• Nenhum resultado encontrado

3 A ANTROPOM ORFIZAÇÃO

No documento ÍNDICE DO VOLUME IV (páginas 87-91)

LANDSCAPE HISTORY, A NARRATIVE FOR THE ISLAND OF SÃO M IGUEL, AZORES

3 A ANTROPOM ORFIZAÇÃO

A Geografia situa o território no mundo e, com a ajuda da História, detalha as rotas de pessoas e ideias, plantas e animais. Uma primeira abordagem funcionalista leva a tentar reconstituir o ecossistema existente à Descoberta, desde o suporte geológico ao revestimento vegetal, ao clima e à situação oceanográfica, que explicará a escassa fauna terrestre endógena. Da consult a às fontes documentais primárias à Biologia, da História da agricultura e das estradas aos

fieldworks, a tradição historiográfica inglesa dedicada ao countryside serviu de primeiro guião a esta metodologia. A partir da colonização humana, a história funcionalista da paisagem será progressivamente sobreposta por uma história de mat riz culturalista.

Fazer chão. Descoberta a ilha, lançaram-se animais e voltou-se depois. Fizeram-se queimadas para desbravar o mato e arrumaram-se as pedras em muros e maroiços para t ornar o chão habitável. A terra foi dividida radialmente ao meio da ilha, desenhando faixas do mar à serra. O povoamento cedo reconheceu o clima mais ameno à cota baixa, não subindo mais do que 350 metros,31 cota a partir da qual a humidade é permanent e e onde o gado anda sempre molhado. Habitava-se a cota baixa, pastoreava-se o gado a seguir e mantinha-se a vegetação silvestre nas cotas mais altas como reserva de lenha, numa ocupação fiel à tradicional divisão altimétrica do

ager, saltus e silva. O povoamento do ager era linear desenhando uma cintura ou cordão periférico ainda hoje reconhecível. Com o clima oceânico temperado a garantir chuva farta e a terra fértil, durante os primeiros séculos de colonização os Açores foram o “ celeiro de Portugal” . Ainda se encontravam searas de trigo a ondular a paisagem na primeira metade do século XX. A história da paisagem da ilha era a história dos sucessivos usos do solo a que uma certa historiografia denominou de “ ciclos” económicos - os ciclos do trigo, do pastel e da laranja at é ao mais recente e último ciclo da pecuária.32

Com o complemento de fontes primárias locais, foi com estas disciplinas - a Geologia e Botânica, a História e Geografia, que o arquitecto paisagista José M arques M oreira contou Alguns

31 Raquel Soeiro de Brit o, A Ilha de S. M iguel - a Ilha Verde: Est udo Geográfico, 1950-2000 (Pont a Delgada, 2004), 65.

32 A est es produt os agro-aliment ares de maior rendim ent o económico junt avam-se out ros, que t endo uma maior ou menor import ância conjunt ural

na hist ória da ilha, permaneceram at é aos dias de hoje, t ais como a vinha, linho, espadana, fava e o milho, que const it uía a base da aliment ação da população em Oit ocent os.

88

Aspectos de Intervenção Humana na Evolução da Paisagem da Ilha de São M iguel, Açores33.

Editado em 1987, mais de três décadas depois do text o inaugural de Raquel Soeiro de Brito para a história da paisagem da ilha34, M arques M oreira apresenta uma recolha de fontes fundamentais, mas deixou de fora a história da propriedade e do cadastro que juntamente com as estradas constituem a rede de suporte, a armação invisível da paisagem, em que o lote ou parcela é a unidade base da composição.35

Para além dos usos visíveis do solo, a História clarifica o regime jurídico da propriedade e do arrendamento das terras. Este último organiza e condiciona apertadamente aqueles usos. Desde muito cedo na colonização da ilha a terra distribuída pelas dadas36foi vinculada por uma minoria de terratenentes. Os vínculos, sob a forma de morgados ou, como eram localmente designados,

morgadios, fixavam a pertença inalienável e indivisível da propriedade e outros bens e obrigações a uma Casa, herdada de geração em geração pelo filho varão mais velho, o morgado. A Casa era sinónimo de linhagem e património. A terra assim imobilizada resistiu ainda à lei da desvinculação de 1863 e ao novo Código Civil de 1867 que ditava a partilha pelos herdeiros, acabando com a exclusividade do primogénito, recorrendo-se mesmo à prática de casamentos endogâmicos para manter a propriedade agora dividida pelas heranças na mesma família. Os rendimentos dos morgados advinham sobret udo, quando não exclusivamente, da propriedade arrendada. Podia-se ver a paisagem social na paisagem da terra retalhada para arrendar. Depois de quinhentos anos de exploração discricionária, foi só depois da revolução de 1974, com a nova legislação para o regime de arrendamento das terras a defender reactivamente o rendeiro, que o poder sem restrições dos morgados e seus sucedâneos sobre a terra acabou. 37

Para reconstituir o cadastro, o desenho da propriedade, é preciso identificar a sua descrição em escrituras de compras, permutas ou aforamentos ou, em certos casos, nas detalhadas descrições contidas nos Inventários Orfanológicos e, depois de fazer a arqueologia dos topónimos - dificultada pelas constantes corruptelas, cruzá-la com a Cartografia antiga e coeva. A prova dos nove é dada pela verificação in situ com os limites da topografia veemente, ribeiras e grotas, fortemente escavadas pelo regime torrencial das águas, ou cumeeiras e arribas que, desde as cartas das Dadas, se traduziram em linhas de divisão do território e da propriedade.

33 José M arques M oreira, Alguns Aspect os de Int ervenção Humana na Evolução da Paisagem da Ilha de S. M iguel, Açores, (Lisboa: Serviço Nacional de

Parques, Reservas e Conservação da Nat ureza, 1987).

34 Raquel Soeiro de Brit o, “ A Ilha de São M iguel: Est udo Geográfico.” Dissert ação de Dout orament o, Universidade de Lisboa, 1955.

35 Post eriorm ent e Isabel Soares de Albergaria fez uma ressenha da Hist ória da Paisagem de t odo o arquipélago em “ As Ilhas-jardim: do mit o edénico à

const it uição da paisagem,” in Parques e Jardins dos Açores (Lisboa: Argument um , 2005), 13-29.

36 Para a Hist ória mais recent e da colonização das ilhas açorianas sob o pont o de vist a do t errit ório, veja-se Ant oniet a Reis Leit e, Açores, Cidade e

Territ ório - Quat ro Vilas Est rut urant es (Angra do Heroísmo: Inst it ut o Açoriano de Cult ura, 2014).

89 3 - A SPAM E JOSÉ DO CANTO

Proponho-me mostrar uma aplicação metodológica destes saberes, recorrendo ao caso de estudo do parque que José do Canto construiu junto à lagoa das Furnas na segunda metade do século XIX, mostrando como trouxe de Paris o imaginário da Suíça dos grandes lagos.

Como filho segundo de um M orgado ilustrado, José do Canto (1820-1898) estava destinado a estudar e viver de uma profissão liberal. Não quis o seu irmão primogénito casar com a M orgada que lhe destinou o pai e José do Canto, substituindo-o, tornou-se por casamento administrador de um M orgadio com vasto património fundiário espalhado por S. M iguel, Terceira, Pico e Faial. A gestão que vai fazer deste património constitui acção exemplar e, pesquisando a documentação reunida nos seus arquivos, nomeadamente a extensa epistolografia e as inúmeras instruções aos feitores das suas granjas, tem os o testemunho do modo como projecta e constrói a paisagem na sua propriedade.

Desde logo, José do Canto manda fazer o levantament o do património a gerir, começando por medir as propriedades. Roteia as não cultivadas, divide e delimita-as. Estes limites desenham linhas veementes na paisagem, estruturam-na e compõe-na. Com terra distribuída por praticamente toda a ilha, temos os signos resultantes conforme a geografia, sejam dispendiosos muros de pedra a cercar quintas de laranja na Plataforma dos Picos, seja de bardos de terra com sebes de silvas ou canas nas terras mais altas. José do Canto projectou e construiu granjas- modelo na Grotinha, perto de Ponta Delgada e ao Porto Formoso, cultivando ele próprio essas terras de acordo com mais modernos princípios da Agronomia nascente. M uros mais baixos dividiam as terras arroteadas para arrendar, das quais obtinha avultado rendimento. Para além das altas sebes de incensos ou banksias que dividiam e abrigavam do vento os quartéis da laranja, árvores de maior porte traçavam alinhamentos na testada dos caminhos ou canadas. Em 1848, persistindo na aclimatação do freixo pela qualidade reconhecida da sua madeira, o jornal da SPAM , O Agricultor M ichaelense, clarificava o objectivo: “ Achar uma boa arvore florestal, acommodada ao terreno, e ás necessidades da localidade, é achar um thesouro.”38 Desde logo, José do Canto investe na florestação maciça, que era obra simultânea de protecção, sobretudo contra a erosão, mas também de produção de madeira para a caixaria em que se exportava a laranja para Inglaterra. Se começou por recorrer a várias espécies de pinheiros e outras essências, a partir de certa altura, juntamente com o seu rival António Borges, adopta a criptoméria como essência florestal. O sucesso da aclimatação desta conífera proveniente do

90

Japão e da China será evidente nas grandes campanhas de arroteamento e plantio que os Serviços Florestais da ilha levarão a cabo a meio do século seguinte, sendo hoje um signo distintivo da paisagem micaelense.

As espécies endógenas eram desdenhadas pelos naturalistas estrangeiros e pelos autóctones, com excepção do já raro vinhático, que era apreciado pela qualidade da madeira para marcenaria. M as em S. M iguel o ecossistema de Quatrocentos tinha praticamente desaparecido. Tomados pela paixão botânica e pela febre vitoriana da colecção, os ricos morgados micaelenses importaram centenas de espécies de plantas exóticas para os seus jardins e matas. Algumas, como a conteira39, saltaram os muros dos jardins e infestam actualmente as encostas da ilha. Outras, como o metrosídero, parecem ter encontrado um lugar equilibrado no novo ecossistema.

José do Canto foi um dos sócios mais dinâmicos da SPAM , de que foi um dos fundadores para ensaiar culturas alternativas à laranja. Num esforço de modernização acelerada, a SPAM vai questionar as práticas tradicionais, fazendo inquéritos e introduzindo a experimentação; importa da Europa civilizada plantas, animais, máquinas e bibliografia; tem um campo de ensaios, viveiros próprios, uma biblioteca com obras fundamentais e assinaturas de periódicos especializados e edita o seu próprio periódico, o já mencionado O Agricultor M ichaelense. A SPAM ensaiou no seu campo e nas propriedades dos sócios as mais díspares culturas, do arroz ao café, do cuscuz à quinina, do chá ao tabaco. Edita Relatórios e M emórias de Culturas, e dá conta dos resultados dos ensaios n' O Agricultor M ichaelense. Os modelos adoptados procuravam-se primeiro na rainha das nações, a Inglaterra, daí que o gado mais ensaiado pelos sócios da SPAM fosse de ovelhas. M as também se importaram vacas e dispendiosos touros reprodutores e sementes dos Alpes para pastagens artificiais. O gado bovino que pré-existia não tinha vocação leiteira, foi a SPAM que introduziu a Holstein Frízia, a vaca malhada que hoje povoa a paisagem e publicidade da ilha.

O mar era a estrada, a estrada local - de navegação por cabotagem - e a estrada para o mundo. As “ estradas” terrestres eram na verdade caminhos ou riscos, no dizer micaelense do início de Oitocentos, porque riscadas pelo uso. Através da SPAM , José do Canto pressiona as Obras Públicas do Reino para se projectarem estradas carrossáveis e negoceia com bancos europeus o empréstimo para a construção da Doca, a obra mais ambicionada, contratando o engenheiro em Londres para fazer o projecto e dirigir a obra. Cansados de esperar pelo patrocínio da Coroa,

91

serão os próprios micaelenses a custear os trabalhos at ravés de uma taxa cobrada em cada caixa de laranja exportada.

No documento ÍNDICE DO VOLUME IV (páginas 87-91)