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Se fosse um município, o Grande Bom Jardim (GBJ) seria o terceiro maior do Estado do Ceará em densidade populacional, com mais de 204 mil habitantes distribuídos em mais 56 mil unidades habitacionais, conforme o Censo de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)92. A região é formada por cinco bairros oficiais da capital cearense: Bom Jardim, Canindezinho, Granja Lisboa, Granja Portugal e Siqueira.

Pobre e periférica, a região se originou de ocupações irregulares e, posteriormente, de assentamentos e loteamentos populares. Estes bairros foram sendo ocupados, entre as décadas de 1970, 1980 e 1990, especialmente, por populações que migraram do sertão e do litoral cearense, em busca de oportunidades de emprego e condições e mínimas de moradia. Quando chegaram,

92 Dados podem ser encontrados na base online do IBGE, no Sistema IBGE de Recuperação Automática (SIDRA), na localização Resultados do Universo - Características da População e dos Domicílios. Para verificação, acessar:

“as condições básicas de infraestrutura dos bairros eram inexistentes, ou mesmo hoje, ainda estão distantes dos parâmetros consagrados em convenções políticas e jurídicas como básicos e mínimos existenciais” (CARLOS, 2014, p.31-32).

Ao longo dos anos, a região foi acumulando uma série de problemas estruturais que não foram solucionados pelo Município ou pelo Estado, o que explica as precárias condições de habitabilidade atuais. A sua localização geográfica também se configura como um problema para as políticas públicas, conforme analisa Carlos (2014):

Os bairros do território GBJ são localizados na Secretaria Executiva Regional V, situado na região sudoeste de Fortaleza. Como região periférica da cidade, GBJ caracteriza-se por ser uma franja peri-urbana, tendo conflitos de limitação intermunicipal nos bairros Siqueira e Granja Lisboa, com os respectivos municípios da Região Metropolitana de Fortaleza, Maracanaú e Caucaia. Esse fator interfere diretamente no provimento das políticas públicas e no acesso a equipamentos e serviços que realizam os direitos sociais básicos. (CARLOS, 2014, p. 26).

Com a implantação de diversos conjuntos habitacionais na área ao longo dos últimos anos, o Grande Bom Jardim viu a demanda por serviços públicos se multiplicar. A questão, inclusive, é discutida pela professora de Arquitetura e Urbanismo da UFC, Clarissa Freitas, no episódio Fronteira Esquecida da websérie Cartas Urbanas:

É uma área já com deficiência de infraestrutura e equipamentos, que tem recebido uma demanda maior que tem pressionado as redes existentes que já eram deficientes, de mobilidade, inclusive. É o caminhão do lixo que não entra porque as vias são pequenas e agora está se produzindo muito mais lixo lá. É o esgoto, o ônibus, não se amplia a linha do ônibus”.93

O Grande Bom Jardim é um símbolo da pobreza e do descaso do Poder Público em Fortaleza. Estudo divulgado em 2012 pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece)94 mostra que os cinco bairros que compõem esta região se colocam no ranking dos 10 mais pobres da Cidade. Enquanto a renda média mensal das pessoas com 10 anos ou mais que moram no bairro Meireles, primeiro colocado na lista, era de R$ 3.659,54, no Canindezinho, antepenúltimo no ranking, era de apenas R$ 325,47, isto é, 11 vezes menor.

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Transcrição de fala do episódio Fronteira Esquecida, da websérie Cartas Urbanas, disponível no link:https://vimeo.com/album/3893619/video/162528659.

94 Estudo pode ser conferido no link: http://www.ipece.ce.gov.br/informe/informe%2042-

Figura 5: Rua do Grande Bom Jardim

Fonte: reprodução da websérie Cartas Urbanas, do coletivo Nigéria.

Essa pobreza se reflete nos índices de violência na região. O GBJ é uma área estigmatizada pelo número sempre elevado de homicídios, especialmente entre jovens. Dominados pelo tráfico de drogas, estes bairros sofrem com o extermínio diário de sua juventude. O pesquisador Caio Anderson Carlos (2014) realizou dissertação na qual reúne dois bancos de informações, sendo um sobre a produção acadêmica que trata do Grande Bom Jardim e outro sobre a cobertura dos jornais impressos nos anos de 2003 a 2013, nos jornais O Povo e Diário do Nordeste, do Estado do Ceará. Sobre os resultados, aponta:

A associação a lugar perigoso, violento e as narrativas de crime é um dos principais referentes discursivos sobre Grande Bom Jardim, responsável pela atenção pública do território, como também pela conexão entre os discursos do estado, da academia e da mídia. Internamente, projetou imputações e demarcações morais nos mapas e fronteiras entre ‘comunidades / favelas / bairros’ e seus moradores, como também cimentou estigmas, desprestígios e indignidade territorial. (CARLOS, 2014, p. 33- 34)

Juntamente com a pobreza e a violência, a população do Grande Bom Jardim convive com uma série de problemas de infraestrutura, com destaque para a falta de saneamento básico em diversos territórios.

Figura 6: Rua da comunidade Nova Canudos, no GBJ

Fonte: reprodução da websérie Cartas Urbanas, do coletivo Nigéria.

A juventude também reclama da falta de políticas públicas para este segmento da sociedade, que poderiam contribuir para a redução dos índices de marginalidade no território. Carlos (2014) destaca que esta miríade de problemas encontrados nesta região contribui para gerar um cenário de enorme vulnerabilidade para a população local:

A vasta desproteção de um assentamento humano considerável na conformação de uma metrópole, como do GBJ para Fortaleza e sua região metropolitana, em relação às garantias de trabalho, saúde, saneamento ambiental, educação, a situação e qualidade das moradias, como o intercruzamento desse contexto com a insegurança em relação à integridade física e as garantias de segurança, produzem uma cena de hipervulnerabilidade (...). (CARLOS, 2014, p. 31)

“Viver em risco” é como o autor define a realidade do cotidiano dos moradores desta região. Diante de tantas adversidades, a população destes cinco bairros é reconhecidamente ativa em mobilizações sociais. O envolvimento dos moradores destes cinco bairros em movimentos sociais remonta aos períodos iniciais da ocupação da região. Desamparados pelo Poder Público, estes sujeitos começam a se organizar por meio da Igreja Católica, em uma época que, dirigida pelas ideias da Teologia da Libertação95, esta envolvia-se na luta das classes subalternas por condições dignas de vida. Como aponta Almeida (2014):

95 Corrente surgida na década de 1960 como um movimento teológico que pretendia adequar a Igreja Católica latino-americana à sua realidade social e cultural. “O paradigma para essa nova prática pastoral foi o Concílio

O tecido social do Grande Bom Jardim é composto de organizações associativas que tem como líderes de seus quadros de associados moradores locais formados pelos movimentos comunitários de base pastoral, animados pelas congregações missionárias, eclesiásticas e progressistas, que estiveram, enquanto representantes da igreja católica, à frente das paróquias da periferia entre 1981 e 1996. No caso do Grande Bom Jardim, estes moradores associados emanaram das camadas populares, tiveram formação política e ocuparam lugares de lideranças pela força da contingência local. Depois de desmantelada a estrutura progressista da igreja católica na condução das áreas pastorais das paróquias das periferias urbanas e rurais do Brasil, esses moradores foram responsáveis pela criação e pelo fortalecimento das Organizações Não Governamentais ainda hoje atuantes no Grande Bom Jardim (...) (ALMEIDA, 2014, p. 78).

Entre estas organizações, destacam-se o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza (CDVHS)96 e a Rede de Desenvolvimento Sustentável do Grande Bom Jardim (Rede DLIS), entidades nas quais dois dos personagens entrevistados nesta pesquisa já se envolveram ou ainda estão envolvidos. A primeira surgiu em 1994, proveniente da ação de grupos e pessoas advindas das Comunidades Eclesiais de Base. A organização trabalha na denúncia das violações de direitos, tendo se concentrado na defesa do direito à educação de crianças e adolescentes, na organização comunitária e na formação em direitos humanos. “(...) o CDV foi um ente que necessitou se institucionalizar para mediar as relações entre os variados movimentos existentes e atuantes na região, dentre eclesiais e populares, com ligações religiosas, partidárias e sindicais” (Idem, p. 141). Conforme o autor, o CDVHS funcionou inicialmente como um balcão de informações, que orientava a população no acesso ao serviço burocrático do Estado. Em seguida, estruturou sua intervenção institucional no setor da educação.

Vaticano II, em 1962, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín, na Colômbia, em l968, e a III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano

em Puebla, no México, em 1979.

A partir do Concílio Vaticano II e das II e III Conferências do Episcopado Latino-Americano, houve uma ruptura da Igreja latino-americana com a teologia tradicional, de mentalidade colonizadora. “Podemos dizer que a Igreja passou a identificar-se com as camadas subalternas latino-americanas, que eram fustigadas em sua realidade social e econômica pelo capital” (NUNES, 2014, p. 16).

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Organização não governamental que trabalha junto a comunidades carentes na promoção dos direitos humanos, capacitação para a cidadania, programa de renda mínima, assistência à criança e ao adolescente, educação, cultura e conscientização política.

Já a Rede DLIS é resultado da articulação do CDVHS. De acordo com documento97 produzido pelos próprios integrantes, a rede:

é uma instância de articulação de lutas envolvendo 61 entidades e movimentos demandando questões específicas de cada bairro, consensuando atuações no que diz respeito ao conjunto da região e da Cidade. Teve início em dezembro de 2003 e vem atuando até hoje num processo de diagnóstico, planejamento e monitoramento de políticas públicas de efetivação de direitos humanos nos cinco bairros da Região: Bom Jardim, Canindezinho, Granja Lisboa, Granja Portugal e Siqueira, que reúne [atualmente] um contingente populacional de 204 mil habitantes e fica situada na área administrativa da Regional V. Tem como visão de desenvolvimento alcançar, até 2025, a Região como um lugar bom para se viver, fortalecendo a identidade, a história e a memória desse lugar, valorizando as potencialidades humanas, culturais, artísticas, paisagísticas e ambientais nas diferentes gerações. (Plataforma de Lutas Prioritárias do Grande Bom Jardim, Jangurussu e Ancuri, 2012: 4)

A partir da mobilização destas entidades, nesta busca por melhores condições de vida, surgiu a luta pela criação da Zona Especial de Interesse Social (Zeis)98 do Grande Bom Jardim. Com a implantação do instrumento, os moradores esperam resguardar o acesso à terra urbanizada, à segurança na posse e o direito à moradia adequada e com equipamentos sociais satisfatórios. A Zeis do Bom Jardim, contudo, ainda não foi oficializada pelo Poder Público Municipal. Esta é a questão central do episódio Fronteira Esquecida, da websérie Cartas Urbanas, e essa discussão, juntamente a outras que envolvem a realidade do GBJ, serão discutidas aqui através dos depoimentos dos personagens desse episódio, tanto por meio de suas falas na websérie, como naquelas obtidas em entrevistas realizadas para esta pesquisa.