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O cenário remete ao caos, em meio a uma bolha de prosperidade que é o bairro Aldeota, um dos mais ricos de Fortaleza, capital do Estado do Ceará. A antiga comunidade Trilha do Senhor – instalada em zona nobre, mas com problemas que mais se associam às periferias, historicamente esquecidas pelas administrações públicas da Cidade – encontra-se aos escombros. Algumas famílias resistem. Outras, já saíram.

A comunidade começou a ser retirada da área por conta do projeto do Governo do Estado de instalação de um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que iria dos bairros Mucuripe a Parangaba, percorrendo 13,4 quilômetros e passando por aquela região. A obra fazia parte dos planos do Estado para a Copa do Mundo de 2014. Mas, em maio daquele ano, elas foram interrompidas, com menos de 50% do projeto executado. Várias casas foram demolidas e as famílias retiradas. As que ficaram, passaram a viver em meio às ruínas, lixo e esgotos a céu aberto que restaram no local.

A história é contada através de alguns moradores da Trilha do Senhor no vídeo Comunidade em Ruínas, que integra a websérie Cartas Urbanas, do coletivo Nigéria, produção que engloba seis episódios. O citado episódio começa narrado por Cássia Sales, ex-moradora da ocupação e que, à época da gravação do vídeo, em 2015, já havia sido desapropriada. Sentada sobre as ruínas do que antes fora sua casa, ela escreve uma carta na qual fala sobre os problemas da comunidade: “fomos muito felizes, lutamos muito para continuar aqui. No entanto, não pudemos continuar”.

Em um debate após a primeira exibição do documentário, em abril de 2016, em uma sala de cinema central em Fortaleza, Cássia, lá presente, disse: “é um desabafo participar do vídeo”. Na ocasião, ela afirmou que havia “participado ativamente da produção” do audiovisual ‒ ainda que esta participação tenha contemplado apenas a escrita da carta sobre sua comunidade e o seu depoimento em entrevista ‒ e se disse contemplada no documentário: “a mídia [convencional]

nos procura muito na época das remoções. Nos entrevista, mas, na 'hora H', não mostra nada do que falamos, só o que favorece ao governo”20, relata.

Figura 2: Cássia Sales, ex-moradora da comunidade Trilha do Senhor

Fonte: reprodução da websérie Cartas Urbanas, do coletivo Nigéria.

Por que Cássia, assim como os demais moradores daquela comunidade, sentia a necessidade de aparecer nos veículos de mídia e apresentar sua luta pela moradia? Por que, além de (ou mesmo ao invés de) buscar os meios jurídicos de contestar aquela ocupação, aquelas pessoas buscavam a atenção e o apoio dos meios de comunicação? A resposta a estas questões está na necessidade que os movimentos populares e os grupos minoritários têm de obter visibilidade para que possam legitimar suas bandeiras.

A busca incessante é por visibilidade. No mundo globalizado, ter visibilidade tornou-se imprescindível aos movimentos, pois, como destaca Lacerda,

Na era da globalização, não basta realizar atividades concretas de cidadania: é preciso estar presente no imaginário social. Os diversos campos sociais elaboram estratégias para estar presentes na mídia, porta-voz desta era. Os movimentos sociais e organizações não-governamentais buscam essa visibilidade midiática como maneira de pressionar governos, partidos

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Fala realizada no dia 9 de abril de 2016, durante debate após lançamento dos três primeiros episódios da websérie Cartas Urbanas, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.

políticos e o mercado em relação à agenda social global. (LACERDA, 2012, p. 91-92)

Essa discussão é encampada por diversos autores da atualidade. Castells (1999, p. 368) reforça a afirmação de Lacerda ao defender que “tudo que fica fora do alcance da mídia assume a condição de marginalidade política”. Thompson (2011) explica essa necessidade de reverberação na mídia através do conceito de poder simbólico. Para o autor, o poder simbólico ou cultural nasce na atividade de produção, transmissão e recepção do significado das formas simbólicas. Segundo ele, esse poder é a capacidade de intervir no curso dos acontecimentos, de influenciar as ações dos outros e produzir eventos por meio da produção e da transmissão de formas simbólicas.

Desta forma, argumenta que, de forma profunda e irreversível, o desenvolvimento da mídia transformou a natureza da produção e do intercâmbio simbólicos no mundo moderno. A busca por esse poder se explica porque “as ações simbólicas podem provocar reações, liderar respostas de determinado teor, sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descrer, apoiar os negócios do estado ou sublevar as massas em revolta coletiva” (THOMPSON, 2011, p. 42).

A realidade vivida ali pelo moradores da Trilha do Senhor não chega a ser conhecida pela população de Fortaleza como um todo, porque esta não está em contato frequente com a situação vivida por aqueles moradores. Desconhecida, a luta não ganha apoio, não ganha força. Segundo Thompson (2011), a mídia criou o que ele chama de “mundanidade mediada”: “nossa compreensão do mundo fora do alcance de nossa experiência pessoal e de nosso lugar dentro dele está sendo modelada cada vez mais pela mediação de formas simbólicas” (THOMPSON, 2011, p. 61). Isto é, o que as pessoas chegam a compreender sobre realidades que não são exatamente as suas está diretamente relacionada com as mensagens repassadas pela mídia.

Quando fala de mídia, o autor se refere mais fortemente às mídias empresariais, em especial, de rádio, TV e jornal. É necessário ponderar que a obra em questão foi escrita em 1995, antes portanto do advento das mídias sociais digitais, que têm conseguido quebrar, de alguma maneira, esse monopólio sobre o poder simbólico das grandes empresas de mídia e, por isso, Cássia, como mostramos anteriormente, afirma-se satisfeita ao ver sua realidade apresentada através de uma mídia que não é a empresarial.

Com a publicidade mediada pelos veículos de comunicação, Thompson (2011) afirma que cresceu a importância da luta pela visibilidade na vida sociopolítica das sociedades no fim

do século XX. “Desde o advento da imprensa e especialmente da mídia eletrônica, lutas por reconhecimento se tornaram cada vez mais lutas pela visibilidade dentro de espaços não localizados de publicidade mediada” (THOMPSON, 2011, p. 310). O autor cita os movimentos feminista e dos direitos civis como exemplos de como direitos só conseguiram ser conquistados por meio de lutas pela visibilidade na mídia.

A evolução de tais movimentos também comprova o fato de que, ao conquistar algum grau de visibilidade na mídia, as reivindicações e preocupações de indivíduos particulares podem ter algum reconhecimento público, e por isso podem servir como um apelo de mobilização para indivíduos que não compartilham o mesmo contexto temporal-espacial. (THOMPSON, 2011, p. 310)

O autor dinamarquês Stig Hjarvard traz o conceito de midiatização para falar desse fenômeno contemporâneo da presença cada vez maior da mídia na vida das pessoas. “A sociedade contemporânea está permeada pela mídia de tal maneira que ela não pode mais ser considerada como algo separado das instituições culturais e sociais” (HJARVARD, 2012, p. 54). Conforme ele, as instituições sociais e os processos culturais mudaram de caráter, função e estrutura em resposta à onipresença da mídia. Exemplo disso é que protestos muitas vezes são orquestrados em lugares e horários de forma que possam garantir sua repercussão na mídia. As pessoas passaram a alterar seus comportamentos em função da onipresença da mídia.

Por midiatização da sociedade, entendemos o processo pelo qual a sociedade, em um grau cada vez maior, está submetida a ou torna-se dependente da mídia e de sua lógica. Esse processo é caracterizado por uma dualidade em que os meios de comunicação passaram a estar integrados às operações de outras instituições sociais ao mesmo tempo em que também adquiriram o status de instituições sociais em pleno direito. Como consequência, a interação social – dentro das respectivas instituições, entre instituições e na sociedade em geral – acontece através dos meios de comunicação. (HJARVARD, 2012, p. 64)

Diante de uma realidade que impõe, cada vez mais, a necessidade de ser visto para ser legitimado, torna-se compreensível a busca de visibilidade nos meios de comunicação por parte dos movimentos populares. Todavia, como muitas vezes os interesses desses grupos vão de encontro aos do poder hegemônico, dos grupos que controlam os grandes meios de comunicação,

foi necessário o surgimento de mídias alternativas para que essas mensagens contra-hegemônicas pudessem ser repassadas. E esse é um processo antigo, do qual precisamos falar para compreender melhor o contexto de nosso objeto de pesquisa.