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Objeções ao argumento de Zemach

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 95-101)

2.4 O Argumento de Zemach

2.4.4 Objeções ao argumento de Zemach

Apesar de interessante o argumento de Zemach contém alguns problemas e apresentaremos alguns destes a partir de agora. Elucidar esses problemas não visa apenas mostrar os erros do comentador. Queremos ressaltar que o mais importante é o fato de que estas objeções nos proporcionam a oportunidade de apresentar nossas opiniões sobre o assunto. Para tanto, iniciaremos pensando da seguinte maneira. A sentença dos Notebooks “Deus é como as coisas estão” faz muito mais sentido quando interpretada em relação ao mundo atual e não meramente relacionada às características formais de qualquer mundo possível. Neste ponto em específico, a proposta interpretativa de Garver parece muito mais plausível do que a de Zemach32. Conforme a nossa discussão, Garver

insistia nas consequências éticas de tais sentenças e na ideia de que Deus deve ser identificado com o mundo compreendido como “Destino”, como algo independente de nossa vontade, e isto nos levaria a concluir que o termo está ligado às coisas como realmente estão, nas palavras de Glock (1997, p.255), ligado à “realidade bruta”. Características formais, exatamente por serem formais, são vazias de conteúdo e devido a isto não colocam nenhum problema ético ao sujeito. Zemach erra ao colocar Deus fora da esfera do valor, ignorando o fato de que o termo “sentido” (Sinn) ligado ao conceito “Deus” ou “mundo” ou “vida”, possui uma carga valorativa que não está presente quando Wittgenstein se refere ao sentido das figurações. Havíamos concedido este ponto em prol do argumento, mas o movimento é viciado desde o início.

Pois bem, se a cláusula “como as coisas estão” refere-se ao mundo atual, isto é, a soma total dos fatos que se apresentam arbitrariamente a um sujeito, então é excluída de seu escopo a infinidade de proposições sobre fatos possíveis mas não atuais. Este ponto traz consigo um problema complexo para a interpretação panteísta de Zemach. Veja, a forma proposicional geral, (ou seja, o próprio Deus, na exposição do comentador), é comum às proposições que afiguram os fatos atuais e também àquelas sobre fatos meramente possíveis. A forma proposicional geral não se restringe às proposições verdadeiras, mas é condição de possibilidade de toda e qualquer proposição. Existe, assim, uma discrepância na interpretação de Zemach, dado que nos Notebooks Deus estaria relacionado com a forma das proposições que afiguram fatos atuais e no TLP com a forma da totalidade das proposições, independentemente

32 No entanto, e como já vimos, a proposta de Garver gera problemas de outros tipos.

de afigurarem fatos atuais ou possíveis. Vemos que os dois conjuntos de proposições são diferentes, mais precisamente, o conjunto das proposições verdadeiras é menor e não idêntico ao conjunto de todas as proposições possíveis (cf. FRONDA, 2010, p.39). De tal modo, o argumento de Zemach não consegue solucionar o problema da inconsistência entre a aparente teologia imanente dos Notebooks e transcendente do TLP, pois seu argumento depende da interpretação formal e uniforme do termo “Deus” naqueles dois textos.

Além de tudo, se eu o compreendo corretamente, o argumento de Zemach não é nem mesmo válido. Segundo penso, ao menos duas falácias estão sendo cometidas. Comecemos com a primeira. Ao comentarmos o argumento de Malcolm discutimos um pouco sobre a estrutura dos argumentos analógicos. Grosso modo, em uma analogia deve-se mostrar que dois objetos O1 e O2, possuem algumas características em comum,

digamos C1, C2 e C3. Depois disso, dado que O1 possui a característica

C4, conclui-se que O2 também, provavelmente, deve possuir C4. O

importante aqui é perceber que as conclusões de argumentos analógicos são provavelmente verdadeiras, e não necessariamente verdadeiras, dado que a forma do argumento não é dedutiva. Além disso, apesar de complexo em determinados contextos, é preciso estarmos atentos às diferenças relevantes entre O1 e O2 que poderiam enfraquecer a analogia

até o ponto da implausibilidade. Assim, uma forma falaciosa de um argumento analógico poderia ser exposta assim:

P1. Sócrates é filósofo, grego e sábio. P2. Platão é filósofo, grego e sábio. Logo: Platão e Sócrates são o mesmo.

Vemos neste exemplo que as diferenças relevantes entre Platão e Sócrates não são levadas em conta e a conclusão “são o mesmo” não se segue das premissas. A meu ver esta é a forma falaciosa do argumento de Zemach. O comentador conclui que Deus e a forma proposicional geral são o mesmo, partindo da ideia de que ambos não são fatos do mundo, mas de alguma maneira mostram-se através dos fatos. Ora, isso no máximo nos mostraria que Deus e a forma proposicional geral compartilham características ou pertencem a um mesmo domínio, mas não que são o mesmo, como erroneamente pensa Zemach. Concordamos com Fronda que explica este ponto dizendo que no TLP só é possível identificarmos Deus com, mas não Deus como. De acordo com ele, “se X é identificado como Y, então X é Y. Se X é identificado com Y, então X de alguma maneira compartilha uma propriedade ou pertence a um domínio comum ou é de alguma maneira relacionado com Y” (FRONDA,

2010, p.39). Zemach falaciosamente conclui que Deus é idêntico à forma proposicional geral, quando só poderia ter concluído que eles compartilham a característica de não serem fatos do mundo.

Algum objetor contumaz poderia aplicar algo como a Lei de Leibniz, o princípio da identidade de indiscerníveis (cf. BRANQUINHO, et al, 2006, p.391-ss), tentando com isso salvaguardar o argumento de Zemach. Poderia dizer que não conseguimos diferenciar Deus da forma proposicional geral e isso de alguma maneira contaria a favor da conclusão de Zemach. Essa proposta é absurda pois a lei de identidade dos indiscerníveis só se aplica a objetos individuais e nem Deus nem a forma proposicional geral seriam algum tipo de objeto (cf. TLP, 6.432). Além disso, o fato é que nós conseguimos diferenciar Deus da forma proposicional geral. Aquilo que se mostra e não pode ser dito pertence ou às condições de possibilidade do dizer ou à esfera do valor. Deus pertence à esfera daquilo que se mostra e tem valor, enquanto a forma proposicional geral estaria na esfera daquilo que se mostra mas não tem valor, isto é, no âmbito da essência da representação linguística. Embora igualmente indizíveis, eles podem ser diferenciados, pois o domínio da forma lógica vincula-se com as expressões simbólicas e o domínio do valor vincula-se com a vontade do sujeito (cf. MORENO, 2001, p.236).

A segunda falácia de Zemach também é relacionada com o esvaziamento valorativo do termo “sentido”. Vimos que um dos passos da sua inferência visava solucionar o dilema gerado ao considerarmos o mundo em sua totalidade como uma figuração de Deus. Sendo que neste caso considera-se a totalidade dos fatos como uma figuração, não existiria nenhum outro fato para ser afigurado. A consequência, segundo Zemach, seria a seguinte: ou o mundo é uma figuração de si mesmo, o que é impossível (cf. p. ex. TLP, 3.332), ou o mundo é uma figuração de um fato que está fora do mundo, o que também é impossível (cf. p. ex. TLP, 1-1.21). Estaríamos diante do absurdo de que Deus deve ser um fato que não está nem dentro e nem fora do mundo. Diante disso, como visto, Zemach soluciona o dilema dizendo que Deus é a forma do mundo, posteriormente concluindo que Deus e a forma proposicional geral são o mesmo. Ora, as opções colocadas por Zemach não esgotam as possibilidades. Não precisamos concluir que Deus é a forma do mundo devido à razão de que ele não é um fato dentro do mundo nem um fato fora do mundo. Podemos concluir, mais plausivelmente, que ele não é um fato (e, claro, a fortiori, estaria fora do mundo). É certo que ao considerarmos a totalidade dos fatos não teríamos mais nenhum fato para ser figurado e a impossibilidade de auto referência gera o problema apontado por Zemach. No entanto, a conclusão de que Deus é a forma do

mundo não se segue desse problema. Pode-se argumentar (como faremos mais a frente) que a totalidade dos fatos mostraria uma esfera valorosa que não pode ser expressa proposicionalmente. Como os fatos do mundo possuem uma estrutura capaz de ser representada na linguagem, a sentença “Deus está fora do mundo” implica que não é possível dizermos algo significativo sobre Deus. De tal modo, ao invés de assumirmos que sentido e forma são o mesmo no caso específico do sentido do mundo, como faz Zemach, pode-se dizer, simplesmente, que o sentido não está no mundo. Esta nossa conclusão é consistente com passagens dos Notebooks e do TLP, como por exemplo, estas:

O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo tudo é como é e acontece como acontece: nele não há valor — e se houvesse, o valor não teria valor. (TLP, 6.41)

Como o mundo é, é para o que está acima [das Höhere], completamente indiferente. Deus não se revela no mundo. (TLP, 6.432)

Crer num Deus significa compreender a questão do sentido da vida. Crer num Deus significa perceber que ainda nem tudo está decidido com os fatos do mundo. Crer em Deus significa perceber que a vida tem um sentido. (NB, 08/07/1916)

Para que nosso ponto fique mais claro tomemos a seguinte citação do artigo de Zemach:

Nós temos visto que nenhuma “forma de representação” (“método de projeção”) pode ser dado para o mundo como um todo. Vimos que, se existisse tal método, algum fato poderia ter sido figurado pelo mundo. Este fato deveria estar localizado fora do mundo, mas isto é impossível, desde que o mundo é a totalidade de todos os fatos. Daí que nenhum método de representação pode ser dado, e a questão sobre o sentido da vida não pode ser respondida. O sentido do mundo é idêntico com sua forma (= Deus). (ZEMACH, 1966, p.367. Grifo nosso)

O que estamos dizendo é que a conclusão (grifada na citação) não se segue das premissas. Mais importante do que isso, queremos explicar o que realmente se segue do fato de não se ter, neste caso, um método de

projeção. Tal explicação, segundo nossa maneira de pensar, capta melhor as ideias sobre o Místico no TLP33. Pois bem, Zemach relaciona a

factualidade do mundo, ou seja, o que o mundo existe (TLP, 6.44), com a totalidade dos fatos, e acha que com isto estaria oferecendo uma “figuração” do mundo. Do fato de não podermos ligar os elementos da figuração à realidade, pois toda realidade já estaria inclusa na figuração e assim não há nada para ser afigurado, Zemach conclui que o sentido desta figuração é a sua forma, e a fortiori Deus, pois “Deus é o sentido do mundo” (NB, 11/06/1916). Mas percebam que este não é um caso em que o sujeito busca comparar a figuração com a realidade para verificar o seu sentido (“sentido” no sentido lógico-semântico). O que está em jogo aqui não são as figurações e os fatos com os quais devemos compará-las, pois, no âmbito místico, não é uma porção do mundo e da linguagem que deve ser levada em conta, nem mesmo uma totalidade compreendida como o conjunto de todos os fatos, dado que nesta esfera o sujeito não visa compreender qual nome representa qual objeto, mas contemplar o mundo sub specie aeterni34 (cf. TLP, 6.45; NB, 07/10/1916). Com os termos de

Wittgenstein na CSE, poderíamos dizer que o sujeito teria uma experiência de valor absoluto inexpressável proposicionalmente, gerada por uma espécie de assombro frente a existência bruta da mundo (cf. CSE, p.220)35. Neste contexto, o mundo seria contemplado do ponto de vista

da eternidade, subsumido a ela (cf. CUTER, 2006, p.185-186). Por este motivo, neste ponto em específico, não faz sentido falarmos de um método de projeção.

Vamos esclarecer melhor. Um método de projeção só é necessário quando comparamos dois fatos, a saber, a figuração e o afigurado. Tal método seria como que a “legenda” do modelo, relacionando os elementos dos dois fatos uns com os outros, por exemplo, este bloco de madeira representa o veículo 1, este boneco representa aquele pedestre, ou no nível proposicional, “a” é o nome do objeto a, e assim por diante. Dado que no caso do “sentido do mundo” não está em questão a relação lógica entre os elementos dos fatos, ou seja, o como o mundo está

33 É importante ressaltar que os parágrafos restantes desta seção apresentam apenas um sumário da minha discussão sobre o Místico e a religião no primeiro Wittgenstein. Vários termos e argumentos que aparecem nestes parágrafos serão explicados posteriormente.

34 Este, por exemplo, é um dos termos que precisará ser explicado mais a frente, conforme dito na nota anterior.

35 Discutimos um pouco deste assunto ao tratarmos da segunda analogia de Malcolm.

configurado (TLP, 6.432), não faz sentido um método de projeção. Resta então ao sujeito uma experiência direta, um ver, um contemplar. Isso é coerente com as passagens nas quais Wittgenstein equaciona a ética e a religião com a estética. Por exemplo, no TLP “Ética e Estética são uma só” (6.421), e na CSE “vou usar a palavra Ética num sentido um pouco mais amplo, um sentido, na verdade, que inclui a parte mais genuína, em meu entender, do que geralmente se denomina Estética” (CSE, p.216). A religião, por sua vez, liga-se ao contexto místico ao percebermos que as entradas sobre “Deus” dos Notebooks e do TLP estão mescladas com as reflexões sobre a ética e o sentido da vida e, na CSE, Wittgenstein transita entre a ética e a religião de uma forma que relevantemente nos mostra que ambas pertencem a um domínio comum. Além disso, podemos recorrer a esta passagem de Cultura e Valor: "O que é bom é também divino. Por mais estranho que tal possa parecer, essa afirmação resume a minha ética. Só algo de sobrenatural pode expressar o sobrenatural. [...]. O bem reside fora do âmbito dos factos." (CV, p.15).

Isso não significa que farei uma leitura meramente “estetizada” do Místico, no sentido de que nesta esfera somente caberia uma contemplação silenciosa, na qual o silêncio seria até mesmo moralmente exigido. Segundo penso, a contemplação silenciosa é apenas uma das possibilidades. De acordo com a teoria pictórica, as proposições só são significativas se afiguram fatos do mundo. Por não existirem fatos no campo valorativo o silêncio respeitoso fica sempre como uma possibilidade em aberto. Por outro lado, isso não significa que não possamos falar do valor (cf. DALL’AGNOL, 2005, p.70). Neste caso, as sentenças não são significativas por afigurarem situações do mundo, mas sim pela relação com as vidas e as condutas daqueles que as utilizam (cf. LAZENBY, 2006, p.14). Iremos aprofundar estas duas possibilidades nos próximos capítulos, nos quais fundamentaremos nossa interpretação da frase-W. Mais especificamente, no capítulo 3 falaremos da indizibilidade e do silêncio contemplativo e no capítulo 4 do sentido prático das sentenças valorativas. Por ora, nosso intuito foi mostrar que um dos erros de Zemach foi retirar a discussão sobre o sentido da vida do âmbito valorativo. O “mundo” de Zemach, que Deus enquanto forma proposicional geral seria o sentido, é exclusivamente o mundo do aforismo 1.1, ou seja, uma totalidade de fatos. É certo que (em um sentido) o mundo é uma totalidade de fatos, mas é também algo dado a um sujeito que precisa nele viver; em outras palavras, o mundo é também algo que se relaciona de alguma maneira com a vontade do sujeito. Ao explicar o sentido do mundo da maneira que fez, Zemach deixa a vida e a vontade do sujeito de fora. Muito mais plausivelmente o “mundo” que

se busca o sentido é o “meu mundo” (TLP, 5.62), e deste podemos dizer: “O mundo e a vida são um só” (TLP, 5.621). Com tudo que dissemos até aqui, esperamos ter mostrado que a proposta panteísta de Zemach não se sustenta.

No documento O ponto de vista religioso de Wittgenstein (páginas 95-101)