• Nenhum resultado encontrado

38Teoria iniciada no século XIX por Hegel e Wilhelm e retomada no fim do século XX, na qual se previa o fim da história com a derrocada da dicotomia capitalismo versus comunismo e com a ascensão do liberalismo. Acreditava- se que a queda do Muro de Berlim seria o marco desta tese, trazendo os Estados Unidos como única potência mundial.

Eles são jovens, filhos de classe média e, lá pelos idos de 2010, acabavam de se envolver em um mundo de debates, manifestações e movimentos que questionavam o poder estabelecido, as desigualdades sociais, as políticas públicas de defesa do meio ambiente e uma série de outras discussões que costumam integrar a agenda da esquerda política no Brasil. À época, estudantes de Jornalismo, sentiam-se entediados com a grade curricular do curso e com a metodologia utilizada na sala de aula. Buscavam, portanto, um motivo para revirar as coisas.

É desse preâmbulo que vai surgindo, aos poucos, a ideia de criação do Nigéria, coletivo que trabalha com produções audiovisuais na cidade de Fortaleza. As motivações, Yargo Gurjão, um dos integrantes do coletivo, deixa bem claras39:

É pra ser honesto? Acho que foi pra gazear aula, pô! Mas eu acho que você sair do território da sala de aula, tá ligado, que é um território, a meu ver, que é bem verticalizado, que ele tem as regras bem consolidadas, quando você sai daquele território, você vai se reunir com a galera, sei lá, do DA40, num bar, aquele outro

território faz você pensar de outra maneira. E era um território que a gente trocava bem mais ideia do que em sala de aula.41

O Nigéria é formado atualmente por três integrantes: Roger Pires, Bruno Xavier e o Yargo. Os dois últimos estudaram na Universidade de Fortaleza (Unifor), onde se conheceram - não dentro da sala de aula, mas fora, como fazem questão de ressaltar. Roger, que estudou na Universidade Federal do Ceará, apareceu depois, já dentro do universo das organizações sociais.

Roger e Yargo começaram o seu envolvimento com movimentos sociais através dos diretórios acadêmicos em seus cursos. Bruno já tinha, há mais tempo, uma ligação com organizações não-governamentais (ONGs). Ele participava, desde que tinha dezenove anos, da Aldeia - Agência de Desenvolvimento Cultural, Educomunicação, Infoinclusão42 e Audiovisual. Trata-se de uma organização não governamental criada em 2004 e especializada em cultura,

39Yargo Gurjão e Bruno Xavier, dois dos integrantes do Nigéria, concederam entrevista a este pesquisador no dia 06/10/2015. No dia 09/06/16, foi realizada uma outra entrevista com o terceiro integrante, Roger Pires. Por fim, no dia 21/07/2016, foi feita uma última entrevista, desta vez, com os três integrantes. As citações deles, encontradas neste trabalho, são provenientes, portanto, destas conversas.

40Diretório Acadêmico, uma entidade estudantil que representa os estudantes de um curso de nível superior dentro de uma Universidade.

41Entrevista concedida ao autor em 21/07/2016.

42Também conhecida por inclusão digital, a infoinclusão significa a democratização do acesso às novas

comunicação, educação, infoinclusão43 e audiovisual, que focava suas ações na região do Mucuripe e Praia do Futuro, na zona leste de Fortaleza. Ficou lá por oito anos. “Eu só trabalhei nisso. Nunca fui pra impresso, nunca fui pra jornal, só com ONG”, afirma Xavier.

Quando Bruno já estava para concluir o curso de Jornalismo, em 2008, Roger entrou no Aldeia como voluntário. Eles então começaram a se comunicar. Participaram, através da ONG, dos projetos Escola da Mídia e Carrossel, que consistiam em oficinas de audiovisual em escolas da rede pública de ensino em Fortaleza. Bruno era o monitor dos projetos e Roger, estagiário. Yargo também se juntou a esse processo. A partir destas ações, eles começaram a discutir a importância da mídia na sociedade e a refletir sobre a democratização dos meios.

Surgiu, então, a ideia de criação de uma ONG, que era uma estrutura de organização da qual já participavam. Roger, Bruno e um outro jornalista da Aldeia, Leonardo Ferreira, começaram a maturar isso nos anos de 2009 e 2010. Em 2009, Roger e Bruno, com alguma participação de Yargo e Leonardo, começaram um projeto voluntário chamado Olho Mágico, que seria um embrião do que viria a ser o Nigéria. Entraram em contato com o centro comunitário de uma comunidade de Fortaleza e apresentaram a proposta de uma oficina de audiovisual de três meses para adolescentes, com o objetivo de realizar um vídeo ao fim do processo, utilizando celular e câmera digital.

Enquanto tocavam o projeto, pesquisavam como era o funcionamento das ONGs e passaram a considerar que a estrutura era complicada e burocrática. Yargo, então, surgiu com a ideia de criar uma produtora de vídeo. “Ah, uma microempresa, né? Que tem lucro, mas a gente vai poder prestar serviço, ter nota fiscal. E aí a gente foi tendenciando mais para esse espaço. Era mais fácil e a gente poderia ter mais possibilidade de financiamento e de fazer filmes diretamente, não necessariamente só de fazer cursos”, explica Roger44. Passaram, deste

momento, a estudar a nova alternativa.

Daí, em 2010, Bruno e Yargo começaram a fazer a campanha de TV do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) à Prefeitura de Fortaleza. A campanha, segundo eles, foi uma porta de entrada para os movimentos sociais. “Isso ajudou muito a gente a entender a linguagem dos movimentos sociais. Pra colocar no vídeo. Era assim: a campanha ia acontecer, vamos fazer

43

Também conhecida por inclusão digital, a infoinclusão significa a democratização do acesso às novas tecnologias da comunicação.

sobre moradia. Temos que colocar não só homem, mas mulher também. A questão de linguagem. Isso a gente aprendeu bastante”, destaca Bruno45.

A partir de conhecimento da técnica de produção de vídeo e do envolvimento com os movimentos populares, surgiu o coletivo Nigéria, em 2010, mas ainda sem CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas). Com essa identidade de grupo, e por conta da ligação com os movimentos proporcionada pela campanha, foram chamados a fazer um documentário em Limoeiro do Norte, município do interior do Ceará, sobre o uso de agrotóxicos. Foi o primeiro trabalho no qual possuíam financiamento para produção. Viajaram ao local e fizeram o curta- metragem46 Água Envenenada: Sede por Justiça47.

O curta, consideram, foi um marco para o grupo, não somente por ser o primeiro documentário, mas por lhes gerar uma maior compreensão sobre como deveria se estruturar o coletivo.

Quando a gente começou a montar o filme, o pessoal começou a entender porque que é interessante ter um modus operandi fechado. A gente tava editando e chamava o pessoal para opinar e foram umas quatro pessoas lá. Quando assistiram o filme, a gente começou a perceber que o movimento social tem uma enorme dificuldade pra fazer coisas que não falem sobre eles mesmos, pra falar depois pra fora. Eles têm muita dificuldade de fazer algo que não seja um panfleto. O que eles fizeram? O pessoal do MST, MTST48, Frente das Águas, eles cortaram o filme, tiraram muita coisa do filme, transformaram o filme num panfletário. E isso angustiou muito a gente, porque a gente viu que o filme tinha um potencial muito maior. Mas como a gente tava fazendo encomendado, a gente tava fazendo como eles estavam pedindo.49

.

O resultado não agradou ao coletivo. O filme teve pouca repercussão e veiculação, ficando, segundo os integrantes do Nigéria, mais dentro do âmbito do MST, circulando entre os que faziam parte do movimento. Todavia, eles resolveram aproveitar o material produzido,

45Idem. 46

Conforme classificação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), curta-metragens são aqueles com até 14 minutos de duração; médias-metragens vão de 15 a 70 minutos e longas-metragens, acima de 70 minutos. 47

Documentário realizado a pedido da Frente Cearense Por Uma Nova Cultura da Água e Contra a Transposição das Águas do Rio São Francisco, que é uma articulação da sociedade civil que congrega entidades, fóruns, pastorais sociais, sindicatos e movimentos sociais.

48

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). 49Entrevista concedida ao autor em 21/07/2016.

recuperando cenas deletadas, e deste todo fazer um novo filme. Surgiu o “Sucata de Plástico”, que consideram sua primeira produção autoral.

O processo foi um grande aprendizado, afirmam. “A gente tem que fazer a galera pensar diferente, porque se deixar a galera tomar essas decisões, a galera sempre vai fazer a mesma coisa, o mesmo panfleto chato”, defende Yargo50. “E isso vai atrapalhar eles, porque a

comunicação é algo que tem que catalizar a pauta deles e não transformar a pauta em algo chato. Se a comunicação for chata, f.... Ninguém vai mais ver aquilo”, complementa o jornalista.

O “Sucata de Plástico” foi, então, veiculado em festivais. Assim como ocorreu com outras produções que se seguiram. Se inicialmente esse tipo de exposição parecia positivo, ele, por outro lado, gerou um outro debate no grupo, que começou a rever as formas de divulgação de seus produtos e as motivações pelas quais empreendiam algum projeto. A discussão trouxe à tona divergências entre integrantes do grupo, revelando anseios pessoais diferentes que, com o tempo, acabaram por induzir a mudanças na formação do coletivo.

Conforme Roger51, à época, o grupo acabou-se vinculando à ideia de concorrer em festivais, ganhar prêmios e reconhecimento. Pensava-se em filmes para cinema. Esse desejo era encampado especialmente por um novo integrante, Pedro Rocha, que entrou em 2012 e, em 2015, deixou o grupo. Jornalista formado pela UFC, Pedro realizou trabalhos mais jornalísticos, com reportagens escritas e em vídeo para Internet. Mais tarde, quis experimentar fazer filmes mais longos, com mais profundidade, que exigiam uma imersão mais intensa sobre o tema. “E a gente tava, de repente, ‘não, vamo pensar Internet, e produzir muito, e cobrir manifestação’. A gente tinha um pouco mais essa tendência”, explica Roger52.

50Idem. 51Ibidem. 52Ibidem.

Figura 4: Formação original do coletivo Nigéria. da esquerda para a direita: Yargo, Bruno, Roger e Pedro.

Fonte: Nigéria.

Além da questão do formato das produções, os demais integrantes, em oposição a Pedro, não concordavam com a estrutura hierárquica, vertical, que a realização de longas para o cinema acabaria por criar. Não queriam a figura do diretor, que, de certa forma, adquire autoridade sobre os demais envolvidos na produção da película. Eles buscavam mais horizontalidade nas relações de trabalho, e isso se transformou em uma premissa que impossibilitava a concretização dos projetos imaginados por Pedro.

Pedro, então, tornou-se voz dissonante no grupo, ao que se referia a perspectivas do tipo de audiovisual que se pretendia produzir. Diante do impasse, acabou por se desligar do coletivo. Com sua saída, o Nigéria abandonou os projetos de reportagem (que, em geral, eram encampados pelo integrante) e consolidou a estratégia de se concentrar em documentários e videoativismo para divulgação através da Internet. Essa postura foi incentivada pela forma como se foi dando a repercussão de seus vídeos, a começar pelo “Sucata de Plástico”, inicialmente pensado para festivais. “A gente descobriu uma distribuição paralela, que não foi muito

impulsionada pela gente, mas por pessoas que pegavam, se interessavam e passavam para outras e as outras foram vendo. E o vídeo se multiplicou”, conta Bruno53.