dizer é: o bom é o que Deus manda. (WCV, p.102)

O que está em jogo aqui é a essência não factual da ética - e do âmbito valorativo em geral - e consequentemente a impossibilidade de

explicações mediante proposições significativas. Não há fundamentação científica da ética ou da religião, dado que a ciência descreve os fatos do mundo e aquelas esferas não são factuais. Como dissemos ao discutir a quarta analogia de Malcolm, Wittgenstein rejeitava veementemente as tentativas de teorizar a religião e a apresentação de argumentos visando provar a existência de Deus. Diz a Drury que “ficaria amendrontado” caso o amigo buscasse alguma justificação teórica para as “crenças cristãs, como se algum tipo de prova fosse necessária” (DRURY, 1984, p.123). Além do mais, (permitam-me repetir algumas citações), vários trechos podem ser utilizados para ilustrar o tema: “Estava Agostinho errado quando invocava a Deus em cada página das Confissões? [...] ou outro qualquer, cuja religião expressa concepções completamente diferentes? Nenhum deles estava errado. Exceto quando afirmavam uma teoria” (ORF, p.193. Grifo nosso), ou ainda “Creio que uma das coisas que o Cristianismo afirma é que as boas doutrinas são todas inúteis. Importa, sim, mudar a vida, ou a direção da tua vida” (CV, p.82). Nunca é demais lembrar que isto não é um mero artifício de Wittgenstein para proteger o Místico das intromissões da ciência. A conclusão leva em conta a teoria tractatiana do sentido e é uma consequência dela. Esta mesma ideia está presente na interpretação wittgensteiniana das doutrinas da criação, como temos apontado. A teologia não pode ser ciência de Deus e explicar a existência do mundo via um mecanismo causal ou quase-causal43. E isto

não apenas porque a ciência é essencialmente ligada a descrição dos fatos, mas também porque a explicação científica não retira o sentimento místico, ou, mais precisamente, não retira o sentimento místico do sujeito volitivo capaz de ver o mundo corretamente. Wittgenstein diz que é uma “tola superstição de nosso tempo” achar que “a explicação científica pode eliminar o estupor” (CV, p.18-19). Veremos isso com mais detalhes daqui a pouco, quando discutirmos o sentimento de anseio, presente mesmo depois que todas as questões científicas fossem respondidas. Por ora, queremos enfatizar que sentenças do tipo “Deus criou o mundo” podem ser utilizadas desde que não visem um fim meramente explicativo, mas sim como tentativas de expressão da experiência indizível, espantosa e inexplicável, de que existe um mundo ao invés do nada.

Teorias científicas e cosmológicas sobre a origem do universo não buscam explicar por que existe o mundo, mas sim qual o “primeiro estado” do universo e como todas as outras coisas teriam se desenvolvido a partir deste. Ou seja, tais teorias são apenas descritivas. No entanto, a

43 É lícito, porém, um discurso teológico com fins práticos, como veremos no próximo capítulo.

descrição dos fatos do mundo e as inúmeras maneiras nas quais os objetos se unem em combinações factuais são irrelevantes para o sentimento místico. O como não lhe interessa. O como diz respeito a uma pluralidade de objetos configurados de determinadas maneiras, porém uma pluralidade não pode ser contemplada - não apenas por dissipar a atenção necessária à contemplação, mas principalmente por ser insignificante. De acordo com Wittgenstein: “Como coisa entre coisas, cada coisa é igualmente insignificante; como mundo cada uma é igualmente significativa” (NB, 08/10/1916). Contemplar algo “como um mundo” é contemplar uma totalidade. Aqui se esclarecem as duas maneiras possíveis nas quais o sujeito transcendental projeta sua intencionalidade sobre o mundo. Na primeira, como vimos, está em questão a determinabilidade do sentido de um ponto de vista semântico; o sujeito deve projetar sua vontade nas partes do mundo para lhes dar nomes. O foco está nas proposições e nos fatos com os quais estas serão comparadas, isto é, em determinadas porções do mundo e da linguagem tomadas isoladamente (cf. CUTER, 2006, p.185). No contexto místico, porém, é a totalidade que deve ser levada em conta. O sujeito, digamos, sobe um degrau, seguindo a metáfora da escada, e consegue ver mais uma característica da realidade. A substância do mundo, fundamental para a experiência lógica e para o sentido proposicional, é no âmbito místico contemplada no seu todo, sob a perspectiva da eternidade. A espantosa presença bruta deste ser absolutamente necessário à determinação semântica do sentido, se mostra agora como fonte de assombro e maravilhamento. Como não está em questão as relações lógicas entre partes da linguagem e do mundo, o que resta ao sujeito é uma experiência direta, contemplativa e silenciosa de algo dado, grandioso e que está aí.

Ilustrativamente, podemos recorrer a esta passagem de Cultura e Valor:

Se quem acredita em Deus olha ao redor e pergunta: “Donde vem tudo o que vejo?”, “Donde vem tudo isto?”, não anseia por uma explicação causal; a sua pergunta é, no essencial, expressão de um certo anseio. Ele expressa uma atitude face a todas as explicações. Mas como é que tal se manifesta na sua vida? (CV, p.124-125, grifos nossos)

Interessante no trecho supracitado é que ele contempla a experiência mística de assombro ante a existência do mundo e a tentativa de expressão desta experiência em determinados contextos religiosos.

Novamente vemos Wittgenstein dizer que as perguntas que estão na base dos discursos criacionistas não devem ser interpretadas como busca de explicações causais. O que está em jogo é “um certo anseio”, enfatiza o filósofo. Justamente esta experiência que chamaremos de “anseio” é que vamos discutir a partir de agora.

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 139-143)